Olá! Hoje vou falar de Life is Strange, jogo desenvolvido pela Dontnod e publicado pela Square Enix, de forma episódica, ao longo de 2015. Trata-se de um jogo muito querido por um número considerável de pessoas e que, ao mesmo tempo, contém suas polêmicas diversas. Para mim, é um jogo capaz de mover sentimentalmente o jogador por uma abordagem humilde e direta, a qual surpreende em diversos momentos.
Antes de a gente de fato começar, eu preciso dizer que eu não vou poupar spoilers nessa discussão. Life is Strange é, na prática, um jogo com características de point and click, mas cujos puzzles são leves, com o foco sendo mesmo a história e interação entre os personagens, e comentar o jogo sem os desenvolvimentos narrativos acaba sendo uma empreitada vazia. Portanto, estejam todos avisados desde já. Dito isso, vamos lá.
Life is Strange conta a história da jovem adulta Max, recém-chegada da cidade grande, e retornando à sua cidade natal, Arcadia Bay, para estudar fotografia numa escola consagrada. Lá ela descobre, ao presenciar um acontecimento violento e traumático, que pode voltar no tempo e alterar pequenos eventos, algo que pode ou não ter grandes consequências.
Na prática, o jogo gira em torno das mecânicas de puzzle que são típicas de um point and click como The walking dead, de que eu já tratei há muito tempo aqui, em que você precisa achar os itens certos para os momentos e situações condizentes. Os poderes de voltar no tempo oferecem alguma variedade nesse sentido, permitindo ao jogador desfazer certas situações e fazer a Max avançar enquanto o tempo congela.
Mas, para além disso, o foco está mesmo nos diálogos com os diversos personagens e nas possibilidades de exploração deles com a ajuda dos poderes da Max. Isso pode se restringir a corrigir um comentário com efeitos negativos, e também a fazer uso de uma informação que não se tinha antes, para mudar totalmente o tom e o rumo da conversa.
No jogo, há momentos-chave, em que o jogador deve decidir grandes questões, e também pequenos momentos, cuja repercussão não será imensa, mas que serão retomados em diversos pontos, podendo ajudar ou atrapalhar a Max em sua missão. Falando em missão, vamos a ela.
Uma das características mais peculiares de Life is Strange é o que eu vou chamar de escopo variável: na prática, o jogo lida com três tramas diferentes ao mesmo tempo, o que faz o jogador muitas vezes sentir que está pulando entre temas totalmente distintos. É uma característica que o jogo pega do seriado Twin Peaks, o que inclusive está sinalizado em alguns easter eggs.
De início, Life is Strange apresenta apenas o drama adolescente da jovem Max tentando entender seu papel na sua escola e na sua própria vida, especialmente quando ela retoma contato com a sua amiga de infância, Chloe, de quem ela tinha se afastado havia 5 anos e que ela reencontra totalmente mudada. Nesse plano, Life is Strange trabalha com o luto da perda do pai da Chloe; bullying dos colegas mais tímidos, como Kate; sentimentos não correspondidos, como os de Warren; gravidez não planejada, como a de Dana; rixas adolescentes, como a de Max e Victoria, etc.
Eu diria que este é nesse plano que Life is Strange funciona melhor. Existe toda uma estética visual leve no campus, misturada aos dramas de todo dia, que, apesar de tão frequentes, não são menos tensos. Essa atmosfera gera um clima que, mesmo que alguns não considerem muito realista, certamente faz um bom trabalho em criar uma imersão que mantém o jogador no momento.
Nesse mundo, Max faz toda a diferença e é o ponto em que a mente dela parece mais focada. Consertar a relação dela com a Chloe, salvar a Kate dos seus fantasmas, escolher como tratar a Victoria, lidar com o Warren etc. são ações que acontecem de forma muito natural naquele universo e, em grande medida, ecoam facilmente na experiência do jogador e permitem um engajamento rápido e firme.
Nesse plano, a Max é como um papel em branco, que é preenchido conforme suas interações com os demais, que funcionam como oportunidades para ela se definir, colocando de forma externa os mesmos conflitos que ela demonstra ter internamente: os problemas de bullying da Kate reverberam os medos de aceitação da própria Max; os avanços do Warren comentam diretamente no desejo ou não da protagonista se abrir emocionalmente ao mundo à sua volta; a competitividade com a Victoria pela atenção do professor permite à Max enxergar até que ponto vale lutar pelo reconhecimento alheio; e a rebelde Chloe desperta o espírito de aventura da Max e a sua capacidade de agir no mundo, e também faz a Max se defrontar com os seus próprios erros.
