segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Getting over it - Pensando sobre o jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Getting over it with Bennett Foddy, jogo desenvolvido pelo próprio Bennett para PC e iOS, e lançado em 2017. Getting over it é um jogo muito interessante, porque apresenta algumas questões que já me faziam pensar há algum tempo, e que eu queria dividir com vocês, para a gente tentar entender tudo melhor. Mas, antes de a gente começar de fato, eu preciso avisar que este é o primeiro jogo que eu comento neste canal, mas que eu não cheguei a terminar. Se, para você, isso tira a credibilidade do meu comentário, fique à vontade para não continuar a ler. Eu agradeço por você ter chegado até aqui. Caso você queira discutir mesmo assim, vamos lá.

Getting over it, na verdade, é um jogo muito simples, que, de múltiplas formas, é completamente absurdo. O jogador controla um homem que acorda na base de uma pilha insana de coisas, formando uma montanha. Essa pilha de coisas não faz nenhum sentido, começando como uma montanha, com pedras, mas eventualmente acrescentando objetos que as leis da Física certamente não permitiriam que fossem empilhados da forma que são nesse jogo.

O seu personagem também tem o seu componente absurdo: é um homem preso num caldeirão da cintura para baixo – um caldeirão que, aliás, é obviamente pequeno demais para conter as pernas do homem. Além desse caldeirão, tudo que esse homem tem é um martelo. E, com esse martelo, ele precisa subir até o topo da montanha absurda.

O desafio do jogo é, então, usar os movimentos do martelo para subir. A forma como se faz isso é usando os movimentos do mouse para determinar o a trajetória do martelo. Com isso, você usa o impulso e a força centrífuga para subir ou se mover. Parece simples, e é, mas não quer dizer que seja fácil.

O propósito do caldeirão é obviamente impossibilitar que o jogador posicione o seu personagem de forma precisa, o que deixa toda e qualquer movimentação a cabo dos movimentos do martelo, que são muito mais imprevisíveis, tanto em termos da trajetória quanto da força resultantes de cada ato. Além disso, como há uma multiplicidade de terrenos na tal montanha, alguns deles podem reagir de forma drasticamente diferente às mesmas ações do jogador.

Com isso, a jogabilidade de Getting over it se torna não necessariamente ruim ou imprecisa por natureza, mas ela mantém um componente arredio durante toda a experiência. É claro que há jogadores capazes de dominar 100% dos movimentos, e de executar uma speedrun do jogo em menos de dez minutos, mas é razoável entender que o design do jogo pressupõe esse caráter arredio, porque o jogo por diversas vezes mostra que sua intenção é deixar o jogador sempre tenso e, mais importante, sujeito a erros que levam a grandes perdas.

Embora a montanha de Getting over it aparente ser algo que foi montado sem nenhum cuidado ou planejamento, há diversos momentos que deixam claríssimo que a estrutura foi construída de forma a aproveitar erros em potencial do jogador para fazê-lo perder uma quantidade imensa de progresso de uma só vez. Assim, um movimento um pouco mais brusco pode resultar no jogador voltando para o início, e tendo que subir tudo de novo. Nesses momentos, o próprio Bennett aparece para expressar a mensagem do jogo.

A ideia do jogo é fazer com que o jogador sinta o amargor da perda, o sentimento de que seu progresso foi apagado e que é preciso começar de novo, o que, segundo o desenvolvedor, é o sentimento mais intenso que existe. E, começando de novo, o jogador precisa aprender um pouco mais a usar os controles, mas, por mais que você aprenda, eles nunca parecem se tornar intuitivos como os controles de um jogo tradicional procuram ser.

Na prática, isso significa que Getting over it é um jogo extremamente tenso e repleto de frustrações. O próprio Bennett afirma que jogá-lo depois de um dia estressante pode não ser a melhor ideia, e que ele não vai te julgar se você não aguentar o peso emocional das repetidas derrotas.

A mistura de controles arredios e um cenário traiçoeiro é o que faz de Getting over it algo único. Diversos jogos implicam a necessidade de começar de novo, mas isso geralmente vem acompanhado do sentimento de estar fazendo algum progresso, mesmo que esse progresso esteja implícito. Se você ficar travado num chefe em Dark Souls, por exemplo, você pelo menos já explorou a área dele, então houve um progresso tangível; se você teve que recomeçar uma playthrough de Binding of Isaac, pelo menos você já conheceu alguns dos power-ups e os padrões de ataques dos inimigos e chefes. E, nesses dois jogos, o jogador tem confiança nas suas habilidades, na sua capacidade de controlar o personagem principal.

