terça-feira, 8 de setembro de 2020

Life is strange - Pensando sobre o jogo

 



Olá! Hoje vou falar de Life is Strange, jogo desenvolvido pela Dontnod e publicado pela Square Enix, de forma episódica, ao longo de 2015. Trata-se de um jogo muito querido por um número considerável de pessoas e que, ao mesmo tempo, contém suas polêmicas diversas. Para mim, é um jogo capaz de mover sentimentalmente o jogador por uma abordagem humilde e direta, a qual surpreende em diversos momentos.

Antes de a gente de fato começar, eu preciso dizer que eu não vou poupar spoilers nessa discussão. Life is Strange é, na prática, um jogo com características de point and click, mas cujos puzzles são leves, com o foco sendo mesmo a história e interação entre os personagens, e comentar o jogo sem os desenvolvimentos narrativos acaba sendo uma empreitada vazia. Portanto, estejam todos avisados desde já. Dito isso, vamos lá.

Life is Strange conta a história da jovem adulta Max, recém-chegada da cidade grande, e retornando à sua cidade natal, Arcadia Bay, para estudar fotografia numa escola consagrada. Lá ela descobre, ao presenciar um acontecimento violento e traumático, que pode voltar no tempo e alterar pequenos eventos, algo que pode ou não ter grandes consequências.

Na prática, o jogo gira em torno das mecânicas de puzzle que são típicas de um point and click como The walking dead, de que eu já tratei há muito tempo aqui, em que você precisa achar os itens certos para os momentos e situações condizentes. Os poderes de voltar no tempo oferecem alguma variedade nesse sentido, permitindo ao jogador desfazer certas situações e fazer a Max avançar enquanto o tempo congela.

Mas, para além disso, o foco está mesmo nos diálogos com os diversos personagens e nas possibilidades de exploração deles com a ajuda dos poderes da Max. Isso pode se restringir a corrigir um comentário com efeitos negativos, e também a fazer uso de uma informação que não se tinha antes, para mudar totalmente o tom e o rumo da conversa.

No jogo, há momentos-chave, em que o jogador deve decidir grandes questões, e também pequenos momentos, cuja repercussão não será imensa, mas que serão retomados em diversos pontos, podendo ajudar ou atrapalhar a Max em sua missão. Falando em missão, vamos a ela.

Uma das características mais peculiares de Life is Strange é o que eu vou chamar de escopo variável: na prática, o jogo lida com três tramas diferentes ao mesmo tempo, o que faz o jogador muitas vezes sentir que está pulando entre temas totalmente distintos. É uma característica que o jogo pega do seriado Twin Peaks, o que inclusive está sinalizado em alguns easter eggs.

De início, Life is Strange apresenta apenas o drama adolescente da jovem Max tentando entender seu papel na sua escola e na sua própria vida, especialmente quando ela retoma contato com a sua amiga de infância, Chloe, de quem ela tinha se afastado havia 5 anos e que ela reencontra totalmente mudada. Nesse plano, Life is Strange trabalha com o luto da perda do pai da Chloe; bullying dos colegas mais tímidos, como Kate; sentimentos não correspondidos, como os de Warren; gravidez não planejada, como a de Dana; rixas adolescentes, como a de Max e Victoria, etc.

Eu diria que este é nesse plano que Life is Strange funciona melhor. Existe toda uma estética visual leve no campus, misturada aos dramas de todo dia, que, apesar de tão frequentes, não são menos tensos. Essa atmosfera gera um clima que, mesmo que alguns não considerem muito realista, certamente faz um bom trabalho em criar uma imersão que mantém o jogador no momento.

Nesse mundo, Max faz toda a diferença e é o ponto em que a mente dela parece mais focada. Consertar a relação dela com a Chloe, salvar a Kate dos seus fantasmas, escolher como tratar a Victoria, lidar com o Warren etc. são ações que acontecem de forma muito natural naquele universo e, em grande medida, ecoam facilmente na experiência do jogador e permitem um engajamento rápido e firme.

Nesse plano, a Max é como um papel em branco, que é preenchido conforme suas interações com os demais, que funcionam como oportunidades para ela se definir, colocando de forma externa os mesmos conflitos que ela demonstra ter internamente: os problemas de bullying da Kate reverberam os medos de aceitação da própria Max; os avanços do Warren comentam diretamente no desejo ou não da protagonista se abrir emocionalmente ao mundo à sua volta; a competitividade com a Victoria pela atenção do professor permite à Max enxergar até que ponto vale lutar pelo reconhecimento alheio; e a rebelde Chloe desperta o espírito de aventura da Max e a sua capacidade de agir no mundo, e também faz a Max se defrontar com os seus próprios erros.

Em grande medida, como vai ficar claro ao longo do texto, a relação de Chloe e Max é uma versão condensada de todos os temas do jogo e, nesse plano, ela reflete a dualidade do abandono sofrido pela Chloe, quando a Max saiu da cidade imediatamente após a morte do pai da Chloe, e o desejo intenso da Max de proteger e fazer parte da vida da Chloe nos dias de hoje. A incapacidade de ela mudar um passado tão distante pauta a vida presente da Max ao longo do jogo.

E isso nos traz ao segundo plano de Life is Strange, que é o lado investigativo/criminal do jogo. Ele gira em torno do sumiço de Rachel Amber, grande parceira de Chloe, e do fato de que Kate foi drogada numa festa, o que, aliás, aconteceu com Chloe também, embora ela tenha conseguido escapar.

Provavelmente esse é o lado mais fraco de Life is Strange, porque é alimentado por dois aspectos complicados: o primeiro é a total resistência de lidar com os adultos no início do jogo. Em diversos momentos, parece óbvia a necessidade de envolver as autoridades, mas os personagens ou se recusam a fazê-lo, ou o jogo faz questão de desenhar os adultos como não confiáveis, o que ele mesmo contradirá no último episódio.

É, aliás, curioso como o jogo mina a sua relação com praticamente todos os adultos daquele universo nos primeiros episódios, para deixar claro que Max e Chloe praticamente só podem depender uma da outra, mas depois volta atrás quando a trama necessita. Os episódios 4 e 5 são repletos de adultos doces e os que são brutos não deixam de ter seus sentimentos desvelados e acabam se mostrando muito úteis para os adolescentes.

O segundo aspecto complicado nesse plano é a ausência de algumas opções que certamente mudariam os rumos daquele universo. Quando a Max descobre que a Kate foi drogada, por exemplo, faz todo o sentido do mundo ir dividir essa informação com a Chloe, até porque as duas moças indicam o mesmo indivíduo como responsável: Nathan Prescott.

