Olá! Eu sou o Asa e hoje vou falar de The red strings club, jogo desenvolvido
pelo estúdio Deconstructeam e lançado para PC no comecinho deste ano. Ele é um
jogo muito interessante, que trouxe à tona algumas reflexões sobre cyberpunk que eu faço já tem algum
tempo.
The red strings club é um jogo com uma
premissa e mecânicas muito interessantes, que refletem muito da visão de mundo
que o jogo procura criar. O jogo se passa num futuro relativamente distante,
num cenário cyberpunk tradicional:
corporações se tornaram extremamente poderosas, mantêm vínculos com o governo,
e os avanços tecnológicos que elas alcançam são usados para alterar a
consciência e o corpo humanos sem muito questionamento.
O jogo se inicia com essa situação já em curso. A empresa que o jogo destaca,
chamada Supercontinent, é especializada em criar ferramentas para que os
humanos possam ser mais felizes. Com a ajuda de um modelo de robôs supostamente
capaz de julgar a personalidade de um indivíduo, a empresa fornece um meio de
ele se apaziguar, embora não necessariamente seja aquilo que o sujeito quer.
Por exemplo, diante de uma pessoa que só quer subir na vida, o robô pode
fornecer ferramentas para que ele, de fato, consiga sucesso, ou então pode
simplesmente retirar esse desejo de ascensão.
Nesse
contexto, o casal Brandeis e Donovan descobre que o novo plano da
Supercontinent envolve manipular as emoções humanas sem que os indivíduos
percebam, especialmente limitando sentimentos negativos, como insatisfação,
frustração e tristeza. Eles resolvem então agir para investigar melhor a
situação e detê-la, caso ela seja tão ruim quanto eles acham de início.
Na
prática, o gameplay do jogo é
dividido em duas partes: a primeira se dá dentro do The red strings club, que pertence ao Donovan, que trabalha lá como
barman. O lugar é famoso por conta da habilidade do Donovan de intensificar
certos sentimentos dos indivíduos por meio de bebidas. Ou seja, cada drink que ele prepara pode ser usado
para deixar o cliente num certo humor, o que o próprio Donovan usa frequentemente
como ferramenta para extrair informações, já que ele é um negociante de
informações nas horas vagas.
Sendo
assim, a mecânica principal enquanto você controla o Donovan, que seria uns
dois terços do jogo, é baseada em preparar os drinks certos e fazer as perguntas que te aproximem mais de
entender o que a Supercontinent pretende. Basicamente, o jogador tem que saber
misturar as bebidas na quantidade certa e depois, fazer perguntas que se
encaixem com o humor que você escolheu.
Com
isso, uma grande parte do jogo acaba se apoiando na qualidade dos diálogos e
nisso The red strings club certamente
obtém êxito. Cada personagem que passa pelo bar é interessante de um jeito
particular. Algumas conversas são tensas, outras são mais relaxadas, os
assuntos e o tom variam, e a própria característica das bebidas que o Donovan
prepara justifica o fato de que os clientes se tornam muito mais falantes do
que seria de se esperar numa conversa normal de bar. Assim, essa parte da
experiência se torna muito espontânea e instigante.
Além
da riqueza dos personagens, vale também dizer que os debates que eles colocam
são bem questionadores, especialmente por meio do robô Akara que trabalha no
bar. O jogo frequentemente discute as diversas implicações dos atos das
corporações e mesmo daqueles que lutam contra elas, e isso faz com que o
jogador tenha apenas o mínimo de pressuposições não questionadas pelo espaço do
próprio jogo, o que é interessante. Mas, eu volto a isso mais para frente.
A
segunda parte do jogo é, de fato, a execução do plano contra a Supercontinent,
e aí ele deixa de ser um jogo sobre diálogos e assume uma estrutura muito mais
próxima de puzzles, embora não seja
necessariamente o caso de ser aquele tipo de puzzle que exige só uma resposta. Ainda permanece a impressão de
que o jogador tem margem de manobra para agir de diversas maneiras.
