quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Teoria: A noção de que gameplay tem que ser prioridade num jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje eu vou falar mais uma vez sobre teoria, agora tratando de um tema que retorna aos meus pensamentos de tempos em tempos, e que finalmente eu resolvi discutir com vocês. O tema de hoje é a noção de que gameplay é a coisa mais importante num jogo.

Antes de mais nada, a minha ideia aqui é justamente desmistificar essa noção o máximo possível, porque, para mim, o mais importante num jogo é a experiência que ele entrega, e aí o gameplay é um fator decisivo, sim, mas ele apenas soma esforços com outros fatores, igualmente decisivos, como o som, a estética visual e a história.

É preciso dizer que eu não estou querendo rebater ninguém em específico com o que eu estou dizendo. Aliás, você, uma pessoa que conhece e procura discussões de jogos, a ponto de achar este blog onde eu posto os meus textos, já sabe que este é um argumento que permeia muitas discussões, debates, comparações e teorias sobre jogos.

E, quando a gente ouve ou lê este argumento, parece algo realmente óbvio. Afinal, como todo defensor dessa ideia sempre afirma, o que diferencia os jogos das outras mídias é justamente a possibilidade de interagir, de conseguir, de alguma forma, ver aquela estrutura reagir à nossa presença. Nós a afetamos, ela nos afeta.

E realmente parece não haver discussão contra isso. O que diferencia os jogos das outras mídias, num primeiro momento, é que eles são interativos. Graças a isso nós obtemos uma série de efeitos que marcam para sempre o jogador. Mas, ao mesmo tempo, a gente vai ter, em termos de proximidade com essa noção de interação, por exemplo, os espetáculos teatrais que procuram integrar o público ao espetáculo, tentando fazer com que ele participe e faça da peça algo totalmente diferente do que ela foi no dia anterior.

A verdade é que a interação é uma ferramenta estética adotada amplamente há muitas décadas e que já é teorizada há séculos. Além do teatro, que é a outra arte em que essa ferramenta é mais amplamente adotada, a gente também tem as artes plásticas, com as instalações, que procuram fazer com que o visitante interaja de diversas formas com os objetos montados. A gente também tem, ainda, artistas performáticos, que ficam à disposição do público para interagir com eles de uma forma significativa, procurando uma experiência de troca com o artista em carne e osso.

A gente tem também livros que apontam diferentes caminhos para o leitor percorrer: ele pode ler na ordem tradicional, ou ele pode pular capítulos, ler numa ordem de idas e vindas, e a obra prevê isso de uma forma consciente. Assim, não é difícil ver quantas artes já trouxeram a interatividade para si mesmas antes de jogos se tornarem uma mídia consciente dos seus projetos e potencialidades.

Sendo assim, a gente precisa repensar aquele argumento tão óbvio que eu apresentei no começo da nossa conversa: o que diferencia os jogos não é o fato de que nós podemos interagir com eles. Na verdade, o que diferencia os jogos é que todos eles têm interações de alguma forma. Ou seja, um jogo tem como interação a sua forma de expressão mais básica.

Transpondo isso para as outras artes, faz sentido. Um jogo como o primeiro Resident Evil faz uso extensivo de câmeras fixas para aumentar a tensão, mas isso não tirou o direito do cinema de falar que a sua maior marca é o uso de ângulos com a câmera. O cinema, por sua vez, pode usar diálogos o quanto quiser, mas os mesmos diálogos continuam sendo a base do teatro. A narrativa continua sendo um dos eixos fundamentais da literatura, mesmo que tanto o teatro, quanto o cinema e os jogos incorporem esse aspecto.

Com isso, acho que a gente chegou num bom lugar na nossa discussão teórica e, como bons cartesianos, nós podemos tentar construir um conhecimento a partir de um postulado fundamental. E esse postulado é que jogos são interativos. Todos eles. Eles reagem a decisões que nós tomamos. O que varia é o tipo e a dimensão do peso das decisões que eles nos permitem.

Alguns jogos vão nos permitir andar livremente, interagir com quase todos os objetos que aparecem; outros vão nos permitir só andar por um pequeno espaço; outros, ainda, vão nos dar pontos de escolha em apenas dois momentos durante toda a experiência. Entretanto, todos eles vão nos dar algum momento para fazer a nossa parte, para nós nos inserirmos na experiência – muito embora, como nós já sabemos, a imensa maioria das nossas interações já sejam esperadas e devidamente programadas pelos game designers; então, quase sempre, nós temos mais a ilusão da liberdade do que uma utópica liberdade total.

Sendo assim, a interação é a pedra fundamental de um jogo, aquela parte que nunca vai faltar. Entretanto, para a gente chegar naquele argumento que eu quero discutir, a gente precisa dar um salto meio grande e, na minha opinião, errôneo. Como a gente passa da afirmação de que a interação é a parte onipresente de um jogo para a afirmação de que a interação é a parte mais importante de um jogo?

Em grande medida, esse movimento vem justamente dessa ideia equivocada de que a interação é o que faz jogos diferentes, mas, mesmo que a gente admitisse essa afirmação como verdade, ignorando tudo que eu falei até agora, focar tão desesperadamente no seu diferencial não me parece algo muito produtivo; pelo contrário: ao procurar o que nos define, a gente pode acabar simplesmente nos limitando sem necessidade.