O Nathan em si é também um problema desse plano do jogo, porque o personagem é apresentado de forma tão alucinada e violenta que você não consegue entender como as meninas não focam no estrito objetivo de denunciá-lo e tirá-lo de circulação. Na verdade, por um bom tempo, Chloe e Max parecem agir apenas sobre os efeitos da presença do Nathan, em vez de lidar com ele de uma vez.

Por conta disso, a trama criminal do jogo vai sendo algo arrastada, o suficiente para ela funcionar como condutor da história pelo menos até a metade do quinto episódio. Na última metade, finalmente se revela a terceira trama e conflito final de Life is Strange, que é o furacão previsto pela Max no primeiro episódio, e que pretende amarrar todas as questões do jogo com uma escolha derradeira.

Esse furacão nada mais é do que uma representação dos esforços da Max de controlar o tempo e mudar o destino de certos personagens, notadamente o da Chloe, que a Max vê ser morta logo no começo do jogo. Na prática, o jogo coloca a escolha entre salvar a Chloe no início, ou a cidade no fim da experiência. Nenhum dos finais parece decisivamente canônico, cabendo ao jogador escolher o que fazer.

A questão do furacão e de escolher ou não salvar a Chloe acaba sendo uma manifestação física da própria história do jogo e do personagem da Chloe em particular. Ao longo da experiência, grande parte das ações da Max gira em torno de salvar a Chloe de eventos presentes, ou de corrigir eventos passados negativos para ela, seja o sumiço da Rachel, seja o abandono pela Max, seja a morte do pai da Chloe. Em alguns momentos, o jogo chama atenção para essa ideia fixa da Max de proteger a Chloe a qualquer custo.

Essa incapacidade de deixar a Chloe livre para seu próprio destino, por mais trágico que ele seja, reflete um pouco o próprio caráter da Chloe, uma pessoa que é definitivamente lutadora e forte, mas que tem o crucial defeito de não abandonar nenhum evento traumático. Ela é revoltada pelo fato de o pai ter morrido, tem muita dificuldade de perdoar o sumiço da Max, nunca desiste de procurar pela Rachel e, quando descobre o que aconteceu com ela, se recusa a deixar as coisas como estão.

Essa Chloe, obcecada por acontecimentos que a marcam, é o perfeito complemento para uma Max obcecada por mudar eventos. Afinal, se uma pessoa é para sempre transformada por acontecimentos, a única forma de mudá-la é alterar esses eventos mesmos. Porém, o que realmente muda a Chloe ao longo do jogo não é a alteração dos eventos passados, mas sim a disposição constante da Max de lutar pela Chloe, algo que ela sente, independentemente de se ela é capaz de compreender ou sentir os resultados das ações da amiga.

A Chloe do começo do jogo é uma pessoa tão ressentida e agressiva que é muito frequente ouvir pessoas que desgostam do jogo simplesmente porque não a suportam. No começo do jogo, ela é antipática mesmo. Ao longo da experiência, muito da inconsequência que a marca persiste, mas aumenta a capacidade dela de ouvir a Max, de se importar com os pais, de proteger em vez de destruir. Essa característica vem diretamente da relação dela com a Max, com a forma como a Max se mostra disponível para a Chloe.

Nisso se mostra a parte trágica do final do jogo: a Chloe que sugere que a Max volte e a deixe morrer foi alterada para sempre pelo retorno da amiga, mas a Chloe que vai morrer nunca terá essa chance, ela vai morrer achando que ninguém se importa, que ela não tem ninguém, provavelmente sem entender por que ninguém quer nada com ela. Uma pessoa cheia de raiva e solidão.

Foi isso que fez tão dura a decisão final para mim: não que a Chloe morrer fosse necessariamente algo horrível; a sugestão foi dela, e muitos dos habitantes da cidade eram pessoas com as quais eu simpatizei bastante. Porém, a situação em que a Chloe precisa ser colocada ao final, órfã de pai, em guerra com a mãe e o padrasto, abandonada pelas duas melhores amigas, recém-drogada, e simplesmente baleada num banheiro é difícil demais de aceitar.

Mas este é justamente, para mim, o efeito desejado por Life is Strange: mostrar como deixar alguém para trás é difícil; como o verdadeiro superpoder não é voltar no tempo, mas seguir adiante. Algo que a Chloe conseguiu aprender com a Max, e agora a Max vai ter que aprender com a Chloe, estando ela viva ou morta.

E nessa relação, como eu disse, está encapsulado todo o jogo: o fato de o Warren ser rejeitado pela Max, por exemplo, abre caminho para ele enxergar pessoas que têm interesse nele; o trauma da gravidez da Dana precisa ser deixado para trás para ela se envolver em outro relacionamento; o vídeo da Kate nunca vai sumir, mas agora ela percebe os amigos que estão lá para defendê-la; a Joyce é provavelmente a personagem mais forte do jogo pelo fato de que a vida dela sempre segue em frente.

Como eu falei no início, Life is Strange funciona em diferentes planos, mas os três carregam a mesma mensagem: a necessidade de seguir em frente. No plano do drama adolescente, isso se reflete pela necessidade de os personagens deixarem seus traumas para trás e seguir em frente, o que se mostra sempre possível, embora doloroso; no plano da viagem no tempo, isso se mostra na necessidade de aceitar que sacrifícios serão feitos para seguir em frente, seja o da cidade, seja o da Chloe; e, no plano criminal, embora seja menos clara, a temática está presente nos criminosos, que associam suas imagens estáticas à impotência e, finalmente, à morte. Trata-se de indivíduos que não aceitam as mudanças exercidas pelo tempo, representando algo não natural e, com isso, a própria morte.

Eu diria que tudo que eu disse não faz justiça a Life is Strange, mas eu acho que isso pode ser dito de toda obra de arte bem amarrada. A gente pode apenas mostrar um pouco da nossa experiência, tendo claro que muito fica dentro de nós, sem poder ser expresso, restando apenas sugerir o jogo a todos que puderem experimentá-lo. E, como o jogo tanto repisa, o que nos cabe é seguir em frente.

E era isso que eu queria dizer sobre Life is Strange. Até a próxima análise!


sexta-feira, 31 de julho de 2020

The legend of Zelda: Ocarina of time - Pensando sobre o jogo



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de The legend of Zelda: Ocarina of Time, jogo de Nintendo 64, desenvolvido pela Nintendo e lançado em 1998. Em grande medida, esse jogo dispensa apresentações, e se trata de um dos maiores clássicos da história não só da empresa que o desenvolveu, mas de toda a indústria, servindo de referência aos jogos 3D de aventura, e também de ponto de nostalgia imenso para os fãs que vivenciaram a experiência do jogo na época do seu lançamento.


