quarta-feira, 7 de março de 2018

The red strings club - Pensando sobre o jogo




Olá! Eu sou o Asa e hoje vou falar de The red strings club, jogo desenvolvido pelo estúdio Deconstructeam e lançado para PC no comecinho deste ano. Ele é um jogo muito interessante, que trouxe à tona algumas reflexões sobre cyberpunk que eu faço já tem algum tempo.

The red strings club é um jogo com uma premissa e mecânicas muito interessantes, que refletem muito da visão de mundo que o jogo procura criar. O jogo se passa num futuro relativamente distante, num cenário cyberpunk tradicional: corporações se tornaram extremamente poderosas, mantêm vínculos com o governo, e os avanços tecnológicos que elas alcançam são usados para alterar a consciência e o corpo humanos sem muito questionamento.

O jogo se inicia com essa situação já em curso. A empresa que o jogo destaca, chamada Supercontinent, é especializada em criar ferramentas para que os humanos possam ser mais felizes. Com a ajuda de um modelo de robôs supostamente capaz de julgar a personalidade de um indivíduo, a empresa fornece um meio de ele se apaziguar, embora não necessariamente seja aquilo que o sujeito quer. Por exemplo, diante de uma pessoa que só quer subir na vida, o robô pode fornecer ferramentas para que ele, de fato, consiga sucesso, ou então pode simplesmente retirar esse desejo de ascensão.

Nesse contexto, o casal Brandeis e Donovan descobre que o novo plano da Supercontinent envolve manipular as emoções humanas sem que os indivíduos percebam, especialmente limitando sentimentos negativos, como insatisfação, frustração e tristeza. Eles resolvem então agir para investigar melhor a situação e detê-la, caso ela seja tão ruim quanto eles acham de início.

Na prática, o gameplay do jogo é dividido em duas partes: a primeira se dá dentro do The red strings club, que pertence ao Donovan, que trabalha lá como barman. O lugar é famoso por conta da habilidade do Donovan de intensificar certos sentimentos dos indivíduos por meio de bebidas. Ou seja, cada drink que ele prepara pode ser usado para deixar o cliente num certo humor, o que o próprio Donovan usa frequentemente como ferramenta para extrair informações, já que ele é um negociante de informações nas horas vagas.

Sendo assim, a mecânica principal enquanto você controla o Donovan, que seria uns dois terços do jogo, é baseada em preparar os drinks certos e fazer as perguntas que te aproximem mais de entender o que a Supercontinent pretende. Basicamente, o jogador tem que saber misturar as bebidas na quantidade certa e depois, fazer perguntas que se encaixem com o humor que você escolheu.

Com isso, uma grande parte do jogo acaba se apoiando na qualidade dos diálogos e nisso The red strings club certamente obtém êxito. Cada personagem que passa pelo bar é interessante de um jeito particular. Algumas conversas são tensas, outras são mais relaxadas, os assuntos e o tom variam, e a própria característica das bebidas que o Donovan prepara justifica o fato de que os clientes se tornam muito mais falantes do que seria de se esperar numa conversa normal de bar. Assim, essa parte da experiência se torna muito espontânea e instigante.

Além da riqueza dos personagens, vale também dizer que os debates que eles colocam são bem questionadores, especialmente por meio do robô Akara que trabalha no bar. O jogo frequentemente discute as diversas implicações dos atos das corporações e mesmo daqueles que lutam contra elas, e isso faz com que o jogador tenha apenas o mínimo de pressuposições não questionadas pelo espaço do próprio jogo, o que é interessante. Mas, eu volto a isso mais para frente.

A segunda parte do jogo é, de fato, a execução do plano contra a Supercontinent, e aí ele deixa de ser um jogo sobre diálogos e assume uma estrutura muito mais próxima de puzzles, embora não seja necessariamente o caso de ser aquele tipo de puzzle que exige só uma resposta. Ainda permanece a impressão de que o jogador tem margem de manobra para agir de diversas maneiras.

