Olá! Eu sou o Asa e hoje é dia de um textinho especial de teoria. Após ter assistido a dois vídeos muito interessantes e bem
feitos do Overloadr, eu resolvi dar uma corridinha aqui para publicar uma
reflexão que eu faço faz algum tempo, e que eu acho que cabe bem na atual
situação do debate nacional, seja estético, seja político.
Antes
de começar de fato, eu gostaria só de dar um breve aviso sobre o canal, e sobre
este texto em particular. Ele já vai apresentar algumas ideias e procedimentos
críticos que serão fundamentais para um especial de fim de ano que eu estou
preparando, e que eu devo começar a publicar entre o fim de novembro e o começo
de dezembro.
Eu devo conseguir
anunciar os detalhes direitinho perto do aniversário do canal, mas a ideia é
fazer um conjuntinho de análises que vai servir como uma homenagem aos anos de
produção do canal, e talvez também como uma despedida para nós, por uma série
de razões. Dito isso, vamos lá.
A
ideia de política em jogos é algo que eu já tive oportunidade de discutir em
outros momentos, e na verdade é algo que eu apresento explícita ou implicitamente
nas minhas análises desde o início, quando eu falava da concepção de história em Assasssin’s Creed, e que bem ou mal
perpassou toda a trajetória deste espaço. Geralmente, porém, eu gosto de tratar
mais de exemplos concretos e não da mídia em geral, mas hoje eu queria tratar
de alguns pressupostos clássicos de jogos e que raramente são discutidos em
termos de reflexão filosófica e política.
Em
jogos, nenhum exemplo de normalização do status
quo é mais evidente do que a forma como a violência é tratada. Ela está na
base da história dos jogos como os conhecemos, em grande parte porque a
estrutura de conflito é especialmente simples e fácil de implementar em termos
narrativos, o que facilita muito na hora de criar uma obra. Oferecer um inimigo
a ser vencido é uma forma clara e rápida de criar uma motivação para o jogador
prosseguir, e mecânicas de combate oferecem um modo instantâneo de interação e feedback que se tornou fundamental na
forma como jogos são concebidos, a ponto de um jogo sem inimigos ou fail states ser considerado como um não
jogo por muitas pessoas.
Essa
ampla adoção do conflito e da violência é fundamental quando a gente reflete
sobre a representação da alteridade na nossa indústria. Alteridade, nesse caso,
é o outro, aquele que não é o jogador ou quem ele controla no mundo da obra. Na
nossa indústria, fundamentalmente, o outro nasceu como um inimigo. Isso,
inclusive, pode ser rastreado desde os avós dos video games, as competições esportivas e os jogos físicos, os quais
são interpretados por alguns antropólogos como uma transformação simbólica do
que antes eram conflitos armados reais, com os competidores realmente buscando
a morte do adversário.
Porém,
se o esporte ou mesmo um jogo multiplayer
ainda tem claramente um outro real com que você está competindo, num jogo single player não existe essa
contrapartida, e a alteridade mais frequentemente encontrada é apenas um
inimigo que existe para ser vencido e/ou eliminado. As considerações políticas
por trás dessa estrutura são bastante claras: elas apontam um mundo em que o
outro é concebido como um obstáculo, um inimigo, alguém que impede o seu
progresso e se apresenta essencialmente como ameaça.
Não à toa, a imensa
maioria das narrativas do início da nossa indústria foca em vilões com
motivações pouco claras, ou excessivamente simplistas, como se eles fossem maus
apenas por serem maus ou, mais especificamente, por serem outros. Também não é
à toa que, embora a imensa maioria dos protagonistas seja humanoide, não é raro
que os inimigos não sejam. Um dos primeiros procedimentos no trabalho de pintar
uma alteridade como negativa é justamente não tratá-la como humana.
Essa
leitura pode parecer uma interpretação muito ampla a partir de poucas pistas,
mas a forma como nós consumimos artes e narrativas no geral é fundamental para
a construção de nossos raciocínios e, principalmente, nossa interpretação de
mundo. Nesse sentido, observar as grandes tendências acaba sendo fundamental
para a gente entender quais são os princípios expostos pela arte e que, de um
jeito ou de outro, acabam sendo fundantes para a nossa cultura de hoje e de
amanhã.
Se
o fundamento mais básico da nossa indústria já demonstra uma profunda
hostilidade em relação ao outro, o desenvolvimento e a expansão dessa mesma
indústria revela problemas semelhantes, mas em outras frentes. Conforme jogos
passaram a apresentar mundos mais complexos, nós pudemos ter acessos a uma
alteridade não combativa, e sim colaborativa. Porém, essa alteridade
colaborativa tinha seus próprios problemas.
