quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

The last guardian - Pensando sobre o jogo



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e, antes de tudo, eu tenho que pedir desculpas pela longa ausência. Eu sei que eu vivo prometendo um ritmo mais constante de análises, mas a verdade é que a correria de fim de ano me pegou e o resultado foi essa seca que vocês puderam perceber. Eu lamento que isso tenha acontecido, mas eu espero conseguir fazer melhor daqui por diante.

E, para recomeçar esse ciclo de uma forma mais positiva, hoje é dia de falar de The last guardian, jogo exclusivo desenvolvido pelo Studio Japan da Sony para PS4, e lançado em dezembro de 2016. Caso você queira fugir de 100% de spoilers, é melhor ficar longe deste texto. Eu não menciono nenhuma cena ou acontecimento, mas falo do tom do jogo, o que para alguns já é spoiler suficiente. Dito isso, vamos lá.

The last guardian já tinha passado para o status de lenda nos últimos anos, por conta dos constantes atrasos e silêncios com relação a ele, mas, segundo dizem os executivos da Sony, a obstinação dos fãs fez com que o projeto não fosse abandonado, apesar dos seguidos problemas.

Para entender esse impulso dos fãs, é preciso lembrar que o diretor do projeto é o desenvolvedor Fumito Ueda, responsável por ICO e Shadow of the Colossus, dois jogos de que já eu falei aqui no canal e considerados largamente como obras-primas e responsáveis por abrir uma série de caminhos para os desenvolvedores futuros. Por isso, as pessoas esperavam grandes coisas de The last guardian e não deixavam o jogo sumir na obscuridade.

A principal razão para o atraso do jogo era a incompatibilidade do PS3 com as funções que o jogo demandava para funcionar 100%. Com isso, o jogo foi finalmente adiado para o PS4, e mesmo nele o jogo ainda não roda às mil maravilhas, vale dizer. Eu não tenho um bom olho para essas coisas, mas é possível perceber um ritmo mais lento no processamento do jogo. E, sendo assim, a pergunta que cabe é: o que come tanto poder de processamento em The last guardian?

A resposta é a criatura Trico. The last guardian acompanha a história de um menino que acorda num lugar estranho e o único ser perto de si é uma criatura gigantesca, ferida e presa chamada Trico. É uma mistura bem única de gato, pássaro e cachorro, com direito a uns chifres também.

A ideia do jogo é, ao controlar o menino, o jogador acabar criando um laço forte com a figura do Trico, que é absolutamente fundamental para o progresso do jogo, que é uma mistura de jogo de plataforma com alguns puzzles bem simples e leves. Por isso, é fundamental que a criatura não crie raiva no jogador por não ser capaz de realizar certas tarefas ou por ficar travada em algum espaço do cenário.

The last guardian resolve isso de forma muito peculiar e, por isso mesmo, polêmica. Falando primeiro de execução, eu fiquei realmente abismado com como, apesar de Trico ser uma criatura gigantesca, ele não encontrar absolutamente problema nenhum com as geometrias do cenário. Em nenhum momento eu o vi entrando em alguma parede ou esbarrando em algo e não conseguindo sair de onde estava. Se ele não consegue dar a volta num corredor, ele dá a ré até conseguir mais espaço, ele pula nos lugares certos, ele não se mete a fazer um movimento que não vá conseguir realizar, etc.

Com isso, fica muito claro que a inteligência artificial e os cálculos de colisão devem comer muita memória do PS4, o que tem o seu preço, como eu disse. Mas, considerando todos os erros nesse sentido que todo mundo já viu em algum jogo, é incrível o resultado obtido em The last guardian. Quando a gente lembra, por exemplo, das maluquices dos NPCs de um jogo como The last of us, é bem nítido que o esforço não foi pouco.

Agora, se, por um lado, houve um esforço muito grande para dar inteligência e graciosidade ao Trico; por outro, também houve um esforço em fazer com que houvesse alguns problemas de comunicação entre o menino e a fera. Conforme o jogador avança, ele consegue fazer melhor uso das habilidades do Trico, mas, especialmente no começo, a comunicação é difícil e pode gerar alguma frustração. E a ideia é justamente essa.

Quem já teve algum animal de estimação sabe que ele não vai fazer exatamente o que o dono quer, especialmente se ele nunca passou por um processo de amestramento. Ele não vai entender os comandos, ou vai simplesmente ignorar e fazer o que quiser. É uma sensação frustrante na vida real, mas é também a marca de que o seu bicho tem uma personalidade, e você precisa lidar com ela. E, se esse bicho independente gosta de você, é uma sensação bem mais satisfatória do que se ele fosse só um boneco.

Eu raramente tive dificuldades para passar comandos para o Trico, mas não vou negar que houve uns dois momentos complicados para ele fazer o que eu estava pedindo, o que eu considero pouco num jogo de umas 10 horas. Mas, eu também sei que muita gente é ansiosa e, por acaso ou não, ficar ansioso e dar 10 comandos para o Trico em 30 segundos só vai deixá-lo mais confuso, e aí a chance de ele fazer exatamente o que você quer é ainda menor.