Essa conversa sempre me lembra uma história lá da minha área de estudos original, a literatura. Na virada do século XIX para o século XX, tanto a literatura quanto a pintura sofreram uma crise existencial sem precedentes. E isso por causa de duas novas formas de arte que, supostamente, ameaçavam as mais tradicionais. No caso da pintura, a grande inimiga era a fotografia; afinal, nenhuma imagem pintada por uma pessoa pode ser realista a ponto de competir com uma foto. Já no caso da literatura, o adversário era o cinema, que poderia vencer qualquer esforço de realismo. Afinal, nenhuma descrição é tão vívida quanto a imagem do lugar ou a transmissão de uma cena.

Graças a isso e a alguns outros fatores que não vêm ao caso aqui, nós tivemos grandes esforços para procurar na pintura e na literatura algo que só elas poderiam fazer, ou seja, aquilo que a fotografia e o cinema não poderiam. Com isso, muitas das tendências de vanguarda da pintura e da literatura nasceram, e elas procuraram criar formas de expressão diferentes, e conseguiram. A ideia era transmitir muito mais as coisas a partir da mente, utilizando processos que não tinham mais a ver com os olhos, e sim com a mente, com o emocional, etc.

Mas, ao mesmo tempo, outras tendências surgiram, e eram aquelas que procuraram incorporar as técnicas de cinema ao texto, como a técnica do rápido movimento, ou a da montagem, que eu discuti no meu vídeo sobre Braid. E essas técnicas foram devidamente incorporadas à literatura, e hoje certas obras dessa tendência são consideradas tão clássicas quanto as mais cerebrais, as que buscavam retrair a arte por conta das inovações, em vez de expandi-la.

Enfim, vamos voltar ao que nos interessa aqui, os jogos. A ideia de procurar um elemento fundamental dos jogos, não para entendê-los melhor, mas sim para prescrever o que vem adiante, necessariamente resulta em limitações. E limitações são tudo de que os jogos não precisam.

Os jogos são, provavelmente, a mídia mais ambiciosa que existe, porque hoje ela incorporou todos os outros elementos definidores das outras artes: jogos têm trabalho com o texto; têm grandes estéticas visuais, sejam realistas, sejam fantasiosas; contam com grandes trilhas sonoras, dos mais diversos estilos; diálogos são presentes em sua imensa maioria; o trabalho com a câmera é muito importante na construção da sua narrativa; e, além disso tudo, jogos são interativos.

Isso, logicamente, implica muitos riscos. Quanto mais fatores uma obra de arte incorpora, mais difícil é manter uma unidade e, portanto, mais complicado é produzir um efeito poderoso, sem elementos que distraiam da experiência que se pretende estabelecer. Não à toa, muitos dos jogos que eu considero mais poderosos são aqueles que contam com o maior foco possível, como Shadow of the Colossus, ICO, Journey, Song of Saya, Hotline Miami, Papers, please, Transistor, Her Story, Super Mario 64 e outros.

É claro que grandes produções podem alcançar excelentes resultados nesse sentido, mas o trabalho de um batalhão sempre vai ser mais difícil de controlar, e as responsabilidades de oferecer resultados lucrativos nessa indústria sempre vai levar a pressões que se comportam muito mais como um detrimento para o produto final do que como uma ferramenta para estabelecer foco. Mas, mesmo assim, nós temos Ocarina of Time, Bloodborne, Bioshock, Fallout e vários outros.

Eu acredito que é dessa dificuldade de criar uma experiência coesa que vem um dos pontos centrais para o afloramento dessa questão de gameplay ser o principal elemento: afinal, com a dificuldade em lidar com tantos aspectos diferentes numa mesma obra, com orçamentos e riscos gigantes, é bem comum ver franquias e estúdios de renome escolhendo novas estratégias, que acabam não sendo tão populares com os jogadores tradicionais, e esses mesmos jogadores acabam associando essas mudanças a uma suposta falta de foco no gameplay.

Vale dizer, claro, que essa interpretação de um abandono do gameplay acaba sendo muito fácil para a nossa comunidade fazer, porque, na verdade, esse fenômeno de os jogos incorporarem as mais diversas formas de arte só se consolidou recentemente, apenas conforme a tecnologia permitiu esse processo, que já dura décadas. Quem estava lá no começo, quem se considera mais entendido e apaixonado por esta mídia, muitas vezes começou num tempo em que as outras possibilidades não existiam, quando quase não havia texto, quando as cutscenes de Ninja Gaiden eram revolucionárias.

Com isso, o pensamento de que os outros elementos estão roubando foco do gameplay acaba sendo lógico; afinal, jogos já eram bons antes de terem diálogo, antes de terem dublagem, antes de terem trilha sonora orquestrada, etc. A verdade, entretanto, é que experiências diferentes tendem a adotar focos diferentes e, por várias razões, a indústria se moveu um pouco para longe da ideia do gameplay complexo, intensivo e desafiador, embora ainda haja jogos que mantenham esse foco.

Determinadas escolhas de design e o desejo de ter gráficos melhores nos afastaram das frame rates mais altas, mas muitos jogos desafiadores, que exigem uma resposta rápida e precisa, continuam adotando os padrões de qualidade que existem há décadas para esses gêneros. A questão, como sempre, é saber achar o jogo certo para o jogador certo.

Porém, uma mudança de foco pode parecer um abandono quando a indústria era antes voltada para você, como a gente já discutiu em outro texto. Por isso, jogos como Gone Home, sem nenhum tipo de desafio ou complexidade no gameplay, acabaram recebendo tantos ataques desnecessários de um público que não tinha interesse em jogar um jogo assim, mas tinha raiva por tal jogo existir.