De qualquer forma, esse último terço do jogo acaba passando um senso de linearidade maior do que o resto. Isso pode até ser justificado, porque faz sentido que o jogo seja mais focado no momento de agir do que ele era no momento de planejamento, mas, mesmo com isso em mente, é difícil negar que o jogo perde profundidade no processo.

O que permanece, do princípio ao fim, em termos de mecânicas, é que The red strings club apresenta uma experiência voltada à ausência de conflito direto. Muitas vezes a gente vê críticas a jogos por assumirem a violência como forma de expressão primordial, especialmente quando se trata de um jogo em que há um conflito e interação com personagens. The red strings club transporta a tensão para a palavra, o diálogo, e investe na manipulação e na mentira como ferramentas básicas. Nesse sentido, é um jogo que propõe algo muito diferente do que estamos acostumados.

Uma premissa como a do jogo certamente poderia se transformar num jogo de stealth em que o jogador invadiria diversos escritórios vigiados para obter informações, interrogaria forçadamente alguns NPCs, e terminaria invadindo a base central. Poderia se encaixar perfeitamente como uma side quest para um futuro Deus Ex. Entretanto, como o jogo decide focar em personagens comuns, que não são especialmente habilidosos em termos táticos e militares, eles investem nos seus talentos particulares para alcançar seus objetivos. E o resultado é que o jogo apresenta mecânicas que parecem inovadoras e que criam uma experiência que faz sentido nesse mundo. Afinal, um dos temas mais clássicos do mundo cyberpunk é as dificuldades do indivíduo frente ao colosso das corporações.

E, com isso, a gente chega nas questões temáticas do jogo. A temática cyberpunk é muito complexa e foi construída por inúmeras obras, que a tratam de uma forma específica. Mas, no geral, as mais famosas delas costumam tratar o tema sob duas facetas: uma individual, e outra, coletiva.

Tradicionalmente, a faceta que eu chamei de individual trata das influências da tecnologia no que os artistas associam como sendo a natureza humana. Para mim, essas temáticas são as que geralmente mais passam um sentimento de importância e profundidade, mas que acabam dizendo muito pouco no fim das contas. E isso porque, ao longo da história, a concepção de ser humano foi sendo transformada inúmeras vezes, e o tom que essas obras assumem muitas vezes parece o de uma pessoa atrasada no tempo e que simplesmente tem medo do futuro.

Hoje em dia é finalmente tido como aceitável uma pessoa viver sem gerar filhos, o que era considerado uma falha dessa pessoa como ser humano por um bom tempo. Além disso, aos poucos a gente tem aceitado a possibilidade de relacionamentos diferentes do tradicional, e mesmo diferentes tipos de identidade. Isso são transformações do mundo moderno.

Mas, para a gente continuar só na questão da tecnologia, muitas das questões de The red string club tratam do poder da tecnologia mudar nosso comportamento, nossos sentimentos e, assim, mudar nossa identidade. Na verdade, essa é uma das questões que mais contribuem para que pessoas se mantenham longe de tratamentos psicológicos, apesar de certamente precisarem. Muitos sentem medo das técnicas de um psicólogo, ou mesmo do efeito que remédios podem ter sobre a sua personalidade.

Eu certamente acho saudável que a gente não aceite nada que age sobre nós sem antes pensar sobre o assunto, mas há alguns medos naturais do novo e do diferente que muitas vezes atravancam melhorias reais no mundo. E muitas vezes o tom de obras cyberpunk acaba assumindo muito desse medo em suas narrativas.

Deus Ex: Human Revolution retrata as pessoas que incorporam máquinas ao próprio corpo como pessoas suscetíveis a serem controladas por quem produz essas melhorias. O seriado Altered Carbon trata a existência da morte como um mecanismo de controle social, quase como uma reinvenção da teoria malthusiana, que via as doenças e as guerras como uma ferramenta de controle populacional. O seriado ainda trata a necessidade de morte dos pais para o amadurecimento e a independência dos filhos, o que é sem fundamento nenhum.