De qualquer forma, esse
último terço do jogo acaba passando um senso de linearidade maior do que o
resto. Isso pode até ser justificado, porque faz sentido que o jogo seja mais
focado no momento de agir do que ele era no momento de planejamento, mas, mesmo
com isso em mente, é difícil negar que o jogo perde profundidade no processo.
O que permanece, do
princípio ao fim, em termos de mecânicas, é que The red strings club apresenta uma experiência voltada à ausência
de conflito direto. Muitas vezes a gente vê críticas a jogos por assumirem a
violência como forma de expressão primordial, especialmente quando se trata de
um jogo em que há um conflito e interação com personagens. The red strings club transporta a tensão para a palavra, o diálogo,
e investe na manipulação e na mentira como ferramentas básicas. Nesse sentido,
é um jogo que propõe algo muito diferente do que estamos acostumados.
Uma premissa como a do
jogo certamente poderia se transformar num jogo de stealth em que o jogador invadiria diversos escritórios vigiados
para obter informações, interrogaria forçadamente alguns NPCs, e terminaria
invadindo a base central. Poderia se encaixar perfeitamente como uma side quest para um futuro Deus Ex. Entretanto, como o jogo decide
focar em personagens comuns, que não são especialmente habilidosos em termos
táticos e militares, eles investem nos seus talentos particulares para alcançar
seus objetivos. E o resultado é que o jogo apresenta mecânicas que parecem
inovadoras e que criam uma experiência que faz sentido nesse mundo. Afinal, um
dos temas mais clássicos do mundo cyberpunk
é as dificuldades do indivíduo frente ao colosso das corporações.
E, com isso, a gente
chega nas questões temáticas do jogo. A temática cyberpunk é muito complexa e foi construída por inúmeras obras, que
a tratam de uma forma específica. Mas, no geral, as mais famosas delas costumam
tratar o tema sob duas facetas: uma individual, e outra, coletiva.
Tradicionalmente, a
faceta que eu chamei de individual trata das influências da tecnologia no que
os artistas associam como sendo a natureza humana. Para mim, essas temáticas
são as que geralmente mais passam um sentimento de importância e profundidade,
mas que acabam dizendo muito pouco no fim das contas. E isso porque, ao longo
da história, a concepção de ser humano foi sendo transformada inúmeras vezes, e
o tom que essas obras assumem muitas vezes parece o de uma pessoa atrasada no
tempo e que simplesmente tem medo do futuro.
Hoje em dia é
finalmente tido como aceitável uma pessoa viver sem gerar filhos, o que era
considerado uma falha dessa pessoa como ser humano por um bom tempo. Além
disso, aos poucos a gente tem aceitado a possibilidade de relacionamentos
diferentes do tradicional, e mesmo diferentes tipos de identidade. Isso são
transformações do mundo moderno.
Mas, para a gente
continuar só na questão da tecnologia, muitas das questões de The red string club tratam do poder da
tecnologia mudar nosso comportamento, nossos sentimentos e, assim, mudar nossa
identidade. Na verdade, essa é uma das questões que mais contribuem para que
pessoas se mantenham longe de tratamentos psicológicos, apesar de certamente
precisarem. Muitos sentem medo das técnicas de um psicólogo, ou mesmo do efeito
que remédios podem ter sobre a sua personalidade.
Eu certamente acho
saudável que a gente não aceite nada que age sobre nós sem antes pensar sobre o
assunto, mas há alguns medos naturais do novo e do diferente que muitas vezes
atravancam melhorias reais no mundo. E muitas vezes o tom de obras cyberpunk acaba assumindo muito desse
medo em suas narrativas.
Deus
Ex: Human Revolution retrata as pessoas que incorporam
máquinas ao próprio corpo como pessoas suscetíveis a serem controladas por quem
produz essas melhorias. O seriado Altered
Carbon trata a existência da morte como um mecanismo de controle social,
quase como uma reinvenção da teoria malthusiana, que via as doenças e as
guerras como uma ferramenta de controle populacional. O seriado ainda trata a
necessidade de morte dos pais para o amadurecimento e a independência dos
filhos, o que é sem fundamento nenhum.
