sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Teoria: Alteridade na obra do Team ICO




Olá! Eu sou o Asa e hoje é dia de um textinho especial de teoria. Após ter assistido a dois vídeos muito interessantes e bem feitos do Overloadr, eu resolvi dar uma corridinha aqui para publicar uma reflexão que eu faço faz algum tempo, e que eu acho que cabe bem na atual situação do debate nacional, seja estético, seja político.

Antes de começar de fato, eu gostaria só de dar um breve aviso sobre o canal, e sobre este texto em particular. Ele já vai apresentar algumas ideias e procedimentos críticos que serão fundamentais para um especial de fim de ano que eu estou preparando, e que eu devo começar a publicar entre o fim de novembro e o começo de dezembro.

Eu devo conseguir anunciar os detalhes direitinho perto do aniversário do canal, mas a ideia é fazer um conjuntinho de análises que vai servir como uma homenagem aos anos de produção do canal, e talvez também como uma despedida para nós, por uma série de razões. Dito isso, vamos lá.

A ideia de política em jogos é algo que eu já tive oportunidade de discutir em outros momentos, e na verdade é algo que eu apresento explícita ou implicitamente nas minhas análises desde o início, quando eu falava da concepção de história em Assasssin’s Creed, e que bem ou mal perpassou toda a trajetória deste espaço. Geralmente, porém, eu gosto de tratar mais de exemplos concretos e não da mídia em geral, mas hoje eu queria tratar de alguns pressupostos clássicos de jogos e que raramente são discutidos em termos de reflexão filosófica e política.

Em jogos, nenhum exemplo de normalização do status quo é mais evidente do que a forma como a violência é tratada. Ela está na base da história dos jogos como os conhecemos, em grande parte porque a estrutura de conflito é especialmente simples e fácil de implementar em termos narrativos, o que facilita muito na hora de criar uma obra. Oferecer um inimigo a ser vencido é uma forma clara e rápida de criar uma motivação para o jogador prosseguir, e mecânicas de combate oferecem um modo instantâneo de interação e feedback que se tornou fundamental na forma como jogos são concebidos, a ponto de um jogo sem inimigos ou fail states ser considerado como um não jogo por muitas pessoas.

Essa ampla adoção do conflito e da violência é fundamental quando a gente reflete sobre a representação da alteridade na nossa indústria. Alteridade, nesse caso, é o outro, aquele que não é o jogador ou quem ele controla no mundo da obra. Na nossa indústria, fundamentalmente, o outro nasceu como um inimigo. Isso, inclusive, pode ser rastreado desde os avós dos video games, as competições esportivas e os jogos físicos, os quais são interpretados por alguns antropólogos como uma transformação simbólica do que antes eram conflitos armados reais, com os competidores realmente buscando a morte do adversário.

Porém, se o esporte ou mesmo um jogo multiplayer ainda tem claramente um outro real com que você está competindo, num jogo single player não existe essa contrapartida, e a alteridade mais frequentemente encontrada é apenas um inimigo que existe para ser vencido e/ou eliminado. As considerações políticas por trás dessa estrutura são bastante claras: elas apontam um mundo em que o outro é concebido como um obstáculo, um inimigo, alguém que impede o seu progresso e se apresenta essencialmente como ameaça.

Não à toa, a imensa maioria das narrativas do início da nossa indústria foca em vilões com motivações pouco claras, ou excessivamente simplistas, como se eles fossem maus apenas por serem maus ou, mais especificamente, por serem outros. Também não é à toa que, embora a imensa maioria dos protagonistas seja humanoide, não é raro que os inimigos não sejam. Um dos primeiros procedimentos no trabalho de pintar uma alteridade como negativa é justamente não tratá-la como humana.

Essa leitura pode parecer uma interpretação muito ampla a partir de poucas pistas, mas a forma como nós consumimos artes e narrativas no geral é fundamental para a construção de nossos raciocínios e, principalmente, nossa interpretação de mundo. Nesse sentido, observar as grandes tendências acaba sendo fundamental para a gente entender quais são os princípios expostos pela arte e que, de um jeito ou de outro, acabam sendo fundantes para a nossa cultura de hoje e de amanhã.

Se o fundamento mais básico da nossa indústria já demonstra uma profunda hostilidade em relação ao outro, o desenvolvimento e a expansão dessa mesma indústria revela problemas semelhantes, mas em outras frentes. Conforme jogos passaram a apresentar mundos mais complexos, nós pudemos ter acessos a uma alteridade não combativa, e sim colaborativa. Porém, essa alteridade colaborativa tinha seus próprios problemas.