Para o Bennett, é nessa confiança que está o problema: um desafio é realmente assustador e marcante se você tiver certeza de que, com treino e empenho, você vai conseguir superar? Para o criador de Getting over it, desafios reais são aqueles que confrontam o jogador com tamanha indiferença que fazem o jogador questionar se ele vai realmente ser capaz de superá-lo. E o jogo tenta justamente se apresentar como um desses desafios. Algo frustrante, arredio e indiferente.

Nesse sentido, mesmo sem ter terminado ainda, eu acredito que já vivi a experiência que Getting over it queria passar. E essa experiência é algo que expressa muitos dos meus interesses sobre a estrutura e os significados de jogos. Quem é inscrito aqui no canal sabe que uma das grandes questões que perpassam os meus vídeos é como passar o sentimento de fracasso e impotência dentro de um jogo, uma forma de arte que é tradicionalmente estruturada para dar poder ao jogador.

Até então, eu só tinha visto essa questão respondida na forma como o jogo contextualiza suas mecânicas, mas as mecânicas em si funcionavam de forma responsiva e quase como uma segunda natureza depois de um tempo. Por exemplo, um jogo como Gone Home pode representar a falta de poder da protagonista em agir na vida da sua família, mas os mecanismos de movimentação e inspeção funcionam perfeitamente.

Papers, please provavelmente é o jogo mais próximo de Getting over it, porque ele conta com a possibilidade de que você não vai conseguir cumprir tudo que ele pede de você, e graças a isso as suas decisões acabam tendo um peso muito grande, e o sentimento de frustração é o resultado.

Getting over it faz com que as mecânicas sejam cruéis e arredias desde o início e não tem medo de deixar bem claro para o jogador que o progresso de mais de uma hora foi apagado, e isso pelas próprias ações do jogador, que não foi capaz de usar corretamente a jogabilidade. Como o próprio Bennett diz, ao montar uma parte excepcionalmente difícil do jogo e não conseguir passar, ele não considerava isso uma culpa dele como desenvolvedor, mas sim uma culpa dele como jogador.

E o sentimento que resulta dessa experiência não é exatamente fácil de digerir, mas é, sim, algo poderoso. É uma experiência que não vai se adequar ao jogador; é preciso que o jogador faça o esforço de se adequar e de aprender, mas talvez, mesmo assim, ele nunca aprenda o suficiente. O terror dessa incerteza é a base de Getting over it.

E essa questão é algo que tem me feito pensar já há muito tempo, mesmo antes de saber da existência desse jogo. Eu acompanho muitas discussões sobre jogos, e eu com frequência vejo as pessoas lutando contra a possibilidade de jogadores que investiram mais dinheiro terem vantagens no jogo, por exemplo. O motivo para isso é óbvio: as pessoas não querem se sentir impotentes perante alguém que seja mais rico. Mas, por quê? A sociedade em que a gente vive hoje já funciona baseada no fato de que tem mais dinheiro vai ter um estudo melhor, mais oportunidades, provavelmente vai conhecer coisas diferentes, etc. Na verdade, na vida contemporânea, a impotência e a frustração batem à nossa porta com muita frequência.

Jogos, entretanto, sempre se pautaram pela ideia de que o talento e o esforço do jogador seriam devidamente recompensados. Em grande medida, isso faz da própria estrutura de jogos um escapismo considerável, e talvez social e filosoficamente improdutivo. Eu acredito que há certamente muito a ser dito sobre como a estrutura de empoderamento que está pressuposta nos jogos pode ajudar uma pessoa a encontrar alguma esperança num mundo em que o indivíduo parece fazer cada vez menos diferença. E essa esperança pode ser chamada de conformismo também, dependendo de quem analisa. Mas isso é uma outra questão.

Getting over it bate de frente com o jogador, e a experiência tem sido complicada desde a primeira árvore, até o maldito corredor vertical de que eu simplesmente não consigo passar. Mas, de alguma forma, depois que o desespero e a frustração que as mecânicas induzem acabam passando, resta uma espécie de paz na experiência: a paz de quem está tentando o seu melhor, sem saber se vai obter sucesso ou não. Ao final, você se envolve com Getting over it não pela hipotética vitória, mas pelo prazer de continuar tentando, mesmo com a incerteza de vencer.