Por isso mesmo, eu sempre me senti numa posição um tanto desconfortável ao falar de Ocarina: afinal, é um dos jogos mais comentados de todos. O Matthewmatosis tem um vídeo muito bom sobre o assunto e, bem ou mal, quase qualquer vídeo ou texto que trate dos jogos posteriores da série (pelo menos daqueles dos consoles) acaba falando de elementos que estão presentes em Ocarina. Isso deixa o crítico que escreve mais de 20 anos depois do lançamento do jogo numa posição difícil.


O caminho que eu vou escolher aqui é fazer um texto um pouco menos amplo do que os demais do meu canal, falando das características básicas do jogo apenas para passar a assuntos um pouco mais laterais ou profundos e, portanto, menos discutidos.


Ocarina e Mario 64 são os jogos responsáveis por fazer os jogadores de console entenderem na prática o que era um jogo 3D de aventura. Enquanto Mario focava na parte de movimentação e exploração, Ocarina trabalhou principalmente a imersão e o combate. Por exemplo, os espaços se tornaram bem mais lentos de atravessar, e também bem mais amplos.


Muita gente gosta de ver os campos de Hyrule como uma forma de aumentar o tempo do jogo, mas é só você comparar qualquer espaço de Ocarina aos de A link to the past para ver qual é a diferença real: a questão é que o Link se move bem mais lentamente naqueles espaços, que se tornaram bem maiores. Kakariko Village em Ocarina, por exemplo, talvez não tenha muito mais casas do que sua versão em A link to the past, mas explorá-la em 3D acaba sendo mais demorado e detalhado.


Isso fez com que o jogador vivenciasse mais os espaços do jogo e tivesse maior oportunidade para entrar no clima pretendido. Mas, claro, também fez com que muitos fãs antigos achassem os jogos 3D lentos demais.


O que coloca essa diminuição de ritmo de Ocarina como algo positivo para mim é o fato de que o jogo trabalhou bastante para fazer o tempo que você passa em cada espaço algo único, com um ambiente específico e personagens peculiares a conhecer. Existe um motivo para os campos de Hyrule serem sempre o exemplo de mesmice em Ocarina: ele é um dos poucos espaços que carece de personalidade dentro do jogo.


De resto, cada ambiente em Ocarina é caracterizado por uma série de elementos que o torna tão distinto dos demais, e acaba sendo impossível confundi-los. A floresta em nada se parece com a cidade Zora, que nada tem a ver com a cidade Goron, que conta com um código e personagens distintos da fortaleza Gerudo, que em nada se parece com Kakariko Village.


Para isso, Ocarina retomou fortemente as lições do jogo anterior, Link’s awakening. Os personagens de Ocarina contam com aquele charme ligeiramente estranho, ligeiramente fora do lugar que marcou o jogo de Gameboy e o seriado Twin Peaks antes dele. Porém, Ocarina realizou o trabalho de expandir o escopo desse charme estranho, submetendo-o a situações novas em relação a Link’s awakening. Ocarina apresenta situações mais tensas e épicas na trama principal, e também se atreve a ingressar no horror em espaços como o templo das sombras ou o fundo do poço.


Acho que a influência de Link’s awakening é mais fortemente sentida no espaço dedicado aos personagens que descendem do jogo de Gameboy, que é o Lon Lon Ranch. Ali mora o núcleo, digamos, cômico do jogo. Para fora de lá, porém, a gente vê experimentações em relação ao modelo de Link’s awakening, e depois a própria passagem do tempo será responsável por relativizar esse modelo e trazer uma pontinha de tristeza ao conjunto do rancho.


Essa caracterização única de espaços e personagens também se estende aos labirintos do jogo, que procuram sempre um clima que diferencie ao máximo um do outro, seja em ambientação, seja em jogabilidade. Em Ocarina, cada templo tem uma identidade muito forte, e houve sempre um esforço para ligar cada um a coisas específicas. Cada um tem um item especialmente útil, cada um é ligado a um elemento, cada um tem um personagem que guia o Link a explorar ou que o Link precisa salvar.


Cada um tem um foco mecânico: o templo da floresta é mais focado em combate; o do fogo foca a exploração horizontal; o da água, a exploração vertical; o das sombras, as ilusões; o dos espíritos, o do jogo com o tempo, que divide o labirinto em dois.


Eu mencionei há pouco jogabilidade e labirintos um tanto separado de personagens e ambientação, mas a verdade é que um alimenta o outro. Muitas das características que marcam os personagens ligados a cada espaço se refletem nos labirintos e o acesso aos labirintos e às missões é diretamente ligado à interação com os personagens, o que faz com que você precise conhecê-los, inevitavelmente levando o jogador a se aproximar daquele mundo e senti-lo mais vivo, o que será essencial ao impacto emocional pretendido quando a gente salta no tempo e vê todo aquele mundo destruído.


E vamos, então, falar de tempo, que provavelmente seria o fator mais lembrado quando pensamos no legado do jogo, além, claro, do a introdução da terceira dimensão. O tempo já está no título do jogo e certamente move a trama central, e também a maior parte da sua relação com os personagens. Afinal, aquelas criaturas divertidas e interessantes que o jogador conheceu com o Link criança agora precisam ser salvas com o Link adulto.


Muito já se disse sobre o contraste encontrado quando a gente sai do templo do tempo após a passagem de 7 anos e encontra o mercado, antes cheio de música e vida, agora em frangalhos e povoado apenas por zumbis. É certamente algo que marca, já que o espaço mais animado do jogo se torna o mais depressivo.


Num nível superficial, a passagem do tempo é muito bem integrada nos diversos elementos do jogo. É sempre interessante ver os mesmos espaços com características distintas, ver como personagens se desenvolveram (mesmo que, em Ocarina, nem todo personagem receba tempo suficiente para ser desenvolvido), ver personagens e mecânicas que reagem à sua presença anterior no mundo e, depois de tudo isso, trabalhar para retomar algo que se perdeu nos últimos 7 anos.


O que mais marca o tratamento do tempo em Ocarina para mim, porém, é a lição que fica quando a gente acompanha o andamento da trama. A história do jogo é, antes de tudo, uma discussão sobre a capacidade de certos personagens encararem os desafios na hora certa. Isso fica muito claro quando o jovem Link termina seus labirintos e finalmente têm acesso à Master Sword, o que apenas leva o vilão Ganondorf a obter o poder que Link e Zelda tanto agiram para impedi-lo de conseguir.


No fundo, este era o plano do vilão desde o início: sabendo que o povo daquele mundo estava mais ou menos preparado para lidar com suas ameaças, Ganondorf deixa dois jovens inocentes, determinados e com boas relações irem coletando itens que algumas criaturas do jogo morreram para proteger. O resultado é o oposto do que as crianças pretendiam, o que faz sentido, já que elas não estavam preparadas para lidar com alguém com esse nível de malícia. Teria sido melhor deixar os adultos cuidarem da situação.


