Olá! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Getting over it with Bennett Foddy, jogo
desenvolvido pelo próprio Bennett para PC e iOS, e lançado em 2017. Getting over it é um jogo muito
interessante, porque apresenta algumas questões que já me faziam pensar há
algum tempo, e que eu queria dividir com vocês, para a gente tentar entender
tudo melhor. Mas, antes de a gente começar de fato, eu preciso avisar que este
é o primeiro jogo que eu comento neste canal, mas que eu não cheguei a
terminar. Se, para você, isso tira a credibilidade do meu comentário, fique à
vontade para não continuar a ler. Eu agradeço por você ter chegado até aqui. Caso você queira discutir mesmo assim, vamos lá.
Getting over it, na verdade, é um jogo
muito simples, que, de múltiplas formas, é completamente absurdo. O jogador
controla um homem que acorda na base de uma pilha insana de coisas, formando
uma montanha. Essa pilha de coisas não faz nenhum sentido, começando como uma
montanha, com pedras, mas eventualmente acrescentando objetos que as leis da
Física certamente não permitiriam que fossem empilhados da forma que são nesse
jogo.
O
seu personagem também tem o seu componente absurdo: é um homem preso num
caldeirão da cintura para baixo – um caldeirão que, aliás, é obviamente pequeno
demais para conter as pernas do homem. Além desse caldeirão, tudo que esse
homem tem é um martelo. E, com esse martelo, ele precisa subir até o topo da
montanha absurda.
O
desafio do jogo é, então, usar os movimentos do martelo para subir. A forma
como se faz isso é usando os movimentos do mouse
para determinar o a trajetória do martelo. Com isso, você usa o impulso e a
força centrífuga para subir ou se mover. Parece simples, e é, mas não quer
dizer que seja fácil.
O
propósito do caldeirão é obviamente impossibilitar que o jogador posicione o
seu personagem de forma precisa, o que deixa toda e qualquer movimentação a
cabo dos movimentos do martelo, que são muito mais imprevisíveis, tanto em
termos da trajetória quanto da força resultantes de cada ato. Além disso, como
há uma multiplicidade de terrenos na tal montanha, alguns deles podem reagir de
forma drasticamente diferente às mesmas ações do jogador.
Com
isso, a jogabilidade de Getting over it
se torna não necessariamente ruim ou imprecisa por natureza, mas ela mantém um
componente arredio durante toda a experiência. É claro que há jogadores capazes
de dominar 100% dos movimentos, e de executar uma speedrun do jogo em menos de dez minutos, mas é razoável entender
que o design do jogo pressupõe esse
caráter arredio, porque o jogo por diversas vezes mostra que sua intenção é
deixar o jogador sempre tenso e, mais importante, sujeito a erros que levam a
grandes perdas.
Embora
a montanha de Getting over it
aparente ser algo que foi montado sem nenhum cuidado ou planejamento, há
diversos momentos que deixam claríssimo que a estrutura foi construída de forma
a aproveitar erros em potencial do jogador para fazê-lo perder uma quantidade
imensa de progresso de uma só vez. Assim, um movimento um pouco mais brusco
pode resultar no jogador voltando para o início, e tendo que subir tudo de
novo. Nesses momentos, o próprio Bennett aparece para expressar a mensagem do
jogo.
A
ideia do jogo é fazer com que o jogador sinta o amargor da perda, o sentimento
de que seu progresso foi apagado e que é preciso começar de novo, o que,
segundo o desenvolvedor, é o sentimento mais intenso que existe. E, começando
de novo, o jogador precisa aprender um pouco mais a usar os controles, mas, por
mais que você aprenda, eles nunca parecem se tornar intuitivos como os
controles de um jogo tradicional procuram ser.
Na
prática, isso significa que Getting over
it é um jogo extremamente tenso e repleto de frustrações. O próprio Bennett
afirma que jogá-lo depois de um dia estressante pode não ser a melhor ideia, e
que ele não vai te julgar se você não aguentar o peso emocional das repetidas
derrotas.
A
mistura de controles arredios e um cenário traiçoeiro é o que faz de Getting over it algo único. Diversos
jogos implicam a necessidade de começar de novo, mas isso geralmente vem
acompanhado do sentimento de estar fazendo algum progresso, mesmo que esse
progresso esteja implícito. Se você ficar travado num chefe em Dark Souls, por exemplo, você pelo menos
já explorou a área dele, então houve um progresso tangível; se você teve que
recomeçar uma playthrough de Binding of Isaac, pelo menos você já
conheceu alguns dos power-ups e os
padrões de ataques dos inimigos e chefes. E, nesses dois jogos, o jogador tem
confiança nas suas habilidades, na sua capacidade de controlar o personagem
principal.