Ao analisar os NPCs que existem para oferecer itens ou quests ao personagem, ou, mais modernamente, os companheiros de jornada que não são controlados pelo jogador, a gente nota uma concepção de alteridade baseada na subserviência ao protagonista e, por extensão, ao jogador. No primeiro caso, nós temos personagens que existem no mundo especificamente para oferecer algo útil ou interessante ao jogador e que, em grande medida, existem para servi-lo, se não narrativamente, pelo menos mecanicamente.

Um dos chefes de máfia em GTA pode mandar no protagonista em termos de narrativa, mas ele só existe naquele mundo para prover ao jogador o que fazer, ou seja, embora ele esteja numa posição hierarquicamente acima do personagem controlado, em termos estruturais, ele está à disposição do jogador, existe apenas na medida em que é útil para oferecer missões novas, vender itens, oferecer informações etc.

Já no caso dos NPCs companheiros, nós temos um caso mais interessante. Personagens como a Ellie de The last of us ou a Elizabeth de Bioshock Infinite foram criados com a intenção de serem uma alteridade positiva, companheiras de jornada, com histórias e personalidades interessantes, para que você se apegue a elas. Porém, mecanicamente, elas também revelam um impulso muito curioso e que, em grande medida, mostra o grande problema da representação desta alteridade positiva: ela só oferece benefícios, enquanto sumariamente apaga os problemas da alteridade.

Tanto Ellie quanto Elizabeth são extremamente úteis em seus jogos: elas podem te salvar num momento de perigo e podem chamar sua atenção para coisas importantes, porém elas nunca são um risco para o jogador. Como o Matthewmatosis já apontou na sua análise, é absurdo que a Elizabeth nunca esteja em risco durante a experiência, porque o objetivo número 1 dos habitantes de Columbia deveria ser justamente resgatá-la, e não ignorá-la em favor de matar o Booker. Porém, a prioridade em termos de design era nunca torná-la algo que o jogador precisaria proteger; pelo contrário: a ideia era que Elizabeth fosse útil ao jogador e, assim, mais simpática.

Já no caso da Ellie, são inúmeros os críticos que apontaram o ridículo de certas situações em que ela e outros NPCs ignoram totalmente as regras de stealth que estão na base de The last of us, com o explícito intento de não prejudicar a experiência do jogador. Com isso, nós temos NPCs que não servem ao jogador nem narrativa, nem mecanicamente, mas que são desenvolvidos de forma unilateral, obedecendo apenas a algumas regras do mundo do jogo, justamente àquelas que são mais convenientes ao jogador.

Assim, o resultado de uma análise mais ampla da alteridade na nossa indústria revela que o outro costuma funcionar ou como inimigo, ou como um acessório na trajetória do jogo – o que soa excessivamente familiar a um clássico dito: se você não está comigo, está contra mim.

Quando a gente recua ainda mais o olhar, abandona os personagens e pensa apenas no discurso sobre as mecânicas, a gente vê mais uma vez um pressuposto que mimetiza esse pensamento: é bastante conhecido que jogos são frequentemente avaliados na medida de quanto controle eles oferecem ao jogador, de quantas variáveis eles colocam na mão do jogador para que ele possa fazer o que quiser, com um mínimo de interferência explícita do game designer, seja essa interferência refletida em pequenas coisas, como uma cutscene que não pode ser pulada, ou até em grandes coisas, como estruturas aleatórias e imprevisíveis, timers, NPCs que se comportam de forma arredia etc.

O mundo de um jogo é criado para que o jogador possa experimentá-lo, interagir com ele, se expressar nele, e ter sentimentos específicos despertados durante esse processo. Portanto, num nível amplo, certamente tudo que acontece ou deixa de acontecer num jogo se dá em função da pessoa segurando o controle. Porém, essa estrutura em função do jogador pode se refletir de diversas formas, e não apenas como tudo existindo literal e claramente em função do jogador.

Porque, como está, essa forte tendência histórica esconde um pressuposto político dos mais relevantes e sombrios dos dias atuais: a profunda indiferença e violência para com o outro. O mundo experimenta hoje um desenvolvimento histórico que seria dos mais interessantes, caso não fosse também perturbador: após inúmeros avanços nos direitos humanos nos últimos 250 anos, notam-se regressões de todo tipo, e discursos que se imaginavam mortos reaparecem com tom de novidade. Muitos desses discursos revelam profunda violência em relação ao outro, especialmente minorias. Inimigos invisíveis são criados, narrativas falsas são elaboradas, e o revisionismo histórico está a todo vapor.