Ao
analisar os NPCs que existem para oferecer itens ou quests ao personagem, ou, mais modernamente, os companheiros de
jornada que não são controlados pelo jogador, a gente nota uma concepção de
alteridade baseada na subserviência ao protagonista e, por extensão, ao
jogador. No primeiro caso, nós temos personagens que existem no mundo
especificamente para oferecer algo útil ou interessante ao jogador e que, em
grande medida, existem para servi-lo, se não narrativamente, pelo menos
mecanicamente.
Um dos chefes de máfia
em GTA pode mandar no protagonista em
termos de narrativa, mas ele só existe naquele mundo para prover ao jogador o
que fazer, ou seja, embora ele esteja numa posição hierarquicamente acima do
personagem controlado, em termos estruturais, ele está à disposição do jogador,
existe apenas na medida em que é útil para oferecer missões novas, vender
itens, oferecer informações etc.
Já
no caso dos NPCs companheiros, nós temos um caso mais interessante. Personagens
como a Ellie de The last of us ou a
Elizabeth de Bioshock Infinite foram
criados com a intenção de serem uma alteridade positiva, companheiras de
jornada, com histórias e personalidades interessantes, para que você se apegue
a elas. Porém, mecanicamente, elas também revelam um impulso muito curioso e
que, em grande medida, mostra o grande problema da representação desta
alteridade positiva: ela só oferece benefícios, enquanto sumariamente apaga os
problemas da alteridade.
Tanto
Ellie quanto Elizabeth são extremamente úteis em seus jogos: elas podem te
salvar num momento de perigo e podem chamar sua atenção para coisas
importantes, porém elas nunca são um risco para o jogador. Como o
Matthewmatosis já apontou na sua análise, é absurdo que a Elizabeth nunca
esteja em risco durante a experiência, porque o objetivo número 1 dos
habitantes de Columbia deveria ser justamente resgatá-la, e não ignorá-la em
favor de matar o Booker. Porém, a prioridade em termos de design era nunca torná-la algo que o jogador precisaria proteger;
pelo contrário: a ideia era que Elizabeth fosse útil ao jogador e, assim, mais
simpática.
Já
no caso da Ellie, são inúmeros os críticos que apontaram o ridículo de certas
situações em que ela e outros NPCs ignoram totalmente as regras de stealth que estão na base de The last of us, com o explícito intento
de não prejudicar a experiência do jogador. Com isso, nós temos NPCs que não
servem ao jogador nem narrativa, nem mecanicamente, mas que são desenvolvidos
de forma unilateral, obedecendo apenas a algumas regras do mundo do jogo,
justamente àquelas que são mais convenientes ao jogador.
Assim,
o resultado de uma análise mais ampla da alteridade na nossa indústria revela
que o outro costuma funcionar ou como inimigo, ou como um acessório na
trajetória do jogo – o que soa excessivamente familiar a um clássico dito: se
você não está comigo, está contra mim.
Quando a gente recua
ainda mais o olhar, abandona os personagens e pensa apenas no discurso sobre as
mecânicas, a gente vê mais uma vez um pressuposto que mimetiza esse pensamento:
é bastante conhecido que jogos são frequentemente avaliados na medida de quanto
controle eles oferecem ao jogador, de quantas variáveis eles colocam na mão do
jogador para que ele possa fazer o que quiser, com um mínimo de interferência
explícita do game designer, seja essa
interferência refletida em pequenas coisas, como uma cutscene que não pode ser pulada, ou até em grandes coisas, como
estruturas aleatórias e imprevisíveis, timers,
NPCs que se comportam de forma arredia etc.
O mundo de um jogo é
criado para que o jogador possa experimentá-lo, interagir com ele, se expressar
nele, e ter sentimentos específicos despertados durante esse processo.
Portanto, num nível amplo, certamente tudo que acontece ou deixa de acontecer
num jogo se dá em função da pessoa segurando o controle. Porém, essa estrutura
em função do jogador pode se refletir de diversas formas, e não apenas como
tudo existindo literal e claramente em função do jogador.
Porque, como está, essa
forte tendência histórica esconde um pressuposto político dos mais relevantes e
sombrios dos dias atuais: a profunda indiferença e violência para com o outro.
O mundo experimenta hoje um desenvolvimento histórico que seria dos mais
interessantes, caso não fosse também perturbador: após inúmeros avanços nos
direitos humanos nos últimos 250 anos, notam-se regressões de todo tipo, e
discursos que se imaginavam mortos reaparecem com tom de novidade. Muitos
desses discursos revelam profunda violência em relação ao outro, especialmente minorias.
Inimigos invisíveis são criados, narrativas falsas são elaboradas, e o
revisionismo histórico está a todo vapor.
