Olá!
Eu sou o Asa e hoje eu vou falar mais uma vez sobre teoria, agora tratando de
um tema que retorna aos meus pensamentos de tempos em tempos, e que finalmente
eu resolvi discutir com vocês. O tema de hoje é a noção de que gameplay é a coisa mais importante num
jogo.
Antes
de mais nada, a minha ideia aqui é justamente desmistificar essa noção o máximo
possível, porque, para mim, o mais importante num jogo é a experiência que ele
entrega, e aí o gameplay é um fator
decisivo, sim, mas ele apenas soma esforços com outros fatores, igualmente
decisivos, como o som, a estética visual e a história.
É
preciso dizer que eu não estou querendo rebater ninguém em específico com o que
eu estou dizendo. Aliás, você, uma pessoa que conhece e procura discussões de
jogos, a ponto de achar este blog onde eu posto os meus textos, já sabe que
este é um argumento que permeia muitas discussões, debates, comparações e
teorias sobre jogos.
E,
quando a gente ouve ou lê este argumento, parece algo realmente óbvio. Afinal,
como todo defensor dessa ideia sempre afirma, o que diferencia os jogos das
outras mídias é justamente a possibilidade de interagir, de conseguir, de
alguma forma, ver aquela estrutura reagir à nossa presença. Nós a afetamos, ela
nos afeta.
E
realmente parece não haver discussão contra isso. O que diferencia os jogos das
outras mídias, num primeiro momento, é que eles são interativos. Graças a isso
nós obtemos uma série de efeitos que marcam para sempre o jogador. Mas, ao
mesmo tempo, a gente vai ter, em termos de proximidade com essa noção de
interação, por exemplo, os espetáculos teatrais que procuram integrar o público
ao espetáculo, tentando fazer com que ele participe e faça da peça algo
totalmente diferente do que ela foi no dia anterior.
A verdade é que a
interação é uma ferramenta estética adotada amplamente há muitas décadas e que
já é teorizada há séculos. Além do teatro, que é a outra arte em que essa
ferramenta é mais amplamente adotada, a gente também tem as artes plásticas,
com as instalações, que procuram fazer com que o visitante interaja de diversas
formas com os objetos montados. A gente também tem, ainda, artistas
performáticos, que ficam à disposição do público para interagir com eles de uma
forma significativa, procurando uma experiência de troca com o artista em carne
e osso.
A gente tem também
livros que apontam diferentes caminhos para o leitor percorrer: ele pode ler na
ordem tradicional, ou ele pode pular capítulos, ler numa ordem de idas e
vindas, e a obra prevê isso de uma forma consciente. Assim, não é difícil ver
quantas artes já trouxeram a interatividade para si mesmas antes de jogos se
tornarem uma mídia consciente dos seus projetos e potencialidades.
Sendo assim, a gente
precisa repensar aquele argumento tão óbvio que eu apresentei no começo da
nossa conversa: o que diferencia os jogos não é o fato de que nós podemos
interagir com eles. Na verdade, o que diferencia os jogos é que todos eles têm
interações de alguma forma. Ou seja, um jogo tem como interação a sua forma de
expressão mais básica.
Transpondo isso para as
outras artes, faz sentido. Um jogo como o primeiro Resident Evil faz uso extensivo de câmeras fixas para aumentar a
tensão, mas isso não tirou o direito do cinema de falar que a sua maior marca é
o uso de ângulos com a câmera. O cinema, por sua vez, pode usar diálogos o
quanto quiser, mas os mesmos diálogos continuam sendo a base do teatro. A
narrativa continua sendo um dos eixos fundamentais da literatura, mesmo que
tanto o teatro, quanto o cinema e os jogos incorporem esse aspecto.
Com isso, acho que a
gente chegou num bom lugar na nossa discussão teórica e, como bons cartesianos,
nós podemos tentar construir um conhecimento a partir de um postulado
fundamental. E esse postulado é que jogos são interativos. Todos eles. Eles
reagem a decisões que nós tomamos. O que varia é o tipo e a dimensão do peso
das decisões que eles nos permitem.
Alguns jogos vão nos
permitir andar livremente, interagir com quase todos os objetos que aparecem;
outros vão nos permitir só andar por um pequeno espaço; outros, ainda, vão nos
dar pontos de escolha em apenas dois momentos durante toda a experiência.
Entretanto, todos eles vão nos dar algum momento para fazer a nossa parte, para
nós nos inserirmos na experiência – muito embora, como nós já sabemos, a imensa
maioria das nossas interações já sejam esperadas e devidamente programadas
pelos game designers; então, quase
sempre, nós temos mais a ilusão da liberdade do que uma utópica liberdade
total.
Sendo assim, a
interação é a pedra fundamental de um jogo, aquela parte que nunca vai faltar.
Entretanto, para a gente chegar naquele argumento que eu quero discutir, a
gente precisa dar um salto meio grande e, na minha opinião, errôneo. Como a
gente passa da afirmação de que a interação é a parte onipresente de um jogo
para a afirmação de que a interação é a parte mais importante de um jogo?