E é por isto que eu sei que ainda vou voltar muitas vezes ao jogo: porque a incerteza não detém o desejo de seguir adiante, mesmo que muitas vezes doa perder tudo. E era isso que eu queria dizer sobre Getting over it. Se você quiser conhecer uma outra reflexão sobre o jogo, eu recomendo o vídeo que o canal Errant Signal fez sobre ele. Até a próxima análise!

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Demon's Souls, 5 anos depois



Olá! Eu sou o Asa e, há exatos cinco anos, eu postei uma análise de Demon’s Souls, o primeiro e único jogo da série que eu tinha jogado até aquele momento. Coincidindo com esse aniversário da minha relação com o jogo, neste mês os servidores do game vão ser definitivamente desligados, e tudo isso me pareceu um excelente momento para complementar um pouco aquele vídeo antigo, corrigir algumas coisinhas e, no geral, repensar um pouco o papel do jogo dentro do contexto da produção da FROM Software.

Como é de praxe, eu vou tentar evitar ao máximo a repetição em relação ao meu vídeo e, por isso mesmo, eu já recomendo que quem não o assistiu veja antes de prosseguir. Além disso, este texto vai ser repleto de spoilers sobre o jogo, então você já está avisado. Para começo de conversa, é preciso dizer que Demon’s Souls é um jogo de PS3, lançado em 2009, desenvolvido pela FROM Software, com uma equipe que posteriormente seria responsável por Dark Souls e Bloodborne, o que fez com que esse grupo ganhasse muito apreço e popularidade em muito pouco tempo.

Uma coisa curiosa sobre Demon’s Souls é que o desenvolvimento do jogo foi excepcionalmente difícil, o que fez com que a Sony, responsável por bancar o projeto, perdesse toda a fé no sucesso do jogo, e também fez com que o diretor Hidetaka Miyazaki assumisse a chefia do desenvolvimento, apesar de ele mesmo ser um desenvolvedor que ingressou na carreira tardiamente e ainda ter bastante para provar. Essa última informação sobre o diretor é importante, e eu vou voltar a ela mais para frente.

Os detalhes técnicos sobre Demon’s Souls são suficientemente conhecidos pela população e você também já deve saber: o jogo é um RPG de ação em terceira pessoa, em que você controla um aventureiro que ingressa no reino de Boletaria, que está sendo destruído por demônios que absorvem as almas dos humanos e vão se tornando cada vez mais fortes.

Ao chegar ao reino, você é morto e conectado ao Nexus, uma estrutura mantida por um misterioso ente chamado Monumental, que prende almas de guerreiros mortos para mantê-los lutando como espíritos contra os demônios, visando atrair o demônio primordial, chamado Old One, para colocá-lo para dormir e salvar o mundo mais uma vez.

Desde o início, o centro da discussão crítica sobre Demon’s Souls sempre foi a dificuldade – inclusive muito do meu vídeo anterior é focado em discutir esse retorno ao desafio que o jogo propõe. Ele é baseado num combate relativamente lento, em que cada ação tem um período de comprometimento longo e inalterável, o que significa que uma escolha errada vai dar uma janela de tempo bem grande para inimigos aproveitarem e destruírem você, o que é algo que eles conseguem em pouquíssimos ataques.

Em grande medida, o uso de mágica permite aliviar um pouco os riscos, já que você não precisa estar tão próximo ao inimigo e, portanto, a chance de ele atacar de imediato é menor, mas ainda assim ele pode desviar e atacar. Simplesmente não há uma estratégia que seja isenta de riscos.

Mas, essas informações já podem ser obtidas em quase qualquer vídeo sobre o jogo, até o meu. Aliás, o Matthewmatosis tem dois vídeos excelentes sobre o jogo, um mais longo e outro, mais curto, que praticamente esgotam a discussão sobre ele. E, por isso, eu indico muito que todos vejam.

O que eu queria destacar um pouco neste texto é a construção da atmosfera do jogo e a especificidade dela, que, para mim, é o que mais me chama a atenção em Demon’s Souls hoje, e é algo que eu praticamente não discuti no meu vídeo, principalmente porque a minha experiência naquela época tinha sido muito mais interagir com o jogo puramente como um desafio do que como um mundo rico de histórias e significados, algo que eu passei a fazer só de Dark Souls em diante.