A questão mais curiosa para mim, porém, é a dificuldade de se colocar no lugar desse outro ameaçado, do outro que não compartilha da sua origem, da sua orientação sexual, do seu gênero, da sua religião, da sua ideia do que um governo deve oferecer ao seu cidadão. Esse outro pode ser fundamentalmente diferente de você em diversas áreas, uma alteridade absoluta, mas ainda é humano e sente medo hoje. E, sendo um consumidor ávido de jogos, eu não consigo deixar de pensar na certamente minúscula, porém real contribuição que a arte e especificamente os jogos deram para a criação de um mundo que regride.

E, para mim, essa contribuição está nessa forma básica e subserviente como jogos veem a alteridade, criando experiências que são explicitamente desenvolvidas em volta do jogador, procurando dar a ele a sensação de ser o centro do mundo, o agente fundamental da mudança. Não à toa, são extremamente comuns em jogos fantasias de poder e narrativas em que o protagonista salva o mundo inteiro sozinho ou com a ajuda de poucos. E, nesse contexto em que o sujeito é absoluto, só existe quem se subordina a ele de alguma forma, e quem não se subordina, e que acaba se tornando obstáculo ou sendo eliminado.

Pode não parecer muito, mas a prevalência de certas narrativas e mecânicas acaba sendo importante na forma como nós encaramos e reagimos ao outro, mesmo que apenas num nível inconsciente. Afinal, o que é o preconceito, se não a predisposição em acreditar em narrativas antes da experiência? Num mundo em que só existe aquilo que você mesmo enxerga como legítimo e familiar, é mais fácil você ignorar o sofrimento do outro, é mais fácil você acreditar numa notícia claramente absurda, é mais fácil você escolher ouvir só uma parte de um discurso político, mas não a outra, menos agradável.

Por um lado, isso não é novo: desde Julio Cesar, há mais de dois mil anos, ditadores em potencial usam o combate à corrupção como embrulho para um pacote que contêm propostas bem menos simpáticas. Afinal, quem não acha que se deve combater a corrupção, né? Por outro, uma trajetória centenária ou milenar em certa direção deveria indicar que certas armadilhas não seriam mais fatais. Porém, às vezes eu tenho que checar para ver se não fui dormir e acordei na década de 50. E muito disso pode ser rastreado a uma dificuldade de enxergar o outro como alguém independente e digno de respeito.

Acompanhando o próprio discurso dos últimos 15 anos, são inúmeros os jogos que, conscientes desse histórico de retrato da alteridade, fizeram esforços impressionantes para discuti-lo e se revelaram como algumas das obras mais poderosas da nossa indústria: Undertale e sua mecânica de dialogar e poupar monstros, Papers, please e as pequenas histórias e responsabilidades de controlar o destino de pessoas desesperadas, Bloodborne e seu questionamento sobre os limites do outro, Hotline Miami e sua perturbadora associação entre sede de sangue e descargas de dopamina, Spec Ops: the line e seu protagonista pouco confiável.

Eu gostaria de destacar neste texto, porém, o trabalho de um grupo específico de desenvolvedores: o chamado Team ICO, responsável por ICO, Shadow of the colossus e The last guardian, todos já discutidos em outros textos meus. Essas obras todas receberam grande apreço do público e figuram como clássicos imediatos, porém pouco se diz sobre um dos grandes segredos da eficácia desses jogos: o trabalho praticamente revolucionário com a alteridade.

Todos os jogos do Team ICO se esforçam por criar alteridades que funcionam de forma genuína e que se apresentam como figuras independentes do jogador e, por isso mesmo, são muito mais reais e significativas. O grande segredo para isso é que cada uma dessas alteridades é, simultaneamente, fundamental para o progresso do jogador, porém imperfeita na sua habilidade de contribuir com esse progresso, sendo necessário que o jogador aceite essa alteridade e trabalhe com ela apesar de suas peculiaridades.

Em ICO, primeiro trabalho do grupo, é preciso aceitar que a sua companheira Yorda é um personagem lento e frágil, e que precisa ser protegida. Porém, ela é fundamental para o jogador prosseguir e, no final do jogo, acaba sendo fundamental para o sucesso da fuga dos dois da fortaleza. Em The last guardian, é necessário compreender e aceitar que existe uma barreira de compreensão entre o protagonista e a criatura Trico. É preciso ter paciência, dar instruções com cuidado e calma, e saber aproveitar aquilo que ele pode oferecer.