Com os dois adultos, chegou a hora de Link e Zelda finalmente cumprirem sua missão da forma certa. Agora, em vez de receberem itens dos adultos ou como herança, eles devem resgatar os próprios adultos, que fornecem suas forças não como presentes ou recompensas, mas como sinal de sua união numa luta comum: todos agora são adultos e parceiros na luta contra Ganondorf.


Com isso, a trajetória dos heróis em Ocarina acaba representando a necessidade de lidar com os problemas com as ferramentas certas e no tempo certo. No tempo errado, os problemas podem até se tornar maiores do que são. Conforme o tempo passou, talvez o problema até tenha se tornado pior, mas você também se tornou mais capaz de combatê-lo, mais consciente das suas capacidades, e também com maior experiência no tocante aos riscos que aquele problema apresenta.


Assim, Ocarina of time pode ser o responsável por introduzir a série ao mundo 3D, inovando na movimentação, no combate baseado no travamento da mira, no uso de itens em primeira pessoa para mirar e em diversos outros elementos estritamente mecânicos, e muita gente com maior conhecimento em história dos jogos já falou disso bem melhor do que eu poderia.


Agora, o que fica para mim quando eu penso na minha história e experiência com Ocarina é o poder do mundo que ele constrói, e como esse mundo é fundamental para dar contexto e significado ao uso das mecânicas. Em grande medida, a gente pode destilar Ocarina of time como uma mistura da criação de mundo de Link’s awakening, com o esqueleto de A link to the past, tudo isso costurado pela perspectiva em 3D. Porém, o resultado que Ocarina representa é uma potencialização desses fatores.


O significado moral das suas ações em Link’s awakening se expande para toda uma reflexão sobre o tempo certo para agir contra uma ameaça e sobre como juntar forças com os diversos grupos é mais efetivo do que simplesmente receber um apoio distante. Em Ocarina, os personagens divertidos do jogo de Gameboy são colocados em situações-limite que permitem uma caracterização mais multifacetada.


Com isso, aquela estrutura do jogo de Super Nintendo, além de ser expandida pela terceira dimensão, também permitiu que o jogador realmente se apaixonasse por aquele mundo e se emocionasse com a festa de adeus no fim do jogo, e também com o olhar silencioso e cheio de histórias que Link e Zelda trocam no ponto final de um dos jogos mais marcantes e épicos de todos.


E era isso que eu queria dizer sobre The legend of Zelda: Ocarina of time. Até a próxima análise!

domingo, 28 de junho de 2020

Teoria: Jogando em tempos de crise




Olá! Já faz tanto tempo que a gente não se fala, não é? Eu disse, no final do ano passado, que o ritmo de publicações do canal continuaria após a virada do ano, mas mil coisas aconteceram no nosso caminho e tudo ficou bastante complicado. No momento, a coisa que mais me atrapalha é o fato de a quarentena ter deixado a minha casa meio cheia, o que impede as gravações. Na verdade, eu já tenho até alguns roteiros prontos, só estou esperando o momento certo para finalizá-los.

Isso é só uma breve satisfação que eu gostaria de dar a vocês, e também queria dizer que espero que todos estejam passando por este momento tenso no nosso país da forma mais segura e saudável possível. Em termos econômicos e de saúde pública, é inegável que estamos vivendo em crise e devemos entender ainda como lidar com essas coisas da melhor forma.

É justamente esse contexto que me motiva escrever este texto, falando sobre alguns temas relacionados a jogos em tempos de crise. Na verdade, o que eu vou fazer é juntar alguns assuntos de que eu já pensava em tratar faz um tempo, mas atualizando um pouco conforme o contexto atual.

Na verdade, a crise brasileira não começou em 2020, nem tampouco em 2019, mas por volta de 2015, quando o crescimento do país foi se estagnando e múltiplos indicadores econômicos começaram a se alterar negativamente. É claro que eu não estou aqui para falar disso, ou para lembrar vocês de um passado que é muito próximo, mas apenas para apontar que a questão do alto preço dos jogos já tem, pelo menos, 5 anos de idade.

Na verdade, aquele tempo de jogos de console novos por 150 ou 170 reais já parece tão distante que hoje já não é absurdo ver alguns sendo lançados a 300. Mesmo o PC, que, por um tempo, foi um oásis nesse sentido, já foi afetado. Obviamente o dólar está por trás disso e os valores estratosféricos atuais só vêm piorando a questão. A alta demanda do Switch e dos seus jogos também tem causado uma inflação no preço, intensificada pelo fato de a Nintendo não ter mais presença oficial no país.

Para se somar a uma situação financeira como essa, nós temos agora também desemprego em massa, suspensões de contrato, auxílio de 600 reais etc. Tudo isso abalou drasticamente o poder de compra do brasileiro e leva à pergunta: como jogar video game hoje em dia?

A princípio, a pergunta parece tola; afinal, numa escala de prioridades num tempo de risco, um hobby estaria apenas em último lugar. Eu concordo plenamente com isso. Porém, a questão vai muito mais além dessa constatação. O consumo de arte em geral pode ser visto como essencial num momento de crise, pois ele se revela muito poderoso para aliviar as tensões, oferecendo experiências completas a um ser humano que vive em situação de indefinição, medo, tensão e mil outros problemas.

Num momento em que o convívio social é limitado, rotinas são drasticamente alteradas e dificuldades se acumulam, o contato com narrativas e o lúdico oferece ao ser humano a possibilidade de experimentar algo completo novamente, algo que faz sentido, que tem começo, meio e fim, e nos permite sair renovados para enfrentar o mundo mais uma vez.

Essa reflexão já é feita no tocante a inúmeras artes, mas eu argumentaria que ela é ainda mais relevante no mundo dos jogos. A interatividade típica dessa mídia permite ao indivíduo um poder de ação sobre a experiência que é fundamental no momento, em que tantos fatores parecem fora do nosso controle. Seja as tendências econômicas, seja o famigerado vírus, estamos rodeados de ameaças que não podemos sentir ou ver de imediato, mas que afetam nossas vidas de forma avassaladora, e contra as quais pouco podemos fazer.

Nesse contexto, finalizar um jogo em que o herói pode triunfar contra todas as ameaças; ou criar uma cidade plenamente funcional num simulador; ou vencer uma corrida ou uma partida de luta; ou colaborar com seus colegas num jogo cooperativo – tudo isso nos traz de volta o sentimento de controle, de esperança em nossas capacidades individuais e coletivas, de combate e cooperação.