A questão, entretanto, é que Gone Home não tinha um gameplay ruim, o que, para mim, quer dizer que Gone Home não tinha um gameplay que lutava contra a experiência que ele queria construir. Pelo contrário: o gameplay de Gone Home era uma ferramenta perfeita para explorar o cenário e viver a experiência que o jogo propunha.

Agora, pensando neste mesmo gênero, o gameplay de Everybody’s gone to the Rapture falha, porque a própria mecânica de exploração apresenta problemas – no caso, a velocidade, que trabalha contra o impulso de explorar o cenário. Ou seja, antes de tudo, eu acredito que é necessário a gente pensar no que o jogo pensa em atingir e ver se cada parte que compõe o jogo alcançou o efeito necessário para isso.

Vamos para mais um exemplo, agora Hotline Miami: no jogo, você tem uma mecânica de movimentação e combate que são absolutamente frenéticos. Que são punitivos, mas rápidos, intoxicantes e dão muita satisfação. Quando a gente pensa no visual, a gente nota uma estética cheia de cores que estimulam os nossos olhos e o nosso cérebro, do mesmo jeito intoxicante com que o gameplay trabalha.

Passando ao som, a gente tem uma trilha sonora que praticamente desliga o nosso cérebro e só funciona repetindo as poderosas batidas que nos levam ao combate frenético. Para finalizar, nós temos uma história cheia de buracos e ambiguidades, própria de uma experiência que, como um todo, procura expressar esse vazio da consciência, essa violência vazia e, ao mesmo tempo, tão satisfatória. Com isso, nós temos um jogo compacto, bem planejado, e que entrega uma experiência única.

Mas, vamos passar a algo um pouco mais desagradável, por assim dizer. Em Papers, please, a estética é feia e simples. É desagradável olhar, mas, ao mesmo tempo, oferece algo próximo da realidade, algo que transmite como que uma realidade feia.

O som é abafado, como se você vivesse distante de pessoas que vê tão de perto. A única trilha sonora que marca são as batidas do tema principal, como um martelo que massacra você, decretando a sentença cruel da sua falta de dinheiro, da sua incapacidade de prover a sua família ou de ajudar alguém que precisava.

O gameplay é simples, monótono, mas, ao mesmo tempo, tenso, dando uma mistura de satisfação e culpa por fazer o seu trabalho. E a história provê uma moldura que te dá uma motivação melancólica, tão melancólica quanto o seu espírito no começo de um novo dia no jogo, esperando para ver qual é a novidade que o governo criou para tornar tudo mais difícil e cruel.

Assim, nós temos um jogo que une suas partes para criar um sentimento ruim, embora ligeiramente agradável, apenas o bastante para te manter jogando. Assim, quando você termina, você não diz que viveu uma experiência agradável, mas certamente foi uma experiência interessante, e talvez até importante, que te fez pensar e sentir coisas diferentes.

Os dois exemplos que eu escolhi são de jogos que eu respeito muito, e que procuraram moldar todos os seus elementos para aquilo que eles procuravam despertar no jogador. Todas as partes de um jogo são ferramentas para um determinado fim; elas não existem por si mesmas – ou, pelo menos, não nos jogos mais interessantes.

E era isso que eu queria dizer sobre essa questão de gameplay ser considerado o elemento número um. Não existe elemento número um, e nem deveria. O que importa é a estrutura que os elementos criam. A depender da experiência, os elementos recebem a importância adequada.

Um jogo como Counter-Strike pode existir há quase 20 anos e ser um imenso sucesso, então o foco nas mecânicas e o público que aprecia esse foco nunca foram embora. Mario continua sendo o maior ícone da nossa indústria. Mas, hoje nós temos os mais diversos focos. Em vez de a gente tentar limitar nossas possibilidades, que tal tentarmos expandi-las? Até uma próxima análise!

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Bioshock 2: Minerva's Den - Pensando sobre o jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje eu quero de fato encerrar um ciclo que eu achei que já tinha terminado quando eu falei do DLC Burial at Sea de Bioshock Infinite; mas, eu deixei para trás uma peça e é hora de fazer justiça a ela. Por isso o tema de hoje é o DLC de Bioshock 2, chamado Minerva’s Den, e lançado para Xbox 360 e PS3 em 2010, para PC em 2011, e depois incluído na remasterização para PS4 e Xbox One em 2016.

Uma observação interessante sobre os desenvolvedores de Minerva’s Den: ele é creditado à 2k Marin, mesmo estúdio que realizou Bioshock 2, mas as figuras centrais do seu desenvolvimento depois saíram de lá e formaram um outro estúdio, menor, chamado Fullbright Company, responsável por Gone Home, de que eu já falei aqui também, e que é um jogo com elementos que subvertem alguns dos paradigmas fundamentais da nossa indústria. Portanto, é um DLC com alto pedigree, por assim dizer.

Antes de eu começar a falar do jogo em si, eu recomendo a todos verem o meu vídeo sobre Bioshock 2, já que algumas informações mais ou menos fundamentais sobre as mecânicas estão lá, e eu vou falar de algumas coisas meio por cima, justamente para não me repetir. Eu sei que é praticamente uma viagem no tempo, para o início deste canal, com todos os problemas técnicos que isso implica, mas é melhor do que ficar repetindo algo que muitos inscritos já ouviram e sabem.