A questão mais curiosa
para mim, porém, é a dificuldade de se colocar no lugar desse outro ameaçado,
do outro que não compartilha da sua origem, da sua orientação sexual, do seu
gênero, da sua religião, da sua ideia do que um governo deve oferecer ao seu
cidadão. Esse outro pode ser fundamentalmente diferente de você em diversas
áreas, uma alteridade absoluta, mas ainda é humano e sente medo hoje. E, sendo
um consumidor ávido de jogos, eu não consigo deixar de pensar na certamente
minúscula, porém real contribuição que a arte e especificamente os jogos deram para
a criação de um mundo que regride.
E, para mim, essa
contribuição está nessa forma básica e subserviente como jogos veem a
alteridade, criando experiências que são explicitamente desenvolvidas em volta
do jogador, procurando dar a ele a sensação de ser o centro do mundo, o agente
fundamental da mudança. Não à toa, são extremamente comuns em jogos fantasias
de poder e narrativas em que o protagonista salva o mundo inteiro sozinho ou
com a ajuda de poucos. E, nesse contexto em que o sujeito é absoluto, só existe
quem se subordina a ele de alguma forma, e quem não se subordina, e que acaba
se tornando obstáculo ou sendo eliminado.
Pode não parecer muito,
mas a prevalência de certas narrativas e mecânicas acaba sendo importante na
forma como nós encaramos e reagimos ao outro, mesmo que apenas num nível
inconsciente. Afinal, o que é o preconceito, se não a predisposição em
acreditar em narrativas antes da experiência? Num mundo em que só existe aquilo
que você mesmo enxerga como legítimo e familiar, é mais fácil você ignorar o
sofrimento do outro, é mais fácil você acreditar numa notícia claramente
absurda, é mais fácil você escolher ouvir só uma parte de um discurso político,
mas não a outra, menos agradável.
Por um lado, isso não é
novo: desde Julio Cesar, há mais de dois mil anos, ditadores em potencial usam
o combate à corrupção como embrulho para um pacote que contêm propostas bem
menos simpáticas. Afinal, quem não acha que se deve combater a corrupção, né?
Por outro, uma trajetória centenária ou milenar em certa direção deveria
indicar que certas armadilhas não seriam mais fatais. Porém, às vezes eu tenho
que checar para ver se não fui dormir e acordei na década de 50. E muito disso
pode ser rastreado a uma dificuldade de enxergar o outro como alguém
independente e digno de respeito.
Acompanhando o próprio
discurso dos últimos 15 anos, são inúmeros os jogos que, conscientes desse
histórico de retrato da alteridade, fizeram esforços impressionantes para
discuti-lo e se revelaram como algumas das obras mais poderosas da nossa
indústria: Undertale e sua mecânica
de dialogar e poupar monstros, Papers,
please e as pequenas histórias e responsabilidades de controlar o destino
de pessoas desesperadas, Bloodborne e
seu questionamento sobre os limites do outro, Hotline Miami e sua perturbadora associação entre sede de sangue e
descargas de dopamina, Spec Ops: the line
e seu protagonista pouco confiável.
Eu gostaria de destacar
neste texto, porém, o trabalho de um grupo específico de desenvolvedores: o
chamado Team ICO, responsável por ICO,
Shadow of the colossus e The last guardian, todos já discutidos
em outros textos meus. Essas obras todas receberam grande apreço do público
e figuram como clássicos imediatos, porém pouco se diz sobre um dos grandes
segredos da eficácia desses jogos: o trabalho praticamente revolucionário com a
alteridade.
Todos os jogos do Team
ICO se esforçam por criar alteridades que funcionam de forma genuína e que se
apresentam como figuras independentes do jogador e, por isso mesmo, são muito
mais reais e significativas. O grande segredo para isso é que cada uma dessas
alteridades é, simultaneamente, fundamental para o progresso do jogador, porém
imperfeita na sua habilidade de contribuir com esse progresso, sendo necessário
que o jogador aceite essa alteridade e trabalhe com ela apesar de suas
peculiaridades.
Em ICO, primeiro trabalho do grupo, é preciso aceitar que a sua
companheira Yorda é um personagem lento e frágil, e que precisa ser protegida.
Porém, ela é fundamental para o jogador prosseguir e, no final do jogo, acaba
sendo fundamental para o sucesso da fuga dos dois da fortaleza. Em The last guardian, é necessário
compreender e aceitar que existe uma barreira de compreensão entre o
protagonista e a criatura Trico. É preciso ter paciência, dar instruções com
cuidado e calma, e saber aproveitar aquilo que ele pode oferecer.