Hoje o que me chama mais a atenção em Demon’s Souls é a capacidade de passar mensagens a partir dos seus personagens e do seu mundo, embora muito pouco desse mundo fique desfilando em frente ao jogador. Na verdade, o trabalho de Demon’s Soul é o de implementar temas que precisam ser cuidadosamente observados e refletidos pelo jogador, que só então passa a ter o devido conhecimento sobre eles, e aí eventualmente interpretar o que a presença deles ali significa.

Uma coisa de que eu critiquei e que eu costumo criticar quando o assunto é a série Souls é que a trajetória e o destino dos personagens acabam se passando longe do jogador, e você acaba ficando sem ver muita coisa interessante acontecer, e só confere os resultados. É uma coisa até irônica que o método narrativo desses jogos muitas vezes é considerado até mais forte do que uma exposição direta, por ser fruto do trabalho quase arqueológico do jogador, mas, ao mesmo tempo, o preço disso é viver rodeado por personagens que existem quase que só como sombras.

Demon’s Souls, como Bloodborne depois, oferece o universo mais vivo, no sentido de que ainda existem coisas importantes acontecendo, heróis ainda podem ser encontrados e sua presença e destino acaba influenciando muito da interpretação do jogador sobre aquele universo, enquanto a forma naturalmente decaída do universo de Dark Souls ilustra exatamente essa ideia dos personagens como sombras.

Mas, para a gente pensar nas diferenças, primeiro é preciso estabelecer a semelhança temática principal entre esses jogos: todos eles são baseados numa ideia de que uma figura de poder cometeu algo que não deveria, e por isso o universo e as pessoas que o habitam sofrem e precisam agir. Há ainda espaço para as pessoas analisarem psicanaliticamente muito a premissa dessas séries, mas eu vou só citar algo bem por cima. Em Demon’s e Dark Souls, é claramente uma figura paterna quem comete esse erro, e cabe a esses filhos metafóricos agir perante essa herança maldita deixada pelo pai.

Em Bloodborne, as coisas são bem mais complicadas, porque o sistema simbólico se torna mais complexo, e além do pai que comete o erro de lidar com o que não deveria, a gente tem também figuras maternas que agem de forma igualmente violenta; tudo isso para produzir um filho perfeito. Mas, como eu falei, aí a coisa fica muito mais complexa e o trabalho interpretativo vai ter que ficar para alguém com muito mais conhecimento na área do que eu.

A grande diferença entre Demon’s e Dark Souls nesse sentido é que, comparativamente, o mundo de Dark Souls é marcado por um pessimismo triste e, no geral, o sentimento de falta de escapatória é muito mais marcante. Você vê grandes heróis e mesmo companheiros de jornada se perdendo pelo caminho e é difícil não se questionar quando vai ser a vez do seu personagem. Em grande medida, até Dark Souls 2 tentou retomar essa mesma questão, mas o pessimismo deu lugar a uma apatia ou até a um desprezo pelo protagonista.

Demon’s Souls, curiosamente, carrega, em comparação, um tom menos pessimista, embora ainda seja bastante sombrio. Primeiro, a gente precisa identificar que erro é esse cometido por essa figura paterna no jogo. Durante a jornada, a gente pode pensar que o rei Allant conjurou o Old One apenas por poder ou ambição, mas, quando a gente finalmente encontra o rei, na última parte do jogo, ele revela que o Old One existe apenas para dar fim à existência miserável da humanidade. Ser absorvido por ele é o sofrimento final para acabar com todos os outros sofrimentos.

Assim, o grande erro do rei foi entregar-se aos sofrimentos da existência, não lutar e efetivamente abraçar o fim de tudo. Porém, isso não o redime de imediato; pelo contrário, isso faz dele alguém cada vez mais fraco, até se tornar um monstro inútil e horrendo, que só causa pena.

Pensando em retrospecto, a gente lembra de dois outros personagens que se entregaram e que tiveram fins igualmente trágicos: o Crestfallen warrior, que desiste de lutar, fica louco e desaparece; e o Ostrava, que perde o ânimo após acreditar que seu pai também era um demônio. Quando a gente pensa no destino dos três, a gente vê que nenhum encontrou a paz que supostamente buscava: um virou um mostro, outro, enlouqueceu; outro, virou um demônio que defendia quem ele queria ver derrotado.