Minerva’s Den se passa no mesmo ano que Bioshock 2, provavelmente um pouco depois dos eventos do jogo principal, e, em grande medida, pode ser considerado o último evento importante em Rapture e, portanto, é o último adeus à cidade no fundo do oceano. Ele se passa também numa área relativamente isolada da cidade, com questões, dinâmicas e personagens específicos, totalmente separada dos temas que o pessoal da 2k tentou trabalhar no jogo principal.

Isso oferece vantagens e desvantagens. A principal vantagem é que, desligando-se do jogo principal, Minerva’s Den não precisa assumir os problemas que a temática de Bioshock 2 tinha, como o tratamento da ideologia coletivista, que era um tanto raso e problemático, ainda assumindo uma figura como porta-voz e sem um desenvolvimento convincente dos outros moradores de Rapture como uma comunidade. O jogador ouvia muito a antagonista do jogo falar de família, mas não via ninguém do jogo agindo como se fizesse parte de uma.

Quando a gente pensa no primeiro jogo da série e na ideologia que ele retratava, o ambiente fazia muito sentido: num mundo em que cada um deve lutar por aquilo que acha que merece, é normal que as coisas acabem numa guerra de todos contra todos e que batalhas sejam constantes. Manter o ambiente, mas inverter a ideologia, acaba deixando a trama de Bioshock 2 um pouco desconjuntada.

Já a principal desvantagem de Minerva’s Den se passar num lugar isolado é que isso coloca o desafio aos desenvolvedores de pensar numa temática nova, mas que ao mesmo tempo faça sentido com o todo que o jogo principal e a série propõem, tanto em termos de mecânicas quanto de temática. E isto é uma das coisas mais interessantes desse DLC: em termos de mecânicas, isso acaba resultando em algumas partes meio fora de lugar, com mecânicas do jogo principal que não têm tanto propósito no mundo de Minerva’s Den.

Nesse sentido, o que mais me chama a atenção é a presença de little sisters para o jogador usar para conseguir Adam e depois escolher se quer salvá-las ou matá-las, visando obter mais upgrades para os poderes do jogo, chamados de plasmids. Como em Bioshock 2, o jogador também controla um big daddy, um protetor de little sisters, torturado e programado para servir a elas incondicionalmente.

Porém, se essa relação era o centro absoluto do jogo principal, ela é só um acessório em Minerva’s Den e desvia tanto dos objetivos principais, que a sua inclusão acaba parecendo só um esforço de trazer os personagens mais icônicos da série, em vez de dar um sentido para eles estarem lá. Depois que você decide o destino das little sisters de uma área, até uma big sister aparece para te enfrentar, o que, considerando que Minerva’s Den se passa depois dos eventos finais de Bioshock 2, acaba sendo até um pouco sem sentido.

Já em termos de temática, a coisa curiosa é que Minerva’s Den assume um tom muito mais intimista do que seria de se esperar de um Bioshock, especialmente olhando depois da inclusão de Infinite, que, claro, ainda não tinha saído na época em que o DLC foi desenvolvido. Os jogos principais da série têm essa pretensão de discutir ideologias e grandes temas, contendo até um potencial polêmico e que provoca discussões que estão presentes na nossa sociedade, mesmo que a história se passe num lugar extremamente afastado e fictício.

Em grande medida, eu passei muito do meu tempo com Minerva’s Den pensando que esse DLC poderia perfeitamente existir fora do universo de Bioshock e, com pequenos ajustes, ninguém tomaria como uma influência forte da série ou algo assim – o que, obviamente, não quer dizer que ele seja pior por isso; é só que o seu lugar é extremamente desconjuntado na série. Se a gente pensa que Burial at Sea tem o defeito de querer ligar tanto os jogos da série, que acaba até reescrevendo eventos e os tornando inferiores ao que eram antes, Minerva’s Den tem a característica oposta: um certo desinteresse em fazer parte de Bioshock.

Mas isso não quer dizer que tudo que esse conteúdo fez para se ligar à série foi malsucedido; em várias partes houve sucesso em introduzir aspectos novos ao universo, fazendo com que ele ainda fosse familiar a jogadores da série. Minerva’s Den se passa na parte de Rapture em que funciona o computador responsável por grande parte das funções básicas da cidade, ou seja, é a parte mais tecnologicamente avançada.

Com isso, há uma série de itens e habilidades novas que oferecem tecnologia futurística ao universo do jogo: o jogador agora tem acesso a uma arma laser, os robôs sentinelas agora podem usar laser e eletricidade para atacar, há um novo plasmid que cria um miniburaco negro, sugando objetos e inimigos, e alguns splicers inimigos têm alguns tipos de habilidades que os tornam resistentes a certos elementos.

Em termos de temática, a presença de Minerva’s Den e do supercomputador The Thinker finalmente explica uma das questões mais óbvias da série, que é como uma cidade no fundo do mar, em guerra civil por quase 10 anos, ainda funciona. Afinal, até onde se sabe, não há ninguém em Rapture trabalhando para reciclar água, oxigênio ou comida. Eu acredito que a imensa maioria dos jogadores acaba deixando essas questões de lado conforme aproveita a experiência, mas Minerva’s Den oferece uma explicação para elas e isso só torna o mundo mais bem realizado.