Se nesses jogos essa
alteridade é trabalhada no contato de uma criatura com outra, Shadow of the colossus oferece uma visão
mais ambiciosa e compreensiva da questão, trabalhando em múltiplas frentes:
para começar, o protagonista não se apresenta como o centro do mundo, mas
trabalhando com alguém, a criatura Dormin, e por alguém, a falecida Mono. Seu
principal companheiro, a égua Agro, é bastante famosa por não se comportar como
uma extensão do protagonista, tendo um comportamento próprio e reações aos
comandos que Wander lhe dá. Ou seja, mesmo sendo, em última instância, um
instrumento do jogador, Agro nunca se torna 100% subserviente a ele.
E, por fim, os alvos
que devem ser destruídos no jogo, os colossos, não são tratados como inimigos
ou meros obstáculos. Cada um deles apresenta particularidades, uma existência
que não parece subordinada à do jogador ou sua missão. Aliás, alguns nem
parecem ligar muito para o Wander até a hora em que ele os ataca. E, ainda,
quando eles finalmente são mortos, o jogo não faz nenhum esforço para você
sentir que conseguiu algo positivo.
Na verdade, os colossos
do jogo parecem criaturas vivas, independentes do jogador ou da sua missão. É
possível que eles tenham vivido uma vida muito longa e tranquila antes do Wander
ir lá matá-los. E esse ato de matá-los não é como o trabalho de vencer um
inimigo que está atacando a Terra, que quer dominar o mundo ou que sequestrou
uma princesa. Em grande medida, os colossos são dano colateral, criaturas vivas
que devem ser derrotadas por mero acaso, apenas vítimas das circunstâncias,
como talvez a própria Mono tenha sido.
Com isso, cada pequeno
pedaço do jogo revela uma alteridade independente, e o jogo deixa de tratar o
protagonista como o centro do mundo, diante do qual todos se curvam. Nesse
sentido, até a estratégia narrativa minimalista acaba contribuindo, já que
tantas informações sobre aquele universo ficam faltando, sem nenhum diário
abandonado pelo mundo ou um personagem dedicado a fornecer informações.
Graça a tudo isso, a
alteridade adquire um real significado e permite uma real conexão: é triste
quando Agro cai do abismo, é triste quando a gente executa um colosso
majestoso, é perturbador saber que a gente está na posição de atacar um animal
sem ele poder se defender, é trágico quando o feitiço suga o Wander, é uma
surpresa feliz quando Agro retorna, e quando Mono acorda. Sentimos dó quando
Trico grita de dor, e ternura quando Ico e Yorda sentam juntos num banco para
descansar.
Mais do que um mundo
compartilhado ou um lore que une as
três histórias, a maior conexão entre esses três jogos é a exposição do jogador
a uma alteridade absoluta, da qual nós vamos nos aproximando paulatinamente,
até finalmente o nosso respeito e afeição por ela ser grande o suficiente para
que a história do protagonista com essa alteridade nos emocione profundamente.
E, afinal, um dos grandes consensos sobre esses jogos é que eles têm uma
capacidade muito grande de nos emocionar. E essa emoção vem justamente do
processo de trabalhar com uma criatura diferente, se apegar a ela e desenvolver
um sentimento real.
A construção desses
jogos, especialmente a de Shadow of the
colossus, vai contra as décadas de representação da alteridade na nossa
indústria, com outros que não são retratados diretamente como inimigos, e nem
como subservientes ao jogador. A gente poderia dizer que eles formam uma
trilogia humanista, que acredita e trabalha para formar um ser humano que
respeite o outro e perceba o potencial que ele pode oferecer à sua experiência,
justamente porque ele é um outro.
Os outros jogos que eu
listei antes também são muito importantes na discussão da alteridade simplista
que marca a nossa indústria, porém eles são muito mais voltados a questionar o
quanto a forma como jogos são estruturados facilitam o processo de atropelarmos
a alteridade sem nem nos questionarmos, de atirarmos primeiro e perguntarmos
depois. Porém, os jogos do Team ICO apresentam algo que eu considero ainda mais
importante, que é a construção de um modelo que questione os problemas
justamente por criar algo que ultrapasse esses problemas e apresente algo novo,
poderoso e significativo. São, por isso, jogos fundamentais, não só para um
jogador tradicional, mas para um ser humano.
E era isso que eu
queria dizer sobre a questão da alteridade no trabalho do Team ICO. Este foi um
texto talvez um pouco direto demais na discussão de questões prementes em nossa
sociedade, mas, independentemente das questões do momento, esses jogos são um
testamento de questões humanistas que existem também há dois mil anos, quando a
gente recebeu o primeiro incentivo a amar, respeitar e defender o outro, mesmo
que o que ameace o outro não nos ameace. É justo e importante defender e
prosseguir neste caminho. Até a próxima análise!
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