Com esse destino inevitável, resta aos outros personagens lutar. Mas aí cabe a pergunta sobre como se luta. A forma óbvia e principal é usando o poder das almas: para passar de nível ou adquirir conhecimentos mágicos, é essencial que consumir almas. E aí resta a clara pergunta sobre o que é ou não um demônio no jogo. A definição mais óbvia é que seja alguém que consome almas, mas aí não há diferença alguma entre o jogador e aqueles que ele combate. E isso é um raciocínio que o jogo ativamente promove.

A verdade é que o mundo de Demon’s Souls possui diferenças apenas nominais, mas os próprios sistemas do jogo e a história trabalham para mostrar o quanto essas diferenças são vazias: está altamente implicado que o Old One é, na verdade, Deus, o que tira toda e qualquer diferença entre milagres e magia; o sistema de invasões mostra que a única diferença entre um demônio e alguém lutando para salvar Boletaria é a posição naquele mundo – afinal, o jogador pode exercer ambos os papéis e nada muda; quando o jogador finalmente mata a Maiden Astraea, alguém que manipulava almas com o único fim de curar as pessoas à sua volta, a gente tem que se perguntar o que faz o protagonista tão diferente do grupo chefiado por Mefistófeles.

A própria introdução do jogo afirma que, quando um demônio absorve uma alma humana, a alma dele se torna mais forte, e é literalmente isso que acontece com o protagonista: toda vez que ele mata um demônio, ele pode usar essas almas para se tornar mais forte.

Dessa forma, Demon’s Souls constrói um mundo em que todos os que decidem agir contra o mal desencadeado precisam, de uma forma ou de outra, fazer uso desse mal. Ninguém está isento, e ninguém é diferente. Interesses podem estar em conflito, mas a natureza dos agentes é a mesma. É um universo em que não existe nada puro. Mesmo a Maiden in Black, a personagem mais gentil e desprendida do jogo, é também um demônio.

Se a gente retorna ao simbolismo principal, que é o do grande mal do mundo de Demon’s Souls como esse desejo de autodestruição, o grande significado é que todos sofrem desse mal, dessa dúvida, e que não existe nenhuma ação que não redunde no questionamento, no medo, no sofrimento. Mas, os personagens de Demon’s Souls usam esse mal como combustível para prosseguir.

O mundo de Demon’s Souls acaba sendo uma realidade relativamente otimista porque há meios de prosseguir nesse mundo, mas, ao mesmo tempo, há um peso. O peso das próprias dúvidas, o peso do arrependimento pelas pessoas eventualmente magoadas, o peso pelas tentativas que não deram em nada. Todo desafio a se vencer é assustador e todo desafio vencido carrega, simultaneamente, um sentimento de vitória e o conhecimento de que essa vitória teve um preço. Provavelmente uma lição herdada de Shadow of the Colossus, cujo criador é um dos modelos do Miyazaki na indústria.

É claro que isso tem uma significação universal, faz parte da vida adulta fazer escolhas que deixam arrependimentos e que nos geram dúvidas constantes, apesar dos eventuais ganhos que essas escolhas trouxeram.

Mas, às vezes eu reflito sobre a história e a mensagem desse jogo, e eu me pergunto se ela não cabe especialmente ao diretor Hidetaka Miyazaki, alguém que estudou e se dedicou a uma profissão por vários anos, apenas para entender que aquilo não era o que ele queria. Na sociedade japonesa, não é tão comum alguém abandonar a profissão escolhida e recomeçar com quase 30 anos. As dúvidas sobre um passo desse tamanho não são pequenas, e o sentimento do tempo perdido na velha profissão é um peso grande. Porém, ele não deixou o peso o dominar, foi atrás de seu objetivo e encontrou uma oportunidade para realizá-lo.

Em grande medida, então, Demon’s Souls é um jogo sobre a importância de seguir sempre em frente, e de que isso não é fácil e tem seu preço. Todos estamos sujeitos a isso, mas todos podemos prosseguir. A história do jogo codifica essa ideia em seus vários personagens, que acabam funcionando menos como figuras humanizadas, e mais como reflexos de diversas facetas que seu personagem pode assumir naquele mundo, mas que também o próprio jogador pode assumir. É a presença e ação conjunta deles que coloca o mecanismo de Demon’s Souls para funcionar, e não só a personalidade deles.

Além disso, o próprio sistema de invasão os inúmeros desafios do jogo fazem a experiência funcionar como esse mundo ambíguo, em que o bem não vem sem o mal, e que, abraçando os dois papéis de uma forma ativa, consegue-se chegar em algum lugar. E era isso que eu queria dizer sobre Demon’s Souls. Até a próxima análise!