Em grande medida, esse
movimento vem justamente dessa ideia equivocada de que a interação é o que faz
jogos diferentes, mas, mesmo que a gente admitisse essa afirmação como verdade,
ignorando tudo que eu falei até agora, focar tão desesperadamente no seu diferencial
não me parece algo muito produtivo; pelo contrário: ao procurar o que nos
define, a gente pode acabar simplesmente nos limitando sem necessidade.
Essa conversa sempre me
lembra uma história lá da minha área de estudos original, a literatura. Na virada
do século XIX para o século XX, tanto a literatura quanto a pintura sofreram
uma crise existencial sem precedentes. E isso por causa de duas novas formas de
arte que, supostamente, ameaçavam as mais tradicionais. No caso da pintura, a
grande inimiga era a fotografia; afinal, nenhuma imagem pintada por uma pessoa
pode ser realista a ponto de competir com uma foto. Já no caso da literatura, o
adversário era o cinema, que poderia vencer qualquer esforço de realismo.
Afinal, nenhuma descrição é tão vívida quanto a imagem do lugar ou a
transmissão de uma cena.
Graças a isso e a
alguns outros fatores que não vêm ao caso aqui, nós tivemos grandes esforços
para procurar na pintura e na literatura algo que só elas poderiam fazer, ou
seja, aquilo que a fotografia e o cinema não poderiam. Com isso, muitas das
tendências de vanguarda da pintura e da literatura nasceram, e elas procuraram
criar formas de expressão diferentes, e conseguiram. A ideia era transmitir
muito mais as coisas a partir da mente, utilizando processos que não tinham
mais a ver com os olhos, e sim com a mente, com o emocional, etc.
Mas, ao mesmo tempo,
outras tendências surgiram, e eram aquelas que procuraram incorporar as
técnicas de cinema ao texto, como a técnica do rápido movimento, ou a da
montagem, que eu discuti no meu vídeo sobre Braid.
E essas técnicas foram devidamente incorporadas à literatura, e hoje certas
obras dessa tendência são consideradas tão clássicas quanto as mais cerebrais,
as que buscavam retrair a arte por conta das inovações, em vez de expandi-la.
Enfim, vamos voltar ao
que nos interessa aqui, os jogos. A ideia de procurar um elemento fundamental
dos jogos, não para entendê-los melhor, mas sim para prescrever o que vem
adiante, necessariamente resulta em limitações. E limitações são tudo de que os
jogos não precisam.
Os jogos são,
provavelmente, a mídia mais ambiciosa que existe, porque hoje ela incorporou
todos os outros elementos definidores das outras artes: jogos têm trabalho com
o texto; têm grandes estéticas visuais, sejam realistas, sejam fantasiosas;
contam com grandes trilhas sonoras, dos mais diversos estilos; diálogos são
presentes em sua imensa maioria; o trabalho com a câmera é muito importante na
construção da sua narrativa; e, além disso tudo, jogos são interativos.
Isso, logicamente,
implica muitos riscos. Quanto mais fatores uma obra de arte incorpora, mais
difícil é manter uma unidade e, portanto, mais complicado é produzir um efeito
poderoso, sem elementos que distraiam da experiência que se pretende
estabelecer. Não à toa, muitos dos jogos que eu considero mais poderosos são
aqueles que contam com o maior foco possível, como Shadow of the Colossus, ICO,
Journey, Song of Saya, Hotline Miami,
Papers, please, Transistor, Her Story, Super Mario 64 e outros.
É claro que grandes
produções podem alcançar excelentes resultados nesse sentido, mas o trabalho de
um batalhão sempre vai ser mais difícil de controlar, e as responsabilidades de
oferecer resultados lucrativos nessa indústria sempre vai levar a pressões que
se comportam muito mais como um detrimento para o produto final do que como uma
ferramenta para estabelecer foco. Mas, mesmo assim, nós temos Ocarina of Time, Bloodborne, Bioshock, Fallout e vários outros.
Eu acredito que é dessa
dificuldade de criar uma experiência coesa que vem um dos pontos centrais para
o afloramento dessa questão de gameplay
ser o principal elemento: afinal, com a dificuldade em lidar com tantos
aspectos diferentes numa mesma obra, com orçamentos e riscos gigantes, é bem
comum ver franquias e estúdios de renome escolhendo novas estratégias, que
acabam não sendo tão populares com os jogadores tradicionais, e esses mesmos
jogadores acabam associando essas mudanças a uma suposta falta de foco no gameplay.
Vale dizer, claro, que
essa interpretação de um abandono do gameplay
acaba sendo muito fácil para a nossa comunidade fazer, porque, na verdade, esse
fenômeno de os jogos incorporarem as mais diversas formas de arte só se
consolidou recentemente, apenas conforme a tecnologia permitiu esse processo,
que já dura décadas. Quem estava lá no começo, quem se considera mais entendido
e apaixonado por esta mídia, muitas vezes começou num tempo em que as outras
possibilidades não existiam, quando quase não havia texto, quando as cutscenes de Ninja Gaiden eram revolucionárias.