Com a gente se colocando em experiências que nos dão o poder de agir, parte da nossa sanidade retorna e nos dá a sensação de poder agir novamente, permitindo alguma confiança para entender o que vivemos e como devemos prosseguir. Eu diria até mesmo que experiências ludoirônicas, que tematizam a impotência, podem ter sua utilidade, dando forma a elementos antes difusos no nosso dia a dia e permitindo um alvo para a nossa revolta.

Por isso, se possível, não deixe de continuar com o seu hobby, principalmente se ele envolver um nível de ação. Mas, como podemos fazer isso com os preços atuais? A minha sugestão é aproveitarmos ao máximo promoções, descontos e demais possibilidades que pudermos – inclusive voltar à ilegalidade.

Como eu já disse em outra ocasião, a pirataria continua sendo uma opção segura, embora não ideal, para a gente manter a possibilidade de experimentar jogos. E, num momento como este, faz todo o sentido: o nosso contexto atual exemplifica muito bem o argumento de que uma pessoa que pirateia um jogo não necessariamente o compraria se não tivesse como jogá-lo ilegalmente. Se jogos estão no fim das listas de prioridades num momento de crise, e não se pode pagar por eles, eles simplesmente não seriam comprados e experimentados.

A pirataria, nesse caso, resolve um problema insolúvel. Com isso, não precisamos abdicar de uma parte importante de nossas vidas e, na prática, os desenvolvedores nada perdem, pois simplesmente não poderíamos comprar os jogos de forma oficial com o preço em que se encontram e com a situação que vivemos.

É claro que isso é um exemplo extremo, e o ideal seria nos valermos de opções como os planos de jogos da PS Plus ou Game pass, ou simplesmente apelar para os nossos backlogs, que é o que eu tenho feito. Mas, eu tenho muito claro em minha mente que, caso essas opções não estivessem disponíveis, eu já teria me resignado a piratear. Felizmente eu estou aproveitando um dinheiro que eu gastei quando as coisas estavam mais fáceis, mas eu não teria pudor em agir diferente se não houvesse outro jeito. E é o que eu recomendo fazer.

Vale destacar, também, que, na prática, a grande tendência que estamos vivendo com as crises dos últimos 5 anos é uma retração do público brasileiro capaz de comprar jogos no lançamento, o que sempre é triste para quem gosta de acompanhar as grandes tendências e os títulos mais esperados.

Isso não é um fenômeno novo. Eu já tive a oportunidade de dividir com vocês que eu já ouvi representantes de publishers dizendo que a estratégia de vendas no Brasil conta muito com vendas com descontos e em períodos bem posteriores ao lançamento. Ou seja, as empresas sabem muito bem o que estão fazendo ao precificar os jogos novos em 220, 250, 300 reais. A parte mais rica do público vai comprar nesse preço, e as demais vão adquirindo conforme ele chega num ponto considerado adequado, sendo 200, 180, 150, 100 reais, o que for. O gameplay de Mortal Kombat X que vocês estão vendo só foi possível porque comprei o jogo numa promoção por uns 20 reais.

Enfim, essa estratégia de precificar lá em cima é algo que as indústrias de eletrônicos conhecem muito bem, e é normal elas se aproveitarem do status proporcionado por comprar um equipamento ou jogo caro. Poucas são aquelas que buscam expandir o mercado de forma mais ampla, embora haja exemplos de sucesso, como a precificação da Steam em reais, os free to play nos celulares, ou mesmo a estratégia local da Microsoft.

De qualquer forma, a tendência dessas indústrias é segmentar o público com produtos bem caros. Os consumidores podem fazer pressão para que estratégias diferentes sejam criadas, mas, a princípio, é preciso lidar com um pouco de pé no chão e saber que, além das crises que ultrapassam o contexto dos jogos, há também fatores bem próprios da nossa indústria que são responsáveis pela situação em que nos encontramos, e na qual vamos viver por possivelmente um bom tempo.

Tudo isso, porém, não é motivo para abandonarmos o hobby, especialmente porque ele parece especialmente produtivo em tempos de crise. Minha recomendação é que estejamos sempre engajados em arte, e jogos fazem parte disso. Talvez seja complicado manter esse hábito agora, mas eu acredito que se deve estudar todas as possibilidades para que possamos nos manter ativos nessa comunidade.

E era isso que eu queria dizer sobre o ato de jogar na atual crise mundial. Eu ficaria contente de ler também como vocês têm passado esses tempos difíceis e o que acham dessa discussão. Até a próxima análise!

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Pokemon Snap - Pensando sobre o jogo




Olá! Hoje vou falar de Pokemon Snap, jogo da HAL Laboratory para Nintendo 64, publicado pela Nintendo em 1999. Trata-se de um jogo que eu aprendi a valorizar com o tempo e que apresenta uma das raras oportunidades de a gente ver um universo ser expandido de forma totalmente nova e complexa.

A minha reação a Pokemon Snap na época em que ele foi lançado foi um típico produto da sua época, e também da minha mentalidade adolescente, mas que encontrou semelhança com muitos com quem eu conversei naquele tempo.

Eu vou dispensar falar do fenômeno Pokemon da virada do século, quando absolutamente todo mundo tinha ouvido falar ou do jogo, ou do anime, ou de uma das muitas ações promocionais com outros produtos por aí, porque eu acho que todo mundo conhece a história.

A questão é que no cerne do sucesso imenso da série Pokemon estava um par: o anime e o jogo de Gameboy. Porém, obviamente, havia uma diferença muito grande entre eles, já que o anime era inteiramente dirigido e planejado, como qualquer mídia audiovisual, enquanto o jogo era algo constrangido pelas mecânicas de Gameboy e pelas convenções de jogos da época, o que causava uma considerável dissonância entre as duas mídias.

O mais claro exemplo disso é que as batalhas entre pokemons, no anime, aconteciam em tempo real, e com contato físico evidente, enquanto o jogo funcionava por turnos, e o contato era apenas sugerido. Outro exemplo, no sentido oposto, é que o anime, por querer sempre ter novas temporadas, fazia o protagonista perder a liga pokemon, enquanto o jogo claramente tinha em mente fazer o jogador vencer ao final. A outra dissonância óbvia eram os gráficos, que eram tão distantes e vistos por cima no Gameboy, e tão próximos e pessoais no anime.

Eu digo tudo isso porque, quando surgiram notícias de jogos de Pokemon para o Nintendo 64, houve uma expectativa razoável de que algumas dessas dissonâncias seriam resolvidas pelo poder do console em relação ao Gameboy. Porém, curiosamente, quem geria os projetos relacionados à marca parecia pensar muito diferente dos fãs que eu conhecia.