Passando à trama do DLC propriamente dita, o jogador controla o big daddy Sigma, que é um dos primeiros modelos, como era o protagonista de Bioshock 2. Ele é enviado pela Brigid Tenenbaum para ajudar o cientista Charles Porter a obter uma cópia da programação do Thinker e levá-la à superfície, para realizar cálculos importantes na desintoxicação dos viciados em Adam que ainda permanecem. Porém, para isso, Sigma precisa passar por mais splicers malucos e pelo antigo parceiro de trabalho de Porter, Reed Wahl.

A grande questão de Minerva’s Den é a relação desses dois cientistas com o computador que criaram. Como tudo mais em Rapture, o Thinker é uma versão muito superior do que a tecnologia da época possibilitava no mundo real e, por isso, ele deixa os seus criadores fascinados. Para Reed, a máquina é capaz de prever o futuro e oferecer informações que ele, como ser humano, jamais conseguiria obter. Para ele, o Thinker é como se fosse uma divindade, que oferece revelações inacessíveis ao homem.

Já para o Porter, a capacidade de raciocínio e adaptação do Thinker pode fazer com que ele imite livremente a personalidade de um ser humano, como a da sua esposa, falecida durante a Segunda Guerra. Assim, ele poderia trazê-la de volta de alguma forma, e apaziguar a sua consciência, por ter trabalhado tanto durante a guerra, em vez de passar com ela os últimos momentos antes de ela morrer.

Assim, como eu disse, Minerva’s Den abandona as grandes ideologias típicas de Bioshock, e procura um tratamento intimista do homem e da sua relação com a tecnologia. No caso, o quanto o potencial da ciência pode torná-la também uma espécie de religião, no momento em que deixamos de ver a tecnologia como um instrumento e passamos a vê-la como um objeto livre do nosso controle. Se você estender os paralelos corretos, a gente pode até ver isso como um comentário sobre a ideologia de livre mercado, ou a idolatria que muitas pessoas têm com grandes corporações. São figuras abstratas, formadas pela ação do homem, mas que muitos hoje veem como entidades maiores do que o ser humano em si.

Já ligada ao Porter nós temos a questão de procurar na tecnologia, no trabalho e numa figura quase humana um substituto para as interações humanas perdidas. Em grande medida, é um comentário que encontra ressonância com questões como a forma como dependemos crescentemente de relações virtuais, de dezenas de milhares de seguidores para substituir algumas poucas, mas significativas relações pessoais com pessoas de carne e osso.

Como eu disse, muitas dessas questões são muito mais pessoais e psicológicas do que as ideologias típicas da série Bioshock, que geralmente são aquelas que acabam regendo sociedades inteiras, e com as quais nós interagimos na nossa vida pública, mas não tanto na vida pessoal. Minerva’s Den é muito mais uma história sobre a mente humana e sobre processos psíquicos contemporâneos do que sobre a sociedade em que vivemos.

Isso, obviamente, não é um defeito, mas é algo fundamentalmente distinto do resto da série. Em grande medida, Minerva’s Den parece um cyberpunk disfarçado de outra série, talvez feito por desenvolvedores que preferiam estar fazendo outra coisa. E, considerando quão rápido a equipe abandonou a 2k e foi fundar um estúdio próprio, eu não duvido que este seja o caso.

Com isso, Minerva’s Den é um jogo com excelentes questões. Alguém até poderia dizer que ele é o que mais se esforça para dizer algo para o jogador enquanto ser humano vivendo no século XXI. É claro que, olhando nos dias de hoje, eu diria que o primeiro Bioshock diz ainda muito sobre o nosso mundo de hoje e sobre as questões sociais que estamos enfrentando, e que talvez fossem até menos claras em 2007. Mas, enquanto as batalhas do primeiro Bioshock são travadas hoje na política e nas ruas, as batalhas de Minerva’s Den devem ser tratadas na sua intimidade, na sua consciência, com o isolamento que só uma cidade no fundo do oceano, circundada por peixes e baleias, poderia oferecer.

E era isso que eu queria dizer sobre Minerva’s Den. Para mim, é o adeus que Rapture realmente merecia. Até uma próxima análise!

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Let it die - Pensando sobre o jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje quero falar de Let it die, jogo desenvolvido pela Grasshopper Manufacture, e lançado para PS4 no final do 2016. Let it die é um jogo muito interessante para mim porque é o primeiro jogo free to play a que eu me dediquei e que eu cheguei a terminar. Além do mais, ele é muito associado na internet com a ideia de um jogo free to play feito da forma certa, sem necessariamente ter uma fórmula predatória de arrecadação de dinheiro. Esta é uma noção interessante para a gente discutir, porque você certamente consegue ver como o modelo de arrecadação determina o funcionamento do jogo em si.

Mas, vamos por partes. Let it die é um jogo de ação em terceira pessoa, em que você é um jogador de arcade jogando um jogo novo. É uma noção um pouco confusa de explicar, mas que aparece com clareza no game. Nesse jogo novo, você controla um personagem descartável que tem que chegar ao topo da chamada Torre de Barbs, uma espécie de montanha que surgiu dos escombros após um terremoto gigante no Japão.

Pela história do jogo, são 40 andares no total, embora hoje novos andares tenham sido adicionados. O objetivo de cada andar é chegar a uma escada que vai te levar ao andar seguinte no seu caminho até o topo. Entretanto, esse caminho nem sempre é óbvio, pois muitas rotas mais simples estão trancadas e você precisa fazer desvios com frequência.

