Olá! Eu sou o Asa e, há exatos cinco anos, eu postei
uma análise de Demon’s Souls, o
primeiro e único jogo da série que eu tinha jogado até aquele momento.
Coincidindo com esse aniversário da minha relação com o jogo, neste mês os
servidores do game vão ser
definitivamente desligados, e tudo isso me pareceu um excelente momento para complementar
um pouco aquele vídeo antigo, corrigir algumas coisinhas e, no geral, repensar
um pouco o papel do jogo dentro do contexto da produção da FROM Software.
Como
é de praxe, eu vou tentar evitar ao máximo a repetição em relação ao meu vídeo e, por isso mesmo, eu já recomendo que quem não o assistiu veja antes de
prosseguir. Além disso, este texto vai ser repleto de spoilers sobre o jogo, então você já está avisado. Para começo de
conversa, é preciso dizer que Demon’s
Souls é um jogo de PS3, lançado em 2009, desenvolvido pela FROM Software,
com uma equipe que posteriormente seria responsável por Dark Souls e Bloodborne,
o que fez com que esse grupo ganhasse muito apreço e popularidade em muito
pouco tempo.
Uma
coisa curiosa sobre Demon’s Souls é
que o desenvolvimento do jogo foi excepcionalmente difícil, o que fez com que a
Sony, responsável por bancar o projeto, perdesse toda a fé no sucesso do jogo,
e também fez com que o diretor Hidetaka Miyazaki assumisse a chefia do
desenvolvimento, apesar de ele mesmo ser um desenvolvedor que ingressou na
carreira tardiamente e ainda ter bastante para provar. Essa última informação
sobre o diretor é importante, e eu vou voltar a ela mais para frente.
Os
detalhes técnicos sobre Demon’s Souls
são suficientemente conhecidos pela população e você também já deve saber: o
jogo é um RPG de ação em terceira pessoa, em que você controla um aventureiro
que ingressa no reino de Boletaria, que está sendo destruído por demônios que
absorvem as almas dos humanos e vão se tornando cada vez mais fortes.
Ao
chegar ao reino, você é morto e conectado ao Nexus, uma estrutura mantida por
um misterioso ente chamado Monumental, que prende almas de guerreiros mortos
para mantê-los lutando como espíritos contra os demônios, visando atrair o
demônio primordial, chamado Old One, para colocá-lo para dormir e salvar o
mundo mais uma vez.
Desde
o início, o centro da discussão crítica sobre Demon’s Souls sempre foi a dificuldade – inclusive muito do meu
vídeo anterior é focado em discutir esse retorno ao desafio que o jogo propõe.
Ele é baseado num combate relativamente lento, em que cada ação tem um período
de comprometimento longo e inalterável, o que significa que uma escolha errada
vai dar uma janela de tempo bem grande para inimigos aproveitarem e destruírem
você, o que é algo que eles conseguem em pouquíssimos ataques.
Em grande medida, o uso
de mágica permite aliviar um pouco os riscos, já que você não precisa estar tão
próximo ao inimigo e, portanto, a chance de ele atacar de imediato é menor, mas
ainda assim ele pode desviar e atacar. Simplesmente não há uma estratégia que
seja isenta de riscos.
Mas, essas informações
já podem ser obtidas em quase qualquer vídeo sobre o jogo, até o meu. Aliás, o
Matthewmatosis tem dois vídeos excelentes sobre o jogo, um mais longo e outro,
mais curto, que praticamente esgotam a discussão sobre ele. E, por isso, eu
indico muito que todos vejam.
O que eu queria
destacar um pouco neste texto é a construção da atmosfera do jogo e a
especificidade dela, que, para mim, é o que mais me chama a atenção em Demon’s Souls hoje, e é algo que eu
praticamente não discuti no meu vídeo, principalmente porque a minha experiência
naquela época tinha sido muito mais interagir com o jogo puramente como um
desafio do que como um mundo rico de histórias e significados, algo que eu
passei a fazer só de Dark Souls em
diante.
Hoje o que me chama
mais a atenção em Demon’s Souls é a
capacidade de passar mensagens a partir dos seus personagens e do seu mundo,
embora muito pouco desse mundo fique desfilando em frente ao jogador. Na
verdade, o trabalho de Demon’s Soul é
o de implementar temas que precisam ser cuidadosamente observados e refletidos
pelo jogador, que só então passa a ter o devido conhecimento sobre eles, e aí
eventualmente interpretar o que a presença deles ali significa.