Em grande medida, como vai ficar claro ao longo do texto, a relação de Chloe e Max é uma versão condensada de todos os temas do jogo e, nesse plano, ela reflete a dualidade do abandono sofrido pela Chloe, quando a Max saiu da cidade imediatamente após a morte do pai da Chloe, e o desejo intenso da Max de proteger e fazer parte da vida da Chloe nos dias de hoje. A incapacidade de ela mudar um passado tão distante pauta a vida presente da Max ao longo do jogo.
E isso nos traz ao segundo plano de Life is Strange, que é o lado investigativo/criminal do jogo. Ele gira em torno do sumiço de Rachel Amber, grande parceira de Chloe, e do fato de que Kate foi drogada numa festa, o que, aliás, aconteceu com Chloe também, embora ela tenha conseguido escapar.
Provavelmente esse é o lado mais fraco de Life is Strange, porque é alimentado por dois aspectos complicados: o primeiro é a total resistência de lidar com os adultos no início do jogo. Em diversos momentos, parece óbvia a necessidade de envolver as autoridades, mas os personagens ou se recusam a fazê-lo, ou o jogo faz questão de desenhar os adultos como não confiáveis, o que ele mesmo contradirá no último episódio.
É, aliás, curioso como o jogo mina a sua relação com praticamente todos os adultos daquele universo nos primeiros episódios, para deixar claro que Max e Chloe praticamente só podem depender uma da outra, mas depois volta atrás quando a trama necessita. Os episódios 4 e 5 são repletos de adultos doces e os que são brutos não deixam de ter seus sentimentos desvelados e acabam se mostrando muito úteis para os adolescentes.
O segundo aspecto complicado nesse plano é a ausência de algumas opções que certamente mudariam os rumos daquele universo. Quando a Max descobre que a Kate foi drogada, por exemplo, faz todo o sentido do mundo ir dividir essa informação com a Chloe, até porque as duas moças indicam o mesmo indivíduo como responsável: Nathan Prescott.
O Nathan em si é também um problema desse plano do jogo, porque o personagem é apresentado de forma tão alucinada e violenta que você não consegue entender como as meninas não focam no estrito objetivo de denunciá-lo e tirá-lo de circulação. Na verdade, por um bom tempo, Chloe e Max parecem agir apenas sobre os efeitos da presença do Nathan, em vez de lidar com ele de uma vez.
Por conta disso, a trama criminal do jogo vai sendo algo arrastada, o suficiente para ela funcionar como condutor da história pelo menos até a metade do quinto episódio. Na última metade, finalmente se revela a terceira trama e conflito final de Life is Strange, que é o furacão previsto pela Max no primeiro episódio, e que pretende amarrar todas as questões do jogo com uma escolha derradeira.
Esse furacão nada mais é do que uma representação dos esforços da Max de controlar o tempo e mudar o destino de certos personagens, notadamente o da Chloe, que a Max vê ser morta logo no começo do jogo. Na prática, o jogo coloca a escolha entre salvar a Chloe no início, ou a cidade no fim da experiência. Nenhum dos finais parece decisivamente canônico, cabendo ao jogador escolher o que fazer.
A questão do furacão e de escolher ou não salvar a Chloe acaba sendo uma manifestação física da própria história do jogo e do personagem da Chloe em particular. Ao longo da experiência, grande parte das ações da Max gira em torno de salvar a Chloe de eventos presentes, ou de corrigir eventos passados negativos para ela, seja o sumiço da Rachel, seja o abandono pela Max, seja a morte do pai da Chloe. Em alguns momentos, o jogo chama atenção para essa ideia fixa da Max de proteger a Chloe a qualquer custo.
Essa incapacidade de deixar a Chloe livre para seu próprio destino, por mais trágico que ele seja, reflete um pouco o próprio caráter da Chloe, uma pessoa que é definitivamente lutadora e forte, mas que tem o crucial defeito de não abandonar nenhum evento traumático. Ela é revoltada pelo fato de o pai ter morrido, tem muita dificuldade de perdoar o sumiço da Max, nunca desiste de procurar pela Rachel e, quando descobre o que aconteceu com ela, se recusa a deixar as coisas como estão.
