sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Let it die - Pensando sobre o jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje quero falar de Let it die, jogo desenvolvido pela Grasshopper Manufacture, e lançado para PS4 no final do 2016. Let it die é um jogo muito interessante para mim porque é o primeiro jogo free to play a que eu me dediquei e que eu cheguei a terminar. Além do mais, ele é muito associado na internet com a ideia de um jogo free to play feito da forma certa, sem necessariamente ter uma fórmula predatória de arrecadação de dinheiro. Esta é uma noção interessante para a gente discutir, porque você certamente consegue ver como o modelo de arrecadação determina o funcionamento do jogo em si.

Mas, vamos por partes. Let it die é um jogo de ação em terceira pessoa, em que você é um jogador de arcade jogando um jogo novo. É uma noção um pouco confusa de explicar, mas que aparece com clareza no game. Nesse jogo novo, você controla um personagem descartável que tem que chegar ao topo da chamada Torre de Barbs, uma espécie de montanha que surgiu dos escombros após um terremoto gigante no Japão.

Pela história do jogo, são 40 andares no total, embora hoje novos andares tenham sido adicionados. O objetivo de cada andar é chegar a uma escada que vai te levar ao andar seguinte no seu caminho até o topo. Entretanto, esse caminho nem sempre é óbvio, pois muitas rotas mais simples estão trancadas e você precisa fazer desvios com frequência.

Outro fator importantíssimo é você conseguir encontrar um elevador, que te permite viajar pelos andares pelos quais você já passou e, principalmente, voltar para a sua base, onde você pode se recuperar, fazer upgrades no personagem, comprar armas e buffs, e estocar seus itens. Em grande medida, o jogador só faz progresso real quando encontra um elevador e volta para a base.

Isso porque Let it die tem uma combinação de mecânicas que eu chamaria de uma versão roguelike de Dark Souls. Para quem não sabe, roguelike é um termo usado para jogos em que a morte faz o jogador perder tudo ou quase tudo, e ter que recomeçar do começo, e a sua trajetória geralmente envolve passar por um mundo gerado aleatoriamente, o que faz desse tipo de jogo uma experiência muito difícil e mais ou menos imprevisível.

Eu falo de uma combinação de roguelike e Dark Souls porque cada andar em Let it die é gerado aleatoriamente, a partir de uma combinação de salas pré-desenhadas. A ordem em que elas aparecem no cenário muda a cada vez e, conforme o jogador avança na escalada, o número de salas vai ficando cada vez maior, o que torna as fases cada vez mais labirínticas.

Cada andar é cheio de inimigos para o jogador vencer. Eles podem ser robôs diversos; inimigos humanos com armas semelhantes às suas, mas excessivamente agressivos; e haters, que são versões de jogadores mortos naquele andar, que têm armas mais fortes e um comportamento um pouco mais inteligente que os inimigos normais. Como em Dark Souls, cada vez que você sai do cenário, seja voltando para a base, seja vindo de um outro andar, os inimigos reaparecem e você precisa vencê-los novamente. Ou seja, o andar essencialmente reseta.

Por isso eu disse que progresso só é feito realmente ao alcançar um elevador, porque, se você ativa o elevador de um andar, você pode ir direto para ele depois, em vez de ter que passar por todos os outros anteriores.

Assim, a experiência de Let it die é, essencialmente, uma batalha de resistência, para vencer os inimigos de um andar e ir avançando até chegar a outro andar com um elevador. No começo, isso quer dizer andar por alguns minutos; conforme se vai avançando, significa passar por dezenas de inimigos e até ficar mais de uma hora até chegar a outro elevador, especialmente se o gerador aleatório de andares colocar você muito longe da escada para o próximo andar, ou se você fizer escolhas ruins de rota.

Essa ideia da resistência é absolutamente essencial em Let it die e molda todas as mecânicas, de forma que o jogador sempre se sinta acuado e no limite. Isso é obtido por diversas ferramentas. A primeira, como eu já falei, é o level design labiríntico. A segunda é a quantidade enorme de dano que você causa e recebe dos inimigos. Aliás, este é um dos motivos pelos quais eu mencionei Dark Souls.

Os inimigos têm um padrão de inteligência voltado para o ataque desenfreado e, considerando que cada ataque costuma tirar muita vida, é preciso ir com muito cuidado, chamar a atenção de um inimigo por vez e bolar estratégias específicas para a arma e a armadura que o inimigo estiver usando. Considerando que a inteligência artificial não muda, eu não diria que cada batalha é desafiadora, mas certamente deixar de prestar atenção nelas pode te fazer cometer um erro, e aí as consequências são extremamente severas. Mesmo andando por andares já superados e com um personagem em bom nível, eu já passei por momentos em que um ou dois combos podem significar morte certa para o meu personagem.