Outro fator importantíssimo é você conseguir encontrar um elevador, que te permite viajar pelos andares pelos quais você já passou e, principalmente, voltar para a sua base, onde você pode se recuperar, fazer upgrades no personagem, comprar armas e buffs, e estocar seus itens. Em grande medida, o jogador só faz progresso real quando encontra um elevador e volta para a base.

Isso porque Let it die tem uma combinação de mecânicas que eu chamaria de uma versão roguelike de Dark Souls. Para quem não sabe, roguelike é um termo usado para jogos em que a morte faz o jogador perder tudo ou quase tudo, e ter que recomeçar do começo, e a sua trajetória geralmente envolve passar por um mundo gerado aleatoriamente, o que faz desse tipo de jogo uma experiência muito difícil e mais ou menos imprevisível.

Eu falo de uma combinação de roguelike e Dark Souls porque cada andar em Let it die é gerado aleatoriamente, a partir de uma combinação de salas pré-desenhadas. A ordem em que elas aparecem no cenário muda a cada vez e, conforme o jogador avança na escalada, o número de salas vai ficando cada vez maior, o que torna as fases cada vez mais labirínticas.

Cada andar é cheio de inimigos para o jogador vencer. Eles podem ser robôs diversos; inimigos humanos com armas semelhantes às suas, mas excessivamente agressivos; e haters, que são versões de jogadores mortos naquele andar, que têm armas mais fortes e um comportamento um pouco mais inteligente que os inimigos normais. Como em Dark Souls, cada vez que você sai do cenário, seja voltando para a base, seja vindo de um outro andar, os inimigos reaparecem e você precisa vencê-los novamente. Ou seja, o andar essencialmente reseta.

Por isso eu disse que progresso só é feito realmente ao alcançar um elevador, porque, se você ativa o elevador de um andar, você pode ir direto para ele depois, em vez de ter que passar por todos os outros anteriores.

Assim, a experiência de Let it die é, essencialmente, uma batalha de resistência, para vencer os inimigos de um andar e ir avançando até chegar a outro andar com um elevador. No começo, isso quer dizer andar por alguns minutos; conforme se vai avançando, significa passar por dezenas de inimigos e até ficar mais de uma hora até chegar a outro elevador, especialmente se o gerador aleatório de andares colocar você muito longe da escada para o próximo andar, ou se você fizer escolhas ruins de rota.

Essa ideia da resistência é absolutamente essencial em Let it die e molda todas as mecânicas, de forma que o jogador sempre se sinta acuado e no limite. Isso é obtido por diversas ferramentas. A primeira, como eu já falei, é o level design labiríntico. A segunda é a quantidade enorme de dano que você causa e recebe dos inimigos. Aliás, este é um dos motivos pelos quais eu mencionei Dark Souls.

Os inimigos têm um padrão de inteligência voltado para o ataque desenfreado e, considerando que cada ataque costuma tirar muita vida, é preciso ir com muito cuidado, chamar a atenção de um inimigo por vez e bolar estratégias específicas para a arma e a armadura que o inimigo estiver usando. Considerando que a inteligência artificial não muda, eu não diria que cada batalha é desafiadora, mas certamente deixar de prestar atenção nelas pode te fazer cometer um erro, e aí as consequências são extremamente severas. Mesmo andando por andares já superados e com um personagem em bom nível, eu já passei por momentos em que um ou dois combos podem significar morte certa para o meu personagem.

A terceira ferramenta para passar a ideia de resistência é a mecânica de durabilidade das armas. Let it die tem diversas armas, e você usa as mesmas que os seus inimigos. Quando eles morrem, há uma chance de eles deixarem armadura ou armas que você pode equipar e usar. Mas, elas duram pouquíssimos ataques. Armas feitas na sua base, caso você encontre o esquema para fazê-las, duram mais, mas não o suficiente para você se acomodar. Portanto, é esperado que você use diversas armas e saiba improvisar com aquilo que os inimigos mortos deixam para você.

Há momentos nos andares mais altos em que você precisa subir até quatro andares direto, e cada andar é enorme, pode haver subchefes no meio do caminho, e você só vai conseguir usar as armas que quiser se lotar seu inventário com armas antes de sair da sua base, o que é altamente imprático, porque você também vai precisar de armaduras, itens de recuperação de vida e buffs, que no jogo são cogumelos que você come. Assim, é necessário que você se adapte ao que encontra na fase, o que também demanda que você treine antes, porque, quanto mais você as usa, mais fortes elas ficam.

Assim, Let it die é um jogo extremamente estressante, mas também recompensador. Cada luta é cheia de adrenalina, usar um monte de armas diferentes dá uma ideia de versatilidade bem legal, com projéteis, armas de fogo, espadas, e até umas armas malucas e mágicas. Há também um limite de estamina que o jogador possui, então não dá para tratar o combate como um hack and slash, porque você vai ficar cansado, o inimigo vai te dar um combo e talvez você não saia vivo. É um jogo de alto risco e alta recompensa e isso é muito viciante.

Tem um dito que eu não sei onde eu ouvi, mas que diz que o traficante sempre dá a melhor droga nas primeiras vezes em que o cliente aparece, porque assim ele se vicia mais rápido; depois, quando ele já está viciado, ele vende a de pior qualidade, porque não faz diferença, já que ele vai aceitar qualquer coisa. Pode ser uma metáfora meio extrema, mas Let it die funciona de um modo muito semelhante.