Essa é uma decisão de design extremamente polêmica, que certamente não vai agradar a todos, mas é descendente de uma prática já existente em Shadow of the colossus, em que o cavalo Agro se comportava de forma independente também, evitando penhascos e não sendo 100% complacente com o protagonista do jogo. Isso porque, segundo o Ueda, Agro é um animal, e não uma máquina para ser controlada 100%.

Mais de dez anos depois do lançamento de Shadow of the Colossus, ainda há pessoas que abandonaram o jogo por conta desse aspecto, de como a movimentação com o cavalo não é confiável. E isso num jogo tão aberto e amplo que a movimentação era raramente um problema. Algumas pessoas demandam controle total sempre.

Os jogos do Ueda pedem exatamente o oposto disso: a ideia é depender de outro, entregar-se às limitações dessa outra criatura e tentar conviver com ela. É um exercício de paciência, porque é um exercício de convivência. Em ICO, você aprendia a conviver com uma frágil moça; em Shadow of the colossus, é preciso aprender a trabalhar em conjunto com o cavalo, até para vencer alguns colossos em pontos avançados do jogo; em The last guardian, o fundamental é lidar com o Trico, que, aliás, sempre surpreende nas suas habilidades. Eu posso dizer que até o fim do jogo ele me surpreendeu com alguns movimentos, e isso criou algumas memórias bem legais, que eu certamente vou guardar.

Por isso, então, para mim, a experiência de The last guardian foi um sucesso, e certamente valeu o adiamento para o PS4, pois ele é, sim, um marco no avanço da inteligência artificial em jogos. E, falando em avanços, ele apresenta um progresso no trabalho do grupo do Ueda, chamado antigamente de Team ICO e agora apenas de Gen Design: o foco na resolução de puzzles através do companheirismo vem de ICO, mas há também avanços.

Em ICO, a jogabilidade é extremamente minimalista, com a resolução dos puzzles quase instantaneamente se entregando ao jogador assim que ele entra numa nova sala. Em The last guardian, tudo ficou um pouco mais complicado, com elementos que só vão poder ser usados numa revisita ao cenário, ou mesmo coisas que o jogador considera inacessíveis, e que de repente se tornam fundamentais com a ajuda do Trico – o que, na verdade, provavelmente é intencional, visando fazer com que o jogador se impressione com as capacidades da fera.

De Shadow of the colossus vem a mecânica de escalar o Trico, além das animações únicas que fazem essa criatura parecer plausível de existir no nosso mundo. O mais interessante do Trico, entretanto, é que ele tem uma independência de movimentos: na maior parte do tempo, ele está seguindo o menino, mas há várias partes em que ele para e vai observar algo, rolar na água, gritar para algum prédio distante, dar uns pulinhos depois de o jogador alimentá-lo com uns barris espalhados pelo cenário, e muito mais. A verdade é que as criaturas de Shadow of the colossus parecem bem mais artificiais do que o Trico, e não que elas pareçam mecânicas em si; é só uma questão de reconhecer o avanço que foi possível em The last guardian.

Eu não estou dizendo tudo isso para a gente chegar à conclusão de que The last guardian é o topo de um processo evolutivo da carreira do Fumito Ueda; pelo contrário, cada jogo tem uma identidade muito peculiar, e é perfeitamente possível continuar gostando mais de um do que do outro, independente de qual vem primeiro. O importante é como as peças se unem para formar uma experiência.

Nesse sentido, The last guardian é capaz de criar uma experiência muito sólida para contar uma linda e doce história, mais no tom íntimo de ICO do que no tom bombástico e cosmológico de Shadow of the colossus. É uma história sobre dois seres que se aproximam apesar de muitas dificuldades e que aprendem a colaborar e gostar um do outro. Ao final, o jogador acaba gostando do Trico também, e não deixa de torcer para o sucesso da aventura e de se agoniar nos momentos mais tensos.

Vale dizer também que, em termos gráficos, o jogo é muito belo, retomando a estética dos jogos do grupo, mas evoluindo naquilo em que ele sempre esteve na vanguarda: a iluminação. São incríveis os efeitos de luz que The last guardian apresenta, e eu fiquei bastante impressionado, especialmente quando se observa como cada pena do Trico reage à luz. A música também é menos bombástica que Shadow of the colossus, mas ela tenta replicar justamente os momentos de sentimentos que o jogo busca despertar: ela vai aparecer nos momentos de grandeza, de medo, de agonia, de beleza; de resto, ficam os sons do menino e da fera.

E essa relação do som reflete o próprio sentido do jogo: no fundo, só existem o menino e a fera. Os obstáculos lá estão, mas, em termos de história, eles não parecem muito mais do que metáforas sobre como progredir na vida em convivência: no momento em que as pessoas parecem se entender, a vida se atravessa com algo novo, exige replanejamento, repensar a comunicação, ver o que cada um aprendeu de novo, e aí recomeçar a escalada até que o próximo obstáculo apareça. Numa hora, podemos ver a luz no topo da torre; o importante é não deixar o companheirismo de lado.

É uma mensagem bonita, porém desenhada com um tanto de sofrimento, mas esse é justamente o tom que o Ueda escolheu para todos os seus trabalhos enquanto diretor de jogos. The last guardian é só mais um capítulo nessa grande trajetória. E era isso que eu queria dizer sobre The last guardian. Até a próxima análise!