Se nesses jogos essa alteridade é trabalhada no contato de uma criatura com outra, Shadow of the colossus oferece uma visão mais ambiciosa e compreensiva da questão, trabalhando em múltiplas frentes: para começar, o protagonista não se apresenta como o centro do mundo, mas trabalhando com alguém, a criatura Dormin, e por alguém, a falecida Mono. Seu principal companheiro, a égua Agro, é bastante famosa por não se comportar como uma extensão do protagonista, tendo um comportamento próprio e reações aos comandos que Wander lhe dá. Ou seja, mesmo sendo, em última instância, um instrumento do jogador, Agro nunca se torna 100% subserviente a ele.

E, por fim, os alvos que devem ser destruídos no jogo, os colossos, não são tratados como inimigos ou meros obstáculos. Cada um deles apresenta particularidades, uma existência que não parece subordinada à do jogador ou sua missão. Aliás, alguns nem parecem ligar muito para o Wander até a hora em que ele os ataca. E, ainda, quando eles finalmente são mortos, o jogo não faz nenhum esforço para você sentir que conseguiu algo positivo.

Na verdade, os colossos do jogo parecem criaturas vivas, independentes do jogador ou da sua missão. É possível que eles tenham vivido uma vida muito longa e tranquila antes do Wander ir lá matá-los. E esse ato de matá-los não é como o trabalho de vencer um inimigo que está atacando a Terra, que quer dominar o mundo ou que sequestrou uma princesa. Em grande medida, os colossos são dano colateral, criaturas vivas que devem ser derrotadas por mero acaso, apenas vítimas das circunstâncias, como talvez a própria Mono tenha sido.

Com isso, cada pequeno pedaço do jogo revela uma alteridade independente, e o jogo deixa de tratar o protagonista como o centro do mundo, diante do qual todos se curvam. Nesse sentido, até a estratégia narrativa minimalista acaba contribuindo, já que tantas informações sobre aquele universo ficam faltando, sem nenhum diário abandonado pelo mundo ou um personagem dedicado a fornecer informações.

Graça a tudo isso, a alteridade adquire um real significado e permite uma real conexão: é triste quando Agro cai do abismo, é triste quando a gente executa um colosso majestoso, é perturbador saber que a gente está na posição de atacar um animal sem ele poder se defender, é trágico quando o feitiço suga o Wander, é uma surpresa feliz quando Agro retorna, e quando Mono acorda. Sentimos dó quando Trico grita de dor, e ternura quando Ico e Yorda sentam juntos num banco para descansar.

Mais do que um mundo compartilhado ou um lore que une as três histórias, a maior conexão entre esses três jogos é a exposição do jogador a uma alteridade absoluta, da qual nós vamos nos aproximando paulatinamente, até finalmente o nosso respeito e afeição por ela ser grande o suficiente para que a história do protagonista com essa alteridade nos emocione profundamente. E, afinal, um dos grandes consensos sobre esses jogos é que eles têm uma capacidade muito grande de nos emocionar. E essa emoção vem justamente do processo de trabalhar com uma criatura diferente, se apegar a ela e desenvolver um sentimento real.

A construção desses jogos, especialmente a de Shadow of the colossus, vai contra as décadas de representação da alteridade na nossa indústria, com outros que não são retratados diretamente como inimigos, e nem como subservientes ao jogador. A gente poderia dizer que eles formam uma trilogia humanista, que acredita e trabalha para formar um ser humano que respeite o outro e perceba o potencial que ele pode oferecer à sua experiência, justamente porque ele é um outro.

Os outros jogos que eu listei antes também são muito importantes na discussão da alteridade simplista que marca a nossa indústria, porém eles são muito mais voltados a questionar o quanto a forma como jogos são estruturados facilitam o processo de atropelarmos a alteridade sem nem nos questionarmos, de atirarmos primeiro e perguntarmos depois. Porém, os jogos do Team ICO apresentam algo que eu considero ainda mais importante, que é a construção de um modelo que questione os problemas justamente por criar algo que ultrapasse esses problemas e apresente algo novo, poderoso e significativo. São, por isso, jogos fundamentais, não só para um jogador tradicional, mas para um ser humano.

E era isso que eu queria dizer sobre a questão da alteridade no trabalho do Team ICO. Este foi um texto talvez um pouco direto demais na discussão de questões prementes em nossa sociedade, mas, independentemente das questões do momento, esses jogos são um testamento de questões humanistas que existem também há dois mil anos, quando a gente recebeu o primeiro incentivo a amar, respeitar e defender o outro, mesmo que o que ameace o outro não nos ameace. É justo e importante defender e prosseguir neste caminho. Até a próxima análise!

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