Com isso, o pensamento
de que os outros elementos estão roubando foco do gameplay acaba sendo lógico; afinal, jogos já eram bons antes de
terem diálogo, antes de terem dublagem, antes de terem trilha sonora
orquestrada, etc. A verdade, entretanto, é que experiências diferentes tendem a
adotar focos diferentes e, por várias razões, a indústria se moveu um pouco
para longe da ideia do gameplay
complexo, intensivo e desafiador, embora ainda haja jogos que mantenham esse
foco.
Determinadas escolhas
de design e o desejo de ter gráficos
melhores nos afastaram das frame rates
mais altas, mas muitos jogos desafiadores, que exigem uma resposta rápida e
precisa, continuam adotando os padrões de qualidade que existem há décadas para
esses gêneros. A questão, como sempre, é saber achar o jogo certo para o
jogador certo.
Porém, uma mudança de
foco pode parecer um abandono quando a indústria era antes voltada para você,
como a gente já discutiu em outro texto. Por isso, jogos como Gone Home, sem nenhum tipo de desafio ou
complexidade no gameplay, acabaram
recebendo tantos ataques desnecessários de um público que não tinha interesse
em jogar um jogo assim, mas tinha raiva por tal jogo existir.
A questão, entretanto,
é que Gone Home não tinha um gameplay ruim, o que, para mim, quer
dizer que Gone Home não tinha um gameplay que lutava contra a experiência
que ele queria construir. Pelo contrário: o gameplay
de Gone Home era uma ferramenta
perfeita para explorar o cenário e viver a experiência que o jogo propunha.
Agora, pensando neste
mesmo gênero, o gameplay de Everybody’s gone to the Rapture falha,
porque a própria mecânica de exploração apresenta problemas – no caso, a
velocidade, que trabalha contra o impulso de explorar o cenário. Ou seja, antes
de tudo, eu acredito que é necessário a gente pensar no que o jogo pensa em
atingir e ver se cada parte que compõe o jogo alcançou o efeito necessário para
isso.
Vamos para mais um
exemplo, agora Hotline Miami: no
jogo, você tem uma mecânica de movimentação e combate que são absolutamente
frenéticos. Que são punitivos, mas rápidos, intoxicantes e dão muita
satisfação. Quando a gente pensa no visual, a gente nota uma estética cheia de
cores que estimulam os nossos olhos e o nosso cérebro, do mesmo jeito
intoxicante com que o gameplay
trabalha.
Passando ao som, a
gente tem uma trilha sonora que praticamente desliga o nosso cérebro e só
funciona repetindo as poderosas batidas que nos levam ao combate frenético.
Para finalizar, nós temos uma história cheia de buracos e ambiguidades, própria
de uma experiência que, como um todo, procura expressar esse vazio da
consciência, essa violência vazia e, ao mesmo tempo, tão satisfatória. Com
isso, nós temos um jogo compacto, bem planejado, e que entrega uma experiência
única.
Mas, vamos passar a
algo um pouco mais desagradável, por assim dizer. Em Papers, please, a estética é feia e simples. É desagradável olhar,
mas, ao mesmo tempo, oferece algo próximo da realidade, algo que transmite como
que uma realidade feia.
O som é abafado, como
se você vivesse distante de pessoas que vê tão de perto. A única trilha sonora
que marca são as batidas do tema principal, como um martelo que massacra você,
decretando a sentença cruel da sua falta de dinheiro, da sua incapacidade de
prover a sua família ou de ajudar alguém que precisava.
O gameplay é simples, monótono, mas, ao mesmo tempo, tenso, dando uma
mistura de satisfação e culpa por fazer o seu trabalho. E a história provê uma
moldura que te dá uma motivação melancólica, tão melancólica quanto o seu
espírito no começo de um novo dia no jogo, esperando para ver qual é a novidade
que o governo criou para tornar tudo mais difícil e cruel.
Assim, nós temos um
jogo que une suas partes para criar um sentimento ruim, embora ligeiramente
agradável, apenas o bastante para te manter jogando. Assim, quando você
termina, você não diz que viveu uma experiência agradável, mas certamente foi
uma experiência interessante, e talvez até importante, que te fez pensar e
sentir coisas diferentes.
Os dois exemplos que eu
escolhi são de jogos que eu respeito muito, e que procuraram moldar todos os
seus elementos para aquilo que eles procuravam despertar no jogador. Todas as partes
de um jogo são ferramentas para um determinado fim; elas não existem por si
mesmas – ou, pelo menos, não nos jogos mais interessantes.
E era isso que eu
queria dizer sobre essa questão de gameplay
ser considerado o elemento número um. Não existe elemento número um, e nem
deveria. O que importa é a estrutura que os elementos criam. A depender da
experiência, os elementos recebem a importância adequada.
Um jogo como Counter-Strike pode existir há quase 20
anos e ser um imenso sucesso, então o foco nas mecânicas e o público que
aprecia esse foco nunca foram embora. Mario continua sendo o maior ícone da
nossa indústria. Mas, hoje nós temos os mais diversos focos. Em vez de a gente
tentar limitar nossas possibilidades, que tal tentarmos expandi-las? Até uma
próxima análise!
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