A terceira ferramenta para passar a ideia de resistência é a mecânica de durabilidade das armas. Let it die tem diversas armas, e você usa as mesmas que os seus inimigos. Quando eles morrem, há uma chance de eles deixarem armadura ou armas que você pode equipar e usar. Mas, elas duram pouquíssimos ataques. Armas feitas na sua base, caso você encontre o esquema para fazê-las, duram mais, mas não o suficiente para você se acomodar. Portanto, é esperado que você use diversas armas e saiba improvisar com aquilo que os inimigos mortos deixam para você.

Há momentos nos andares mais altos em que você precisa subir até quatro andares direto, e cada andar é enorme, pode haver subchefes no meio do caminho, e você só vai conseguir usar as armas que quiser se lotar seu inventário com armas antes de sair da sua base, o que é altamente imprático, porque você também vai precisar de armaduras, itens de recuperação de vida e buffs, que no jogo são cogumelos que você come. Assim, é necessário que você se adapte ao que encontra na fase, o que também demanda que você treine antes, porque, quanto mais você as usa, mais fortes elas ficam.

Assim, Let it die é um jogo extremamente estressante, mas também recompensador. Cada luta é cheia de adrenalina, usar um monte de armas diferentes dá uma ideia de versatilidade bem legal, com projéteis, armas de fogo, espadas, e até umas armas malucas e mágicas. Há também um limite de estamina que o jogador possui, então não dá para tratar o combate como um hack and slash, porque você vai ficar cansado, o inimigo vai te dar um combo e talvez você não saia vivo. É um jogo de alto risco e alta recompensa e isso é muito viciante.

Tem um dito que eu não sei onde eu ouvi, mas que diz que o traficante sempre dá a melhor droga nas primeiras vezes em que o cliente aparece, porque assim ele se vicia mais rápido; depois, quando ele já está viciado, ele vende a de pior qualidade, porque não faz diferença, já que ele vai aceitar qualquer coisa. Pode ser uma metáfora meio extrema, mas Let it die funciona de um modo muito semelhante.

Muita dessa dinâmica estressante e frenética que eu descrevi vale para os dez primeiros andares do jogo, até você enfrentar o primeiro chefe; aliás, há um chefe a cada dez andares e, no geral, eles são versões um pouco mais complicadas dos subchefes que estão espalhados nos andares da torre, geralmente a cada três andares, mas isso não é regra.

Até o andar 10, os inimigos usam armas no mesmo nível que o seu personagem, com armaduras semelhantes, e causam um dano semelhante ao seu, talvez um pouco menor até. O seu personagem pode evoluir, mas há um limite bem claro, e os upgrades não te colocam nunca numa situação de facilidade. Pode-se dizer, então, que há um cuidado excepcional com o balanceamento do jogo até este ponto, o que faz desses dez primeiros andares um espaço em que o fator realmente decisivo seja a habilidade do jogador.

Tudo muda daí por diante. Quer dizer, as mecânicas continuam exatamente iguais, e é por isso que, apesar dos pesares que eu vou citar, o gameplay de Let it die nunca é essencialmente desagradável, mas a experiência muda radicalmente ao você alcançar esse ponto de virada.

E tudo que foi preciso fazer foi destruir o balanceamento concebido até então. O fato é que Let it die desregula completamente cada detalhe do seu balanceamento para o jogador sofrer e, assim, investir seu dinheiro no jogo. Para entender isso, vamos voltar a cada detalhe do jogo.

A primeira coisa é a relação de dano entre o seu personagem e os inimigos. Assim que você entra no próximo conjunto de andares, você percebe que os inimigos ficaram muito mais fortes, mas você não ficou. Isso porque os personagens descartáveis do jogo são divididos em níveis, e o personagem que você usou até o andar 10 só é balanceado até o andar 10.

Você precisa de um personagem novo, que vai ter status mais avançado que o antigo, e pode passar mais níveis do que o primeiro personagem. A princípio, você obtém um personagem novo logo quando muda para a segunda dezena de andares, mas, conforme avança, vai sendo necessário passar por mais e mais andares com um personagem desbalanceado para o andar. Por exemplo, para alcançar o quarto nível de personagens, o jogador precisa chegar ao andar 25, porém o personagem de terceiro nível é balanceado até o andar 20.