Muita dessa dinâmica estressante e frenética que eu descrevi vale para os dez primeiros andares do jogo, até você enfrentar o primeiro chefe; aliás, há um chefe a cada dez andares e, no geral, eles são versões um pouco mais complicadas dos subchefes que estão espalhados nos andares da torre, geralmente a cada três andares, mas isso não é regra.

Até o andar 10, os inimigos usam armas no mesmo nível que o seu personagem, com armaduras semelhantes, e causam um dano semelhante ao seu, talvez um pouco menor até. O seu personagem pode evoluir, mas há um limite bem claro, e os upgrades não te colocam nunca numa situação de facilidade. Pode-se dizer, então, que há um cuidado excepcional com o balanceamento do jogo até este ponto, o que faz desses dez primeiros andares um espaço em que o fator realmente decisivo seja a habilidade do jogador.

Tudo muda daí por diante. Quer dizer, as mecânicas continuam exatamente iguais, e é por isso que, apesar dos pesares que eu vou citar, o gameplay de Let it die nunca é essencialmente desagradável, mas a experiência muda radicalmente ao você alcançar esse ponto de virada.

E tudo que foi preciso fazer foi destruir o balanceamento concebido até então. O fato é que Let it die desregula completamente cada detalhe do seu balanceamento para o jogador sofrer e, assim, investir seu dinheiro no jogo. Para entender isso, vamos voltar a cada detalhe do jogo.

A primeira coisa é a relação de dano entre o seu personagem e os inimigos. Assim que você entra no próximo conjunto de andares, você percebe que os inimigos ficaram muito mais fortes, mas você não ficou. Isso porque os personagens descartáveis do jogo são divididos em níveis, e o personagem que você usou até o andar 10 só é balanceado até o andar 10.

Você precisa de um personagem novo, que vai ter status mais avançado que o antigo, e pode passar mais níveis do que o primeiro personagem. A princípio, você obtém um personagem novo logo quando muda para a segunda dezena de andares, mas, conforme avança, vai sendo necessário passar por mais e mais andares com um personagem desbalanceado para o andar. Por exemplo, para alcançar o quarto nível de personagens, o jogador precisa chegar ao andar 25, porém o personagem de terceiro nível é balanceado até o andar 20.

Dependendo da arma, um inimigo dos andares de 20 a 25 pode matar seu personagem com um golpe só, independente da armadura, e você vai precisar de muitos mais ataques para vencê-lo, o que quer dizer que a sua arma vai se desgastar mais rápido. Some isso aos fatos de que os cenários são maiores e de que há mais inimigos a cada segmento do jogo e você tem a receita para o inferno.

O curioso é que, depois que você passa por isso e consegue o personagem de nível adequado, acaba ficando fácil demais, ou seja, não existe mais aquela curva de dificuldade que o jogo se esmerou em criar nos primeiros dez andares.

O mesmo vale para as armas: se antes o jogador e os inimigos usavam as mesmas armas e causavam um dano mais ou menos semelhante, isso deixa de valer nos andares superiores. As armas vão passando de nível junto com os inimigos, mas, para o jogador poder produzi-las, é necessário, primeiro, achar o esquema da arma e, segundo, achar uma série de itens para produzi-la. No começo do jogo, esses itens são simples e estão espalhados pelo cenário.

Conforme o jogo progride, você vai precisando de armas cada vez mais fortes, e isso implica itens cada vez mais raros, o que leva o jogador a se colocar em situações de extremo gasto de tempo, muitas vezes à mercê de uma chance mínima de o item ser obtido.

Com isso, a seguinte situação se desenha: seu personagem é fraco demais para o andar em que você se encontra, e suas armas são fracas e pouco resistentes. Você tem três saídas: ou você se arrisca e morre no meio do caminho; ou você faz uma série de tarefas cansativas para conseguir os itens para obter os upgrades necessários, o que ainda te deixa com risco de morrer, porque seu personagem é mais fraco do que os inimigos; ou você gasta dinheiro para conseguir praticamente tudo de que precisa.

E aí está onde eu queria chegar: você pode comprar conjuntos de itens para upgrades de um determinado tipo de arma, ou ouro para comprar itens e armas, ou então conseguir boosts para o seu personagem conseguir subir de nível e angariar recursos mais rápido, ou então simplesmente para reviver instantaneamente onde for morto.

Mas, na verdade, a saída de gastar dinheiro é apenas a mais óbvia. Ela está secretamente implicada nas outras duas: arriscar-se sem os itens certos é quase garantia de que você vai morrer. Se você morrer, você tem que usar um tipo de item extremamente raro, mas que também pode ser comprado com dinheiro real. Se você não quiser gastar e estiver sem esse item, o seu personagem vira um inimigo, você precisa ter um outro personagem, ir até o andar em que ele morreu e matá-lo; assim, ele volta para a sua base, mas todos os itens que ele levava se foram. Ou seja, é um cenário extremamente desvantajoso. Você ainda pode pagar em dinheiro do jogo para ele voltar para a base, mas, quanto mais você avança, maior é a quantia, e isso chega a níveis quase absurdos no final do jogo, o que, mais uma vez, torna a opção de gastar dinheiro real mais tentadora.

A segunda opção, de fazer uma série de atividades cansativas, faz você gastar muito tempo e te coloca num piloto automático que, em última instância, pode fazer você morrer, o que vai te levar a ter que usar aquela moeda rara ou então gastar dinheiro. Isso se não te colocar para enfrentar um chefe que, de repente, pode te pegar desprevenido e te matar. E lá vai mais dinheiro.