Uma coisa de que eu
critiquei e que eu costumo criticar quando o assunto é a série Souls é que a trajetória e o destino dos
personagens acabam se passando longe do jogador, e você acaba ficando sem ver
muita coisa interessante acontecer, e só confere os resultados. É uma coisa até
irônica que o método narrativo desses jogos muitas vezes é considerado até mais
forte do que uma exposição direta, por ser fruto do trabalho quase arqueológico
do jogador, mas, ao mesmo tempo, o preço disso é viver rodeado por personagens
que existem quase que só como sombras.
Demon’s
Souls, como Bloodborne
depois, oferece o universo mais vivo, no sentido de que ainda existem coisas
importantes acontecendo, heróis ainda podem ser encontrados e sua presença e
destino acaba influenciando muito da interpretação do jogador sobre aquele
universo, enquanto a forma naturalmente decaída do universo de Dark Souls ilustra exatamente essa ideia
dos personagens como sombras.
Mas, para a gente
pensar nas diferenças, primeiro é preciso estabelecer a semelhança temática
principal entre esses jogos: todos eles são baseados numa ideia de que uma
figura de poder cometeu algo que não deveria, e por isso o universo e as
pessoas que o habitam sofrem e precisam agir. Há ainda espaço para as pessoas
analisarem psicanaliticamente muito a premissa dessas séries, mas eu vou só
citar algo bem por cima. Em Demon’s e
Dark Souls, é claramente uma figura
paterna quem comete esse erro, e cabe a esses filhos metafóricos agir perante
essa herança maldita deixada pelo pai.
Em Bloodborne, as coisas são bem mais complicadas, porque o sistema
simbólico se torna mais complexo, e além do pai que comete o erro de lidar com
o que não deveria, a gente tem também figuras maternas que agem de forma
igualmente violenta; tudo isso para produzir um filho perfeito. Mas, como eu
falei, aí a coisa fica muito mais complexa e o trabalho interpretativo vai ter
que ficar para alguém com muito mais conhecimento na área do que eu.
A grande diferença
entre Demon’s e Dark Souls nesse sentido é que, comparativamente, o mundo de Dark Souls é marcado por um pessimismo
triste e, no geral, o sentimento de falta de escapatória é muito mais marcante.
Você vê grandes heróis e mesmo companheiros de jornada se perdendo pelo caminho
e é difícil não se questionar quando vai ser a vez do seu personagem. Em grande
medida, até Dark Souls 2 tentou
retomar essa mesma questão, mas o pessimismo deu lugar a uma apatia ou até a um
desprezo pelo protagonista.
Demon’s
Souls, curiosamente, carrega, em comparação, um tom menos
pessimista, embora ainda seja bastante sombrio. Primeiro, a gente precisa
identificar que erro é esse cometido por essa figura paterna no jogo. Durante a
jornada, a gente pode pensar que o rei Allant conjurou o Old One apenas por
poder ou ambição, mas, quando a gente finalmente encontra o rei, na última
parte do jogo, ele revela que o Old One existe apenas para dar fim à existência
miserável da humanidade. Ser absorvido por ele é o sofrimento final para acabar
com todos os outros sofrimentos.
Assim, o grande erro do
rei foi entregar-se aos sofrimentos da existência, não lutar e efetivamente abraçar
o fim de tudo. Porém, isso não o redime de imediato; pelo contrário, isso faz
dele alguém cada vez mais fraco, até se tornar um monstro inútil e horrendo,
que só causa pena.
Pensando em
retrospecto, a gente lembra de dois outros personagens que se entregaram e que
tiveram fins igualmente trágicos: o Crestfallen warrior, que desiste de lutar,
fica louco e desaparece; e o Ostrava, que perde o ânimo após acreditar que seu
pai também era um demônio. Quando a gente pensa no destino dos três, a gente vê
que nenhum encontrou a paz que supostamente buscava: um virou um mostro, outro,
enlouqueceu; outro, virou um demônio que defendia quem ele queria ver
derrotado.
Com esse destino
inevitável, resta aos outros personagens lutar. Mas aí cabe a pergunta sobre
como se luta. A forma óbvia e principal é usando o poder das almas: para passar
de nível ou adquirir conhecimentos mágicos, é essencial que consumir almas. E
aí resta a clara pergunta sobre o que é ou não um demônio no jogo. A definição
mais óbvia é que seja alguém que consome almas, mas aí não há diferença alguma
entre o jogador e aqueles que ele combate. E isso é um raciocínio que o jogo
ativamente promove.