Dependendo da arma, um inimigo dos andares de 20 a 25 pode matar seu personagem com um golpe só, independente da armadura, e você vai precisar de muitos mais ataques para vencê-lo, o que quer dizer que a sua arma vai se desgastar mais rápido. Some isso aos fatos de que os cenários são maiores e de que há mais inimigos a cada segmento do jogo e você tem a receita para o inferno.

O curioso é que, depois que você passa por isso e consegue o personagem de nível adequado, acaba ficando fácil demais, ou seja, não existe mais aquela curva de dificuldade que o jogo se esmerou em criar nos primeiros dez andares.

O mesmo vale para as armas: se antes o jogador e os inimigos usavam as mesmas armas e causavam um dano mais ou menos semelhante, isso deixa de valer nos andares superiores. As armas vão passando de nível junto com os inimigos, mas, para o jogador poder produzi-las, é necessário, primeiro, achar o esquema da arma e, segundo, achar uma série de itens para produzi-la. No começo do jogo, esses itens são simples e estão espalhados pelo cenário.

Conforme o jogo progride, você vai precisando de armas cada vez mais fortes, e isso implica itens cada vez mais raros, o que leva o jogador a se colocar em situações de extremo gasto de tempo, muitas vezes à mercê de uma chance mínima de o item ser obtido.

Com isso, a seguinte situação se desenha: seu personagem é fraco demais para o andar em que você se encontra, e suas armas são fracas e pouco resistentes. Você tem três saídas: ou você se arrisca e morre no meio do caminho; ou você faz uma série de tarefas cansativas para conseguir os itens para obter os upgrades necessários, o que ainda te deixa com risco de morrer, porque seu personagem é mais fraco do que os inimigos; ou você gasta dinheiro para conseguir praticamente tudo de que precisa.

E aí está onde eu queria chegar: você pode comprar conjuntos de itens para upgrades de um determinado tipo de arma, ou ouro para comprar itens e armas, ou então conseguir boosts para o seu personagem conseguir subir de nível e angariar recursos mais rápido, ou então simplesmente para reviver instantaneamente onde for morto.

Mas, na verdade, a saída de gastar dinheiro é apenas a mais óbvia. Ela está secretamente implicada nas outras duas: arriscar-se sem os itens certos é quase garantia de que você vai morrer. Se você morrer, você tem que usar um tipo de item extremamente raro, mas que também pode ser comprado com dinheiro real. Se você não quiser gastar e estiver sem esse item, o seu personagem vira um inimigo, você precisa ter um outro personagem, ir até o andar em que ele morreu e matá-lo; assim, ele volta para a sua base, mas todos os itens que ele levava se foram. Ou seja, é um cenário extremamente desvantajoso. Você ainda pode pagar em dinheiro do jogo para ele voltar para a base, mas, quanto mais você avança, maior é a quantia, e isso chega a níveis quase absurdos no final do jogo, o que, mais uma vez, torna a opção de gastar dinheiro real mais tentadora.

A segunda opção, de fazer uma série de atividades cansativas, faz você gastar muito tempo e te coloca num piloto automático que, em última instância, pode fazer você morrer, o que vai te levar a ter que usar aquela moeda rara ou então gastar dinheiro. Isso se não te colocar para enfrentar um chefe que, de repente, pode te pegar desprevenido e te matar. E lá vai mais dinheiro.

Talvez você seja melhor do que eu nesse jogo e esteja pensando que eu estou exagerando, que não é preciso morrer tanto assim, e nem gastar dinheiro. E eu considero isso uma possibilidade, claro. Mas o que você não vai poder negar é que o ritmo do jogo muda radicalmente depois dos dez primeiros andares, e especialmente depois do vigésimo. E essa mudança pode fazer os jogadores gastarem muito mais dinheiro do que o começo do jogo jamais faria, porque não é uma questão de curva de aprendizado, já que não há necessariamente novas mecânicas; é uma questão de desbalanceamento, e desbalanceamento intencional.

E este é o cerne da estrutura do jogo, focada na ideia das chamadas “baleias” de jogos free to play: a ideia não é ganhar dinheiro de imediato, mas fazer um investimento. Primeiro, você dá ao jogador todas as ferramentas, e oferece o melhor que as mecânicas do jogo conseguem render. Quando ele já está convencido de que essas mecânicas são agradáveis, a estrutura é lentamente desbalanceada, seja facilitando a derrota, seja travando o progresso, até o ponto em que o jogador não aguenta, e aí ou larga o jogo, ou gasta. E esse jogador que gasta talvez gaste o suficiente para compensar pelas despesas do jogador que desistiu ou que se esforça para nunca gastar nada.