Essa Chloe, obcecada por acontecimentos que a marcam, é o perfeito complemento para uma Max obcecada por mudar eventos. Afinal, se uma pessoa é para sempre transformada por acontecimentos, a única forma de mudá-la é alterar esses eventos mesmos. Porém, o que realmente muda a Chloe ao longo do jogo não é a alteração dos eventos passados, mas sim a disposição constante da Max de lutar pela Chloe, algo que ela sente, independentemente de se ela é capaz de compreender ou sentir os resultados das ações da amiga.
A Chloe do começo do jogo é uma pessoa tão ressentida e agressiva que é muito frequente ouvir pessoas que desgostam do jogo simplesmente porque não a suportam. No começo do jogo, ela é antipática mesmo. Ao longo da experiência, muito da inconsequência que a marca persiste, mas aumenta a capacidade dela de ouvir a Max, de se importar com os pais, de proteger em vez de destruir. Essa característica vem diretamente da relação dela com a Max, com a forma como a Max se mostra disponível para a Chloe.
Nisso se mostra a parte trágica do final do jogo: a Chloe que sugere que a Max volte e a deixe morrer foi alterada para sempre pelo retorno da amiga, mas a Chloe que vai morrer nunca terá essa chance, ela vai morrer achando que ninguém se importa, que ela não tem ninguém, provavelmente sem entender por que ninguém quer nada com ela. Uma pessoa cheia de raiva e solidão.
Foi isso que fez tão dura a decisão final para mim: não que a Chloe morrer fosse necessariamente algo horrível; a sugestão foi dela, e muitos dos habitantes da cidade eram pessoas com as quais eu simpatizei bastante. Porém, a situação em que a Chloe precisa ser colocada ao final, órfã de pai, em guerra com a mãe e o padrasto, abandonada pelas duas melhores amigas, recém-drogada, e simplesmente baleada num banheiro é difícil demais de aceitar.
Mas este é justamente, para mim, o efeito desejado por Life is Strange: mostrar como deixar alguém para trás é difícil; como o verdadeiro superpoder não é voltar no tempo, mas seguir adiante. Algo que a Chloe conseguiu aprender com a Max, e agora a Max vai ter que aprender com a Chloe, estando ela viva ou morta.
E nessa relação, como eu disse, está encapsulado todo o jogo: o fato de o Warren ser rejeitado pela Max, por exemplo, abre caminho para ele enxergar pessoas que têm interesse nele; o trauma da gravidez da Dana precisa ser deixado para trás para ela se envolver em outro relacionamento; o vídeo da Kate nunca vai sumir, mas agora ela percebe os amigos que estão lá para defendê-la; a Joyce é provavelmente a personagem mais forte do jogo pelo fato de que a vida dela sempre segue em frente.
Como eu falei no início, Life is Strange funciona em diferentes planos, mas os três carregam a mesma mensagem: a necessidade de seguir em frente. No plano do drama adolescente, isso se reflete pela necessidade de os personagens deixarem seus traumas para trás e seguir em frente, o que se mostra sempre possível, embora doloroso; no plano da viagem no tempo, isso se mostra na necessidade de aceitar que sacrifícios serão feitos para seguir em frente, seja o da cidade, seja o da Chloe; e, no plano criminal, embora seja menos clara, a temática está presente nos criminosos, que associam suas imagens estáticas à impotência e, finalmente, à morte. Trata-se de indivíduos que não aceitam as mudanças exercidas pelo tempo, representando algo não natural e, com isso, a própria morte.
Eu diria que tudo que eu disse não faz justiça a Life is Strange, mas eu acho que isso pode ser dito de toda obra de arte bem amarrada. A gente pode apenas mostrar um pouco da nossa experiência, tendo claro que muito fica dentro de nós, sem poder ser expresso, restando apenas sugerir o jogo a todos que puderem experimentá-lo. E, como o jogo tanto repisa, o que nos cabe é seguir em frente.
E era isso que eu queria dizer sobre Life is Strange. Até a próxima análise!