A verdade é que o mundo
de Demon’s Souls possui diferenças
apenas nominais, mas os próprios sistemas do jogo e a história trabalham para
mostrar o quanto essas diferenças são vazias: está altamente implicado que o
Old One é, na verdade, Deus, o que tira toda e qualquer diferença entre
milagres e magia; o sistema de invasões mostra que a única diferença entre um
demônio e alguém lutando para salvar Boletaria é a posição naquele mundo –
afinal, o jogador pode exercer ambos os papéis e nada muda; quando o jogador
finalmente mata a Maiden Astraea, alguém que manipulava almas com o único fim
de curar as pessoas à sua volta, a gente tem que se perguntar o que faz o
protagonista tão diferente do grupo chefiado por Mefistófeles.
A própria introdução do
jogo afirma que, quando um demônio absorve uma alma humana, a alma dele se
torna mais forte, e é literalmente isso que acontece com o protagonista: toda
vez que ele mata um demônio, ele pode usar essas almas para se tornar mais forte.
Dessa forma, Demon’s Souls constrói um mundo em que
todos os que decidem agir contra o mal desencadeado precisam, de uma forma ou
de outra, fazer uso desse mal. Ninguém está isento, e ninguém é diferente.
Interesses podem estar em conflito, mas a natureza dos agentes é a mesma. É um
universo em que não existe nada puro. Mesmo a Maiden in Black, a personagem
mais gentil e desprendida do jogo, é também um demônio.
Se a gente retorna ao
simbolismo principal, que é o do grande mal do mundo de Demon’s Souls como esse desejo de autodestruição, o grande
significado é que todos sofrem desse mal, dessa dúvida, e que não existe
nenhuma ação que não redunde no questionamento, no medo, no sofrimento. Mas, os
personagens de Demon’s Souls usam
esse mal como combustível para prosseguir.
O mundo de Demon’s Souls acaba sendo uma realidade
relativamente otimista porque há meios de prosseguir nesse mundo, mas, ao mesmo
tempo, há um peso. O peso das próprias dúvidas, o peso do arrependimento pelas
pessoas eventualmente magoadas, o peso pelas tentativas que não deram em nada.
Todo desafio a se vencer é assustador e todo desafio vencido carrega,
simultaneamente, um sentimento de vitória e o conhecimento de que essa vitória
teve um preço. Provavelmente uma lição herdada de Shadow of the Colossus, cujo criador é um dos modelos do Miyazaki
na indústria.
É claro que isso tem
uma significação universal, faz parte da vida adulta fazer escolhas que deixam
arrependimentos e que nos geram dúvidas constantes, apesar dos eventuais ganhos
que essas escolhas trouxeram.
Mas, às vezes eu
reflito sobre a história e a mensagem desse jogo, e eu me pergunto se ela não
cabe especialmente ao diretor Hidetaka Miyazaki, alguém que estudou e se
dedicou a uma profissão por vários anos, apenas para entender que aquilo não
era o que ele queria. Na sociedade japonesa, não é tão comum alguém abandonar a
profissão escolhida e recomeçar com quase 30 anos. As dúvidas sobre um passo
desse tamanho não são pequenas, e o sentimento do tempo perdido na velha profissão
é um peso grande. Porém, ele não deixou o peso o dominar, foi atrás de seu objetivo
e encontrou uma oportunidade para realizá-lo.
Em grande medida,
então, Demon’s Souls é um jogo sobre
a importância de seguir sempre em frente, e de que isso não é fácil e tem seu
preço. Todos estamos sujeitos a isso, mas todos podemos prosseguir. A história
do jogo codifica essa ideia em seus vários personagens, que acabam funcionando
menos como figuras humanizadas, e mais como reflexos de diversas facetas que
seu personagem pode assumir naquele mundo, mas que também o próprio jogador
pode assumir. É a presença e ação conjunta deles que coloca o mecanismo de Demon’s Souls para funcionar, e não só a
personalidade deles.
Além disso, o próprio
sistema de invasão os inúmeros desafios do jogo fazem a experiência funcionar
como esse mundo ambíguo, em que o bem não vem sem o mal, e que, abraçando os
dois papéis de uma forma ativa, consegue-se chegar em algum lugar. E era isso
que eu queria dizer sobre Demon’s Souls.
Até a próxima análise!
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