O jogo oferece pequenos bônus e itens para você conseguir angariar ferramentas para sobreviver; você só precisa ter paciência e se contentar com o progresso andar a um ritmo bem lento. Mas o fato é que essa lentidão contrasta com o ritmo frenético e viciante que o jogo criou no começo, e ele se torna pior por mudar dessa forma.

Voltando à comparação com Dark Souls, é normal ficar preso num mesmo cenário por horas, com muitas tentativas fracassadas. Mas, nesse caso, enquanto você procura avançar, você está sempre tentando no mesmo lugar que você precisa vencer, e aprendendo a cada morte. As almas que você perde podem ser rapidamente repostas enfrentando os mesmos inimigos. Quando você vence, o sentimento de progresso é real, porque você nunca precisou sair daquela mesma situação, daquela mesma fase.

Em Let it die, se você não quiser gastar, você vai precisar circular por andares que não estão ligados ao seu progresso, vai ter que fazer missões que te rendam a moeda para reviver caso você morra, vai precisar juntar itens e ouro, e tudo isso são só meios para você progredir, e acaba ficando tedioso, o que é o contrário do que o jogo apresenta no começo, quando ele está em seu melhor.

O mais interessante para mim nessa situação toda não é nem o fato de que o jogo é essencialmente uma armadilha para quem se entedia fácil ou não tem tempo para gastar num jogo que progride tão lentamente. O mais fascinante é o fato de como o modo de arrecadação free to play mina a relação de confiança entre o desenvolvedor e o jogador.

Problemas de balanceamento num jogo não são exclusivos de jogos free to play. Muitos RPGs japoneses, por exemplo, têm trechos com taxas de encontros aleatórios extremamente altas, ou inimigos que certamente são fortes demais para o momento em que o jogo se encontra. Problemas de balanceamento são um defeito de design e isso pode acontecer em qualquer jogo.

Porém, Let it die ser um jogo free to play me faz culpar esse modelo toda vez que eu me defronto com um problema que pode ser atribuído a ele. Assim, o benefício da dúvida que o jogador dá ao desenvolvedor é muito menor, um vê o outro como um aproveitador e cria aquela ponta de desconfiança na análise de cada elemento do jogo. Quando uma pessoa experimenta um jogo, ela aceita aquilo que o desenvolvedor oferece e obedece as regras do jogo, porque está implícita uma relação de confiança de que aquilo vai levar a pessoa se divertir, a aprender, a refletir.

Ou seja, a ideia é que desenvolvedor e jogador se unem no intuito de oferecer esses sentimentos ao jogador. Assim, está implícito que cada elemento deve (ou deveria) funcionar nesse sentido. Um jogo free to play (como, em grande medida, os jogos de arcade de antigamente) desperta no jogador a desconfiança de que os elementos do jogo podem não estar lá para sua diversão, mas talvez também para a sua frustração, a qual vai gerar dinheiro ao desenvolvedor.

É um abalo numa relação muito antiga, e que talvez fosse o caso de ser tratada com cuidado, para que essa relação não mude para sempre. É algo que certamente afetou a minha relação com esse jogo e talvez tenha me feito levar mais a mal os seus defeitos do que eu normalmente teria feito se eu tivesse pagado para jogá-lo.

Esse tipo de estratégia não é novo em termos de arte. Desde o século XIX, nós temos o modelo do folhetim, hoje reproduzido nas novelas, nos seriados, ou nos mangás, em que apenas um pedaço da história é contado por vez, tentando fazer o público consumir o próximo volume e ficar preso à história contada, que acabava durando muito mais que o necessário. Todo mundo que ligou a TV para acompanhar algo e se deparou com um episódio que não avançava em nada a história conhece esse modelo.

Notoriamente, esse tipo de obra sofreu por essa tentativa de arrecadar mais, porque muitas se tornaram inchadas ou cheias de enrolação, o que só azedava a relação do público com a obra, e prejudicou seu valor como arte. Eu vejo esse mesmo problema claramente em Let it die, e espero que outros jogos não repitam os mesmos problemas, porque, se repetirem, eles arriscam a sua qualidade em busca de dinheiro.

E era isso que eu queria dizer sobre Let it die. Até a próxima análise!

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