The
red strings club faz um esforço saudável para atualizar
esse tipo de tema, mas relativizando-o sempre que possível. Assim, embora o
tema central seja lutar contra uma tecnologia que mudaria o comportamento
humano, é mostrado diversas vezes que nem o Donovan, nem o Brandeis entendem
exatamente do que essa tecnologia se trata e quais serão seus efeitos no longo
prazo. Além disso, o argumento de que eles estão lutando porque o ato de
manipular pessoas é errado acaba se mostrando contraditório porque 100% do que
os protagonistas fazem é manipular as pessoas à sua volta.
Dessa forma, o jogo
acaba fazendo tudo que pode para relativizar o medo do novo que ele mesmo
propõe, até porque o jogo parece ter uma noção de todos os problemas que esse
mesmo medo causou e causa. Ainda assim, considerando a história como um todo e
a decisão dos personagens em manter sua missão, eu acredito que o tom de medo
da mudança continua predominando, especialmente porque o jogo ainda atualiza
muitas das teorias conspiratórias que são bastante usuais no gênero cyberpunk.
Eu acredito que está na
faceta coletiva do cyberpunk a sua maior
riqueza. Mesmo que muito raramente as obras foquem nisso, os mundos construídos
nesse gênero são marcados por uma profunda divisão social. Há sempre uma
interpretação de que o avanço tecnológico propicia ganhos aos que já são mais
ricos, enquanto os pobres são deixados ainda mais de lado. Com isso, até os
próprios governos são relativamente esvaziados de poder, e o universo do cyberpunk acaba sendo marcado por leis
que raramente se aplicam.
Voltando às
comparações, Blade runner, por
exemplo, cria um mundo em que a exploração passou dos pobres para os
replicantes, que, além de viverem menos, são sumariamente exterminados se
desviarem do propósito para que foram criados. Total recall, conhecido por nós aqui como Vingador do futuro, coloca uma situação em que os pobres devem
pagar pela sua própria sobrevivência, o que acaba espelhando muitas situações
de trabalho escravo por dívida que a gente vê acontecendo até hoje.
Akira
retrata um governo com prioridades completamente separadas do povo, o que gera
muita insatisfação social, rebeldia e arruaça. E o próprio Deus Ex: Human Revolution, quando não está reforçando o medo do
novo, consegue mostrar um pouco da resistência da população contra uma nova
tecnologia por conta de uma tradição qualquer.
Curiosamente, como The red strings club se passa sempre em
lugares fechados e pequenos, quase não há interação com o mundo de fora, e os
personagens só interagem com pessoas das classes altas daquele mundo:
executivos, engenheiros, etc. Assim, o mundo do jogo parece muito mais fechado,
limitado, e acaba perdendo um dos aspectos mais ricos e clássicos do mundo cyberpunk, que é mostrar, de forma
exagerada, questões com que nos deparamos todos os dias. Mesmo Altered Carbon foi capaz de transmitir
mais nesse sentido.
Com isso, The red strings club acaba se
configurando como uma experiência que se dedica muito mais a discutir ideias e
crenças sobre identidade, sentimentos e liberdade emocional. E, nesse sentido,
ele acaba triunfando mais pelas perguntas que levanta do que pelas respostas
que fornece. A ética é um conjunto de ferramentas que usamos para resolver
situações concretas com que podemos ou não nos defrontar um dia. E o jogo
trabalha mais em cima dessa ética, e abandona o espaço público em favor do
privado nesse processo.
Pode não ser o mais
ambicioso dos projetos, mas consegue aliar um gameplay que faz sentido com sua proposta e que faz o jogador parar
para pensar antes de responder uma pergunta, não só por medo da repercussão da
sua resposta no mundo do jogo, mas porque realmente são questões complexas e
interessantes. E as respostas que o jogo fornece acabam importando menos do que
aquelas que você mesmo formulou e discutiu com os NPCs.
E era isso que eu
queria dizer sobre The red strings club.
Até a próxima análise!
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