The red strings club faz um esforço saudável para atualizar esse tipo de tema, mas relativizando-o sempre que possível. Assim, embora o tema central seja lutar contra uma tecnologia que mudaria o comportamento humano, é mostrado diversas vezes que nem o Donovan, nem o Brandeis entendem exatamente do que essa tecnologia se trata e quais serão seus efeitos no longo prazo. Além disso, o argumento de que eles estão lutando porque o ato de manipular pessoas é errado acaba se mostrando contraditório porque 100% do que os protagonistas fazem é manipular as pessoas à sua volta.

Dessa forma, o jogo acaba fazendo tudo que pode para relativizar o medo do novo que ele mesmo propõe, até porque o jogo parece ter uma noção de todos os problemas que esse mesmo medo causou e causa. Ainda assim, considerando a história como um todo e a decisão dos personagens em manter sua missão, eu acredito que o tom de medo da mudança continua predominando, especialmente porque o jogo ainda atualiza muitas das teorias conspiratórias que são bastante usuais no gênero cyberpunk.

Eu acredito que está na faceta coletiva do cyberpunk a sua maior riqueza. Mesmo que muito raramente as obras foquem nisso, os mundos construídos nesse gênero são marcados por uma profunda divisão social. Há sempre uma interpretação de que o avanço tecnológico propicia ganhos aos que já são mais ricos, enquanto os pobres são deixados ainda mais de lado. Com isso, até os próprios governos são relativamente esvaziados de poder, e o universo do cyberpunk acaba sendo marcado por leis que raramente se aplicam.

Voltando às comparações, Blade runner, por exemplo, cria um mundo em que a exploração passou dos pobres para os replicantes, que, além de viverem menos, são sumariamente exterminados se desviarem do propósito para que foram criados. Total recall, conhecido por nós aqui como Vingador do futuro, coloca uma situação em que os pobres devem pagar pela sua própria sobrevivência, o que acaba espelhando muitas situações de trabalho escravo por dívida que a gente vê acontecendo até hoje.

Akira retrata um governo com prioridades completamente separadas do povo, o que gera muita insatisfação social, rebeldia e arruaça. E o próprio Deus Ex: Human Revolution, quando não está reforçando o medo do novo, consegue mostrar um pouco da resistência da população contra uma nova tecnologia por conta de uma tradição qualquer.

Curiosamente, como The red strings club se passa sempre em lugares fechados e pequenos, quase não há interação com o mundo de fora, e os personagens só interagem com pessoas das classes altas daquele mundo: executivos, engenheiros, etc. Assim, o mundo do jogo parece muito mais fechado, limitado, e acaba perdendo um dos aspectos mais ricos e clássicos do mundo cyberpunk, que é mostrar, de forma exagerada, questões com que nos deparamos todos os dias. Mesmo Altered Carbon foi capaz de transmitir mais nesse sentido.

Com isso, The red strings club acaba se configurando como uma experiência que se dedica muito mais a discutir ideias e crenças sobre identidade, sentimentos e liberdade emocional. E, nesse sentido, ele acaba triunfando mais pelas perguntas que levanta do que pelas respostas que fornece. A ética é um conjunto de ferramentas que usamos para resolver situações concretas com que podemos ou não nos defrontar um dia. E o jogo trabalha mais em cima dessa ética, e abandona o espaço público em favor do privado nesse processo.

Pode não ser o mais ambicioso dos projetos, mas consegue aliar um gameplay que faz sentido com sua proposta e que faz o jogador parar para pensar antes de responder uma pergunta, não só por medo da repercussão da sua resposta no mundo do jogo, mas porque realmente são questões complexas e interessantes. E as respostas que o jogo fornece acabam importando menos do que aquelas que você mesmo formulou e discutiu com os NPCs.

E era isso que eu queria dizer sobre The red strings club. Até a próxima análise!

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