Para
o Bennett, é nessa confiança que está o problema: um desafio é realmente
assustador e marcante se você tiver certeza de que, com treino e empenho, você
vai conseguir superar? Para o criador de Getting
over it, desafios reais são aqueles que confrontam o jogador com tamanha
indiferença que fazem o jogador questionar se ele vai realmente ser capaz de
superá-lo. E o jogo tenta justamente se apresentar como um desses desafios.
Algo frustrante, arredio e indiferente.
Nesse
sentido, mesmo sem ter terminado ainda, eu acredito que já vivi a experiência
que Getting over it queria passar. E
essa experiência é algo que expressa muitos dos meus interesses sobre a estrutura
e os significados de jogos. Quem é inscrito aqui no canal sabe que uma das
grandes questões que perpassam os meus vídeos é como passar o sentimento de
fracasso e impotência dentro de um jogo, uma forma de arte que é
tradicionalmente estruturada para dar poder ao jogador.
Até
então, eu só tinha visto essa questão respondida na forma como o jogo
contextualiza suas mecânicas, mas as mecânicas em si funcionavam de forma
responsiva e quase como uma segunda natureza depois de um tempo. Por exemplo, um
jogo como Gone Home pode representar
a falta de poder da protagonista em agir na vida da sua família, mas os
mecanismos de movimentação e inspeção funcionam perfeitamente.
Papers, please provavelmente é o jogo
mais próximo de Getting over it,
porque ele conta com a possibilidade de que você não vai conseguir cumprir tudo
que ele pede de você, e graças a isso as suas decisões acabam tendo um peso
muito grande, e o sentimento de frustração é o resultado.
Getting over it faz com que as mecânicas
sejam cruéis e arredias desde o início e não tem medo de deixar bem claro para
o jogador que o progresso de mais de uma hora foi apagado, e isso pelas
próprias ações do jogador, que não foi capaz de usar corretamente a
jogabilidade. Como o próprio Bennett diz, ao montar uma parte excepcionalmente
difícil do jogo e não conseguir passar, ele não considerava isso uma culpa dele
como desenvolvedor, mas sim uma culpa dele como jogador.
E
o sentimento que resulta dessa experiência não é exatamente fácil de digerir,
mas é, sim, algo poderoso. É uma experiência que não vai se adequar ao jogador;
é preciso que o jogador faça o esforço de se adequar e de aprender, mas talvez,
mesmo assim, ele nunca aprenda o suficiente. O terror dessa incerteza é a base
de Getting over it.
E
essa questão é algo que tem me feito pensar já há muito tempo, mesmo antes de
saber da existência desse jogo. Eu acompanho muitas discussões sobre jogos, e
eu com frequência vejo as pessoas lutando contra a possibilidade de jogadores
que investiram mais dinheiro terem vantagens no jogo, por exemplo. O motivo
para isso é óbvio: as pessoas não querem se sentir impotentes perante alguém
que seja mais rico. Mas, por quê? A sociedade em que a gente vive hoje já
funciona baseada no fato de que tem mais dinheiro vai ter um estudo melhor,
mais oportunidades, provavelmente vai conhecer coisas diferentes, etc. Na
verdade, na vida contemporânea, a impotência e a frustração batem à nossa porta
com muita frequência.
Jogos,
entretanto, sempre se pautaram pela ideia de que o talento e o esforço do
jogador seriam devidamente recompensados. Em grande medida, isso faz da própria
estrutura de jogos um escapismo considerável, e talvez social e filosoficamente
improdutivo. Eu acredito que há certamente muito a ser dito sobre como a
estrutura de empoderamento que está pressuposta nos jogos pode ajudar uma
pessoa a encontrar alguma esperança num mundo em que o indivíduo parece fazer
cada vez menos diferença. E essa esperança pode ser chamada de conformismo
também, dependendo de quem analisa. Mas isso é uma outra questão.
Getting over it bate de frente com o
jogador, e a experiência tem sido complicada desde a primeira árvore, até o
maldito corredor vertical de que eu simplesmente não consigo passar. Mas, de
alguma forma, depois que o desespero e a frustração que as mecânicas induzem
acabam passando, resta uma espécie de paz na experiência: a paz de quem está
tentando o seu melhor, sem saber se vai obter sucesso ou não. Ao final, você se
envolve com Getting over it não pela
hipotética vitória, mas pelo prazer de continuar tentando, mesmo com a
incerteza de vencer.
E é por isto que eu sei
que ainda vou voltar muitas vezes ao jogo: porque a incerteza não detém o
desejo de seguir adiante, mesmo que muitas vezes doa perder tudo. E era isso
que eu queria dizer sobre Getting over it.
Se você quiser conhecer uma outra reflexão sobre o jogo, eu recomendo o vídeo que o canal Errant Signal fez sobre ele. Até a próxima análise!