Talvez aquele que passou mais perto de oferecer o que esses fãs gostariam fosse Pokemon Stadium, do mesmo ano de Snap, e que oferecia lutas em 3D, mas ainda em turnos. Além disso, o contato físico era ridiculamente representado, como se houvesse um muro no meio da arena, impedindo os monstros de se tocarem. Isso acabava criando efeitos cômicos, com um pokemon arranhando outro apenas com o vento provocado pelo movimento do arranhão em si.

Eu nunca entendi isso, e só posso imaginar que se devesse a limitações técnicas do jogo ou do estúdio, porque as lutas no anime exibiam contato, e o público-alvo era o mesmo. Além disso, um título como Monster Rancher 2 já possibilitava lutas com contato sem nenhum problema, e isso no mesmo ano em que Stadium saiu. Então, apesar de o jogo oferecer certas coisas inestimáveis aos fãs, como uma forma de lutar em 3D, Stadium ainda era cheio de limitações e estava muito longe daquilo que o anime prometia.

Agora, se esse jogo estava distante, Pokemon Snap estava em outra galáxia. Afinal, o jogo não era baseado em nenhuma das duas ações que pautavam a série até então: capturar pokemons e usá-los em batalha. O jogo era inteirinho em 3D, sim, mas era sob trilhos, com você encarnando o fotógrafo Snap, contatado pelo professor Carvalho para tirar fotos de pokemons num hábitat intocado por seres humanos.

No jogo, então, você escolhe uma certa rota, que compreende um trecho da ilha, e, com um carro que anda automaticamente, vai tirando fotos dos pokemons que aparecem por lá. E, por isso mesmo, eu e muitos outros não nos interessamos pelo jogo; afinal, não era nada do que se esperava da experiência de um Pokemon.

Porém, anos vão se passando e minha relação com Snap só foi ficando melhor. Hoje eu percebo que provavelmente é um dos títulos mais ambiciosos no que toca a expandir o mundo de uma série. Claro, perdeu-se a complexidade da combinação da sua equipe de pokemons e, com isso, a metáfora da necessidade de criar um time balanceado e planejado. Perdeu-se, também, a exploração livre e a tensão de certas batalhas.

Porém, o que se ganhou foi o ato de enxergar pokemons para além de um conjunto de atributos, habilidades, vantagens e desvantagens. Cada monstro em Snap está cuidando da sua vida, ou vivendo tranquilamente, ou interagindo com outros pokemons, ou chamando a sua atenção por algum motivo. E, conforme você avança no jogo, o que se dá por tirar fotos de um certo número de monstros e por conseguir fotografias de alta qualidade, você ainda ganha novas ferramentas que aumentam ainda mais as interações.

O jogador, por exemplo, ganha a habilidade de jogar maçãs, o que pode fazer um pokemon chegar mais perto para comer, resultando numa foto mais nítida, ou então, se jogada entre dois pokemons, pode gerar uma disputa que pode ter resultados imprevistos, já que o jogo nunca aponta esse tipo de possibilidade. E todos esses momentos interessantes do jogo sempre soam autênticos, como efetivamente representando comportamentos de pokemons específicos.

E, com isso, as perdas de mecânicas em relação à série principal acabam ressignificadas para mim: em grande medida, o que a gente percebe, ao olhar Pokemon Red e comparar com Snap, é que o jogo de Nintendo 64 deixou de ver os monstros como instrumentos, como objetos a serem coletados, como atributos a serem combinados, ou seja, ele deixou de ver pokemons como uma extensão do indivíduo jogador.

O resultado disso foi que Snap tratou os pokemons com o respeito que os demais animais, criaturas e sujeitos merecem. O objetivo de Snap é apenas capturar momentos dos pokemons, entendê-los, conhecê-los, e interagir com eles apenas para saber o que há de único no seu comportamento. Pokemons, em Snap, são tratados com respeito e veneração, e não com a submissão que é tão típica da série principal.

O termo “submissão” aí parece estranho, porque a gente não se dá conta de que é disso que se trata quando as criaturas nos jogos principais da série se comportam da forma utilitária, apenas como monstrinhos esperando ser capturados, domados e usados em batalha. Em Pokemon Red ou Gold você não ia ver um monstro que se recusava a evoluir, ou que não queria ser contido numa pokebola. Isso era território exclusivo do anime, e isso porque ele decidiu que pokemons deveriam ser tão personagens quanto os humanos que os capturavam. Os jogos não tinham essa preocupação.

Em Snap, os pokemons não são nada utilitários. Eles não oferecem nada ao jogador, além daquilo que eles já iriam fazer se o protagonista não estivesse lá. Ele é um mero expectador. E com isso as criaturas brilham, ganham força, individualidade, carisma e charme.

Por isso, Pokemon Snap prova que mudar radicalmente as mecânicas de uma série pode ressignificá-la completamente, adicionar um nível de complexidade novo ao mundo que ela retrata e, em última instância, até apontar os pontos cegos que ela apresentava até então. As mecânicas de um jogo são essenciais para o jogador entender quais são as regras daquele mundo, e o peso e a relevância dos personagens que o habitam. Snap oferece um exemplo de como certas mecânicas, embora completamente funcionais e interessantes, podem também apresentar limitações no tocante ao retrato do mundo e das criaturas que vivem nele.

E era isso que eu queria dizer sobre Pokemon Snap. Até a próxima análise!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Dragon Warrior 3 (Dragon Quest 3) - Pensando sobre o jogo




Olá! Hoje vou falar de Dragon Warrior 3, ou Dragon Quest 3, como ele é mais conhecido, jogo desenvolvido pela Chunsoft e lançado pela Enix em 1988 para o NES, e depois refeito algumas vezes, seja para Super Nintendo em 1996, para Gameboy Color em 2000, e para smartphones em 2014. Esta última versão, inclusive, ficou disponível no Nintendo Switch neste ano mesmo.

Dentre essas mil e uma versões, sem contar os ports, eu preferi adotar a de Gameboy, seguindo o padrão de ter jogado os dois títulos anteriores também na sua versão para o portátil, seja porque é mais simples, seja porque é mais visualmente agradável.

Eu recomendo a quem se interessar que veja as minhas análises sobre os dois Dragon Warriors anteriores para se familiarizar com o assunto, especialmente o vídeo dedicado ao primeiro jogo. Isso é uma recomendação mais ou menos geral que eu faço quando trato de séries, mas é especialmente interessante no caso desse jogo, como eu vou tratar mais para frente.

Uma das coisas mais interessantes ao tratar de jogos antigos é acompanhar a rapidez com que certas tradições evoluíram e se consolidaram. Hoje em dia a gente vê séries anuais que apenas mascaram um trabalho unificado, visto que cada jogo acaba tendo ciclos de três a quatro anos para seu desenvolvimento, e cada estúdio ou subtime num mesmo estúdio acaba trabalhando com certa independência, sem iterar diretamente no trabalho da equipe que lançou o título anterior.