Talvez você seja melhor do que eu nesse jogo e esteja pensando que eu estou exagerando, que não é preciso morrer tanto assim, e nem gastar dinheiro. E eu considero isso uma possibilidade, claro. Mas o que você não vai poder negar é que o ritmo do jogo muda radicalmente depois dos dez primeiros andares, e especialmente depois do vigésimo. E essa mudança pode fazer os jogadores gastarem muito mais dinheiro do que o começo do jogo jamais faria, porque não é uma questão de curva de aprendizado, já que não há necessariamente novas mecânicas; é uma questão de desbalanceamento, e desbalanceamento intencional.

E este é o cerne da estrutura do jogo, focada na ideia das chamadas “baleias” de jogos free to play: a ideia não é ganhar dinheiro de imediato, mas fazer um investimento. Primeiro, você dá ao jogador todas as ferramentas, e oferece o melhor que as mecânicas do jogo conseguem render. Quando ele já está convencido de que essas mecânicas são agradáveis, a estrutura é lentamente desbalanceada, seja facilitando a derrota, seja travando o progresso, até o ponto em que o jogador não aguenta, e aí ou larga o jogo, ou gasta. E esse jogador que gasta talvez gaste o suficiente para compensar pelas despesas do jogador que desistiu ou que se esforça para nunca gastar nada.

O jogo oferece pequenos bônus e itens para você conseguir angariar ferramentas para sobreviver; você só precisa ter paciência e se contentar com o progresso andar a um ritmo bem lento. Mas o fato é que essa lentidão contrasta com o ritmo frenético e viciante que o jogo criou no começo, e ele se torna pior por mudar dessa forma.

Voltando à comparação com Dark Souls, é normal ficar preso num mesmo cenário por horas, com muitas tentativas fracassadas. Mas, nesse caso, enquanto você procura avançar, você está sempre tentando no mesmo lugar que você precisa vencer, e aprendendo a cada morte. As almas que você perde podem ser rapidamente repostas enfrentando os mesmos inimigos. Quando você vence, o sentimento de progresso é real, porque você nunca precisou sair daquela mesma situação, daquela mesma fase.

Em Let it die, se você não quiser gastar, você vai precisar circular por andares que não estão ligados ao seu progresso, vai ter que fazer missões que te rendam a moeda para reviver caso você morra, vai precisar juntar itens e ouro, e tudo isso são só meios para você progredir, e acaba ficando tedioso, o que é o contrário do que o jogo apresenta no começo, quando ele está em seu melhor.

O mais interessante para mim nessa situação toda não é nem o fato de que o jogo é essencialmente uma armadilha para quem se entedia fácil ou não tem tempo para gastar num jogo que progride tão lentamente. O mais fascinante é o fato de como o modo de arrecadação free to play mina a relação de confiança entre o desenvolvedor e o jogador.

Problemas de balanceamento num jogo não são exclusivos de jogos free to play. Muitos RPGs japoneses, por exemplo, têm trechos com taxas de encontros aleatórios extremamente altas, ou inimigos que certamente são fortes demais para o momento em que o jogo se encontra. Problemas de balanceamento são um defeito de design e isso pode acontecer em qualquer jogo.

Porém, Let it die ser um jogo free to play me faz culpar esse modelo toda vez que eu me defronto com um problema que pode ser atribuído a ele. Assim, o benefício da dúvida que o jogador dá ao desenvolvedor é muito menor, um vê o outro como um aproveitador e cria aquela ponta de desconfiança na análise de cada elemento do jogo. Quando uma pessoa experimenta um jogo, ela aceita aquilo que o desenvolvedor oferece e obedece as regras do jogo, porque está implícita uma relação de confiança de que aquilo vai levar a pessoa se divertir, a aprender, a refletir.

Ou seja, a ideia é que desenvolvedor e jogador se unem no intuito de oferecer esses sentimentos ao jogador. Assim, está implícito que cada elemento deve (ou deveria) funcionar nesse sentido. Um jogo free to play (como, em grande medida, os jogos de arcade de antigamente) desperta no jogador a desconfiança de que os elementos do jogo podem não estar lá para sua diversão, mas talvez também para a sua frustração, a qual vai gerar dinheiro ao desenvolvedor.

É um abalo numa relação muito antiga, e que talvez fosse o caso de ser tratada com cuidado, para que essa relação não mude para sempre. É algo que certamente afetou a minha relação com esse jogo e talvez tenha me feito levar mais a mal os seus defeitos do que eu normalmente teria feito se eu tivesse pagado para jogá-lo.

Esse tipo de estratégia não é novo em termos de arte. Desde o século XIX, nós temos o modelo do folhetim, hoje reproduzido nas novelas, nos seriados, ou nos mangás, em que apenas um pedaço da história é contado por vez, tentando fazer o público consumir o próximo volume e ficar preso à história contada, que acabava durando muito mais que o necessário. Todo mundo que ligou a TV para acompanhar algo e se deparou com um episódio que não avançava em nada a história conhece esse modelo.

Notoriamente, esse tipo de obra sofreu por essa tentativa de arrecadar mais, porque muitas se tornaram inchadas ou cheias de enrolação, o que só azedava a relação do público com a obra, e prejudicou seu valor como arte. Eu vejo esse mesmo problema claramente em Let it die, e espero que outros jogos não repitam os mesmos problemas, porque, se repetirem, eles arriscam a sua qualidade em busca de dinheiro.

E era isso que eu queria dizer sobre Let it die. Até a próxima análise!