Nos anos 80 e 90 não era assim: jogos eram desenvolvidos num tempo muito menor, muita coisa era reaproveitada, e isso permitia diálogos e reações muito mais claras e velozes no desenvolvimento. Isso fica evidente para mim no caso da primeira trilogia de Dragon Quest: o segundo jogo saiu menos de um ano depois que o primeiro; e o terceiro, pouco mais de um ano depois do segundo. E é inacreditável o quanto cada título expandiu o conceito de seu antecessor, e como a ambição de Dragon Warrior 3 é impressionante, fazendo dele um dos mais incríveis casos de expansão em curto prazo e, ao mesmo tempo, de consciência de unidade de uma série.

Se Dragon Warrior 2, como eu afirmei no meu vídeo, já inovou por incluir um grupo de protagonistas, todos descendentes do famoso herói Loto ou Erdrick; Dragon Warrior 3 dá um passo extra ao permitir um membro a mais no grupo, agora 4 ao todo, e ao a customização livre dessa party segundo o seu interesse, podendo escolher entre 6 classes iniciais. O seu protagonista, porém, permanece sempre com a classe de herói, que é uma mistura de todas as outras, por assim dizer.

Essas características soam bastante semelhantes ao que o primeiro Final Fantasy tinha feito, com um grupo de 4 heróis também customizável. Aliás, eu tenho bastante curiosidade para saber até que ponto Final Fantasy influenciou Dragon Quest nesse ponto, porque, embora haja muitas similaridades, apenas dois meses separam os dois jogos, e o sistema de customização de Dragon Quest é tão integral para o seu balanceamento que me parece pouco provável que ele seja uma reação a um jogo lançado tão perto da sua finalização.

De qualquer forma, Dragon Warrior 3 expande a customização para bem além do que Final Fantasy permitia, incorporando mudanças de classes e a possibilidade de refazer seu grupo conforme sua vontade. Pela história do jogo, os companheiros do herói são aventureiros recrutados na cidade natal, sendo possível deixar personagens lá e recrutar outros, de outras classes, para testar combinações possíveis e mais adequadas a certos contextos.

No tocante a mudança de classes, é possível fazer um personagem trocar depois que ele alcança nível 20, o que seria algo como um terço do jogo. Quando ele troca de classe, os atributos do personagem mudam e ele volta ao nível 1, mas os feitiços e magias que ele conhecia continuam na sua memória, sendo possível usá-los. Assim, você pode ter um feiticeiro convertido em guerreiro, mas mantendo todas as magias de ataque de antes.

Ao entender isso, eu fiquei um tanto preocupado em relação ao desafio do jogo. Se o jogo permite que cada personagem possa compensar suas deficiências apenas trocando de classe, e assim agrupando o que há de melhor em cada uma, talvez o jogo exigisse que tal coisa fosse feita. Ou seja, se um jogo te dá essa opção, é bem possível que ele te coloque desafios em que o seu grupo precise que praticamente todos os membros usem magias de cura, ou que se virem sem usar magia nenhuma.

Por isso mesmo, eu tentei ir do começo ao fim sem mudar a classe de nenhum personagem, e com um grupo padrão de herói, um guerreiro, um especialista em magias de ataque e um focado em cura. E, fico feliz em relatar que eu fui até a tela de créditos sem nunca encontrar impedimentos ao meu grupo simples. Então, embora o jogo ofereça inúmeras opções avançadas, ele mantém um desafio que respeita o uso que você quer fazer dos sistemas, seja o mínimo, seja o máximo.

Outra coisa importante no tocante à mudança de classes que me preocupava era a questão de ter que me engajar em batalhas só para ganhar experiência, já que o nível dos personagens volta ao 1. E o fato é que é bem fácil adquirir experiência no jogo para voltar a um nível praticável. Aliás, é provavelmente por isso que o bloqueio para trocar de classe acontece no nível 20, um ponto em que existem monstros que fornecem bastante experiência e que, ao trocar um personagem de classe, uma luta pode fazê-lo pular do nível 1 ao 4 ou 5 com rapidez.

Aliás, uma das coisas mais interessantes em Dragon Warrior 3 é a questão do balanceamento. É bem conhecida a reclamação de que muitos RPGs japoneses sofrem com esse problema, resultando muitas vezes no famoso grinding, o ato de ficar lutando com monstros apenas para ganhar experiência e poder enfrentar algum inimigo forte demais, ou então numa taxa muito elevada de encontros aleatórios, que mal permite que você progrida com sua exploração.

Dragon Warrior 3 não sofre de nenhuma dessas coisas. A taxa de encontros aleatórios é provavelmente a menor da série até então, e certamente tranquilíssima em relação a seus pares da mesma época, o que permite explorar tranquilamente, embora você seja, sim, atacado com certa frequência. Além disso, o jogo permite fast travel desde bem cedo, o que alivia muito o caminho de volta para a cidade mais próxima e corta uma caminhada que poderia estar repleta de inimigos.

Já o grinding me pareceu mínimo. O único momento em que eu senti que precisei parar para ganhar experiência foi quando estava numa região com inimigos capazes de envenenar os heróis e eu não quis progredir enquanto não tivesse uma magia com antídoto. Na prática, foram apenas uns 3 níveis e nem uma hora de combates. E, é possível dizer que era uma questão mais opcional do que requisito por algum bloqueio de dificuldade.

De resto, em termos de jogabilidade, o jogo atualiza o modelo de sucesso já presente no primeiro título da série, sendo um competente RPG de turnos. Como se sabe, apenas o sprite dos inimigos aparece na tela de combate, e os remakes adicionaram animações com os ataques que tornaram as coisas mais dinâmicas e interessantes. Especialmente nas lutas de clímax, essas animações dão uma empolgação diferente ao jogo.

Por todos esses motivos, Dragon Warrior 3 já se destaca para mim como um dos maiores e melhores exemplos de jogos do seu gênero, capaz de aprender muito com as limitações dos seus predecessores, e sempre consciente dos seus sistemas e ferramentas. É um jogo que eu luto para achar um defeito em termos de jogabilidade, e também em termos de história.

Falando nisso, vamos a ela. Se a jogabilidade de Dragon Warrior 3 revela um esforço profundo de incorporar tudo que se aprendeu com seus antecessores e dar um passo além, a história é ainda mais emblemática desse objetivo, seja pelo referencial em cima do qual a trama é construída, seja pela sutileza com que cada detalhe é incorporado.

Dragon Warrior 3 conta a história de um protagonista com nome customizável, e que era filho do grande herói daquele mundo, um tal Ortega, que é visto numa batalha de vida ou morte com um dragão na introdução do jogo no NES, e que conta com um longo preâmbulo nas versões posteriores, o que é provavelmente uma das melhores adições que um remake já fez num jogo.

A introdução de Dragon Warrior 3 mostra as aventuras de Ortega quando o protagonista do jogo ainda é um bebê, buscando vencer o monstro Baramos. A gente vê o herói andando pelo mundo, lutando contra inimigos, e enfim desaparecendo num vulcão com o inimigo, da mesma forma como a introdução do NES mostrava. Por fim, o jogador é informado que o objetivo do filho de Ortega é seguir os passos do pai, mas conseguindo finalmente vencer Baramos.

O genial do preâmbulo dos remakes é que ele contém a mesma trilha sonora, as mesmas paisagens e cenários que o jogador percorrerá na sua aventura. Quando você soma isso aos relatos dos NPCs nas diversas cidades do mundo, o resultado é uma sensação muito forte de que você está seguindo nos passos do seu pai, o que, no fundo, é o único fio condutor dessa parte do jogo.

Aliás, algo que me deixou muito desconfiado da história desse jogo é a falta de urgência na trama. A gente ouve que as ações de Baramos vão destruir a paz, mas na maior parte do tempo, tudo parece muito normal naquele mundo, enquanto nos jogos anteriores você via os efeitos das ações dos vilões já bem cedo na trama. Até aí, seu único motivador é seguir os passos do Ortega.

Mas aí você chega numa cidadezinha chamada Tedanki. Primeiro, você ouve falar, num templo próximo da cidade, que os cidadãos costumavam visitá-lo, mas agora não mais, mas sem dar maiores detalhes. Você, então, chega em Tedanki, estranhamente na parte da noite, independentemente do momento do dia em que você adentra a cidade. Tudo parece normal, e alguns moradores falam que aquela é a cidade mais próxima do castelo de Baramos, e provavelmente a que será afetada primeiro por ele. Você dorme no hotel da cidade e, quando acorda, todos estão mortos há muito tempo. O que você viu, os personagens com quem falou são só sombras do passado, presas por seu fim traumático sob as mãos de Baramos, e que são revividas toda noite.

Esse momento é incrivelmente impactante, com os esqueletos deixando mensagens sobre o que queriam ter feito antes de morrer, e alguns fantasmas se recusando a acreditar que estão mortos. A trilha sonora é muito sombria e a comparação do cenário todo destruído e da cidade da noite anterior acabam criando uma ambientação muito específica, triste e altamente bem-sucedida em criar um sentimento de angústia no jogador. Se, até agora, o que guiava o jogador eram o sentimento de aventura, o desejo de exploração e o dever de cumprir a missão do seu pai, agora você quer ver o tal Baramos destruído. É um momento estranhamente emocional, que poucos jogos dessa época despertam.

Ao conseguir finalmente vencer Baramos, o jogador segue a trilha clássica da série, e volta para sua cidade natal para ser congratulado pelo rei que o colocou em sua missão. Porém, diferentemente dos seus antecessores, Dragon Warrior 3 faz surgir um vilão maior que Baramos bem no momento em que o jogo parecia acabado, mais um caso de subversão bem quando o jogador se sente mais seguro. Vale dizer que nada apontava para isso, e a duração do jogo naquele momento já era superior do que os demais jogos da série, visto que o mundo é bem maior que os anteriores, e existem diversas tarefas a cumprir para enfrentar Baramos, então não havia motivos para desconfiar que algo mais aguardava o jogador.

Para vencer o último inimigo, o protagonista e sua equipe são transportados a um outro mundo, que nada mais é do que o mundo onde os dois primeiros jogos da série se passam. Esse último pedaço do jogo, aproximadamente 25% do total, acaba sendo um tour por todos os elementos do universo de Dragon Warrior até então, o que torna tudo muito familiar e lentamente desperta uma desconfiança no jogador.

Assim, você conhece quais são os itens necessários para terminar o jogo e tem uma noção de como e onde usá-los, mas alguns deles têm nomes diferentes. Conforme você os coleta e nota que só o protagonista pode usá-los, você se dá conta de quem está controlando, o que fica evidente quando o jogo finalmente acaba: você é o famoso Loto ou Erdrick, o herói de que todo mundo fala nos Dragon Warriors anteriores, o antepassado dos heróis dos jogos anteriores, e esses itens que você coleta serão depois itens associados a você.

Tudo isso ressignifica a sua jornada em Dragon Warrior 3, permitindo reaproveitar todo o material já construído nos demais títulos da série, e servindo como uma prequel muito efetiva e muito mais ambiciosa. Afinal, você descobre que Erdrick não salvou um mundo, e sim dois.

E, vale dizer ainda que o jogo, não contente em criar essa rede de referências com a série em si, não ia deixar de amarrar a última ponta faltante, o que acontece quando, no último labirinto, o jogador encontra Ortega, sendo derrotado por um dos monstros que, logo em seguida, você terá que derrotar. Ortega não reconhece o protagonista, do mesmo jeito que o jogador não reconhece a figura de Loto, o que acaba sendo um momento algo emotivo, não pelo que é dito, mas pelo que não é dito.

A história de Dragon Warrior 3 é repleta desses momentos em que o não dito faz o trabalho de mexer com o jogador: o não dito de você ter encontrado uma vila cheia de pessoas que agonizaram, mas não conseguem desapegar dessa existência; o não dito de um pai que você tanto perseguiu e, quando finalmente alcançou, acabou sendo perdido de novo, e sem o sentimento de satisfação que se esperava dessa missão; o não dito de saber que o seu personagem de fato influenciou gerações e mais de um universo. Nada disso é dito no jogo, mas o jogador sente, e é algo muito especial, principalmente quando a gente considera jogos da mesma época.

Com isso, Dragon Warrior 3 se posiciona como uma obra que entende perfeitamente o que é fazer parte de uma série e faz uso total das potencialidades que esse fato permite, tanto em termos de mecânicas, quanto de história. Até a trilha sonora do primeiro jogo é reaproveitada para demarcar a mudança de mundos, mais um detalhe sutil e marcante numa experiência absolutamente repleta deles.

A rigor, trata-se de um jogo com mais de três décadas, num momento em que ainda se pensava quais eram as possibilidades narrativas reais de jogos. Porém, é, ao mesmo tempo, um jogo tão absolutamente confiante e consciente de suas capacidades que choca o jogador que passa por uma experiência tão bem acabada.

Dragon Warrior 3 é, como seu protagonista, uma lenda que definitivamente faz jus à sua reputação e honra com sutileza todo o seu potencial. E era isso que eu queria dizer sobre Dragon Warrior 3. Até a próxima análise!