quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Teoria: A noção de que gameplay tem que ser prioridade num jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje eu vou falar mais uma vez sobre teoria, agora tratando de um tema que retorna aos meus pensamentos de tempos em tempos, e que finalmente eu resolvi discutir com vocês. O tema de hoje é a noção de que gameplay é a coisa mais importante num jogo.

Antes de mais nada, a minha ideia aqui é justamente desmistificar essa noção o máximo possível, porque, para mim, o mais importante num jogo é a experiência que ele entrega, e aí o gameplay é um fator decisivo, sim, mas ele apenas soma esforços com outros fatores, igualmente decisivos, como o som, a estética visual e a história.

É preciso dizer que eu não estou querendo rebater ninguém em específico com o que eu estou dizendo. Aliás, você, uma pessoa que conhece e procura discussões de jogos, a ponto de achar este blog onde eu posto os meus textos, já sabe que este é um argumento que permeia muitas discussões, debates, comparações e teorias sobre jogos.

E, quando a gente ouve ou lê este argumento, parece algo realmente óbvio. Afinal, como todo defensor dessa ideia sempre afirma, o que diferencia os jogos das outras mídias é justamente a possibilidade de interagir, de conseguir, de alguma forma, ver aquela estrutura reagir à nossa presença. Nós a afetamos, ela nos afeta.

E realmente parece não haver discussão contra isso. O que diferencia os jogos das outras mídias, num primeiro momento, é que eles são interativos. Graças a isso nós obtemos uma série de efeitos que marcam para sempre o jogador. Mas, ao mesmo tempo, a gente vai ter, em termos de proximidade com essa noção de interação, por exemplo, os espetáculos teatrais que procuram integrar o público ao espetáculo, tentando fazer com que ele participe e faça da peça algo totalmente diferente do que ela foi no dia anterior.

A verdade é que a interação é uma ferramenta estética adotada amplamente há muitas décadas e que já é teorizada há séculos. Além do teatro, que é a outra arte em que essa ferramenta é mais amplamente adotada, a gente também tem as artes plásticas, com as instalações, que procuram fazer com que o visitante interaja de diversas formas com os objetos montados. A gente também tem, ainda, artistas performáticos, que ficam à disposição do público para interagir com eles de uma forma significativa, procurando uma experiência de troca com o artista em carne e osso.

A gente tem também livros que apontam diferentes caminhos para o leitor percorrer: ele pode ler na ordem tradicional, ou ele pode pular capítulos, ler numa ordem de idas e vindas, e a obra prevê isso de uma forma consciente. Assim, não é difícil ver quantas artes já trouxeram a interatividade para si mesmas antes de jogos se tornarem uma mídia consciente dos seus projetos e potencialidades.

Sendo assim, a gente precisa repensar aquele argumento tão óbvio que eu apresentei no começo da nossa conversa: o que diferencia os jogos não é o fato de que nós podemos interagir com eles. Na verdade, o que diferencia os jogos é que todos eles têm interações de alguma forma. Ou seja, um jogo tem como interação a sua forma de expressão mais básica.

Transpondo isso para as outras artes, faz sentido. Um jogo como o primeiro Resident Evil faz uso extensivo de câmeras fixas para aumentar a tensão, mas isso não tirou o direito do cinema de falar que a sua maior marca é o uso de ângulos com a câmera. O cinema, por sua vez, pode usar diálogos o quanto quiser, mas os mesmos diálogos continuam sendo a base do teatro. A narrativa continua sendo um dos eixos fundamentais da literatura, mesmo que tanto o teatro, quanto o cinema e os jogos incorporem esse aspecto.

Com isso, acho que a gente chegou num bom lugar na nossa discussão teórica e, como bons cartesianos, nós podemos tentar construir um conhecimento a partir de um postulado fundamental. E esse postulado é que jogos são interativos. Todos eles. Eles reagem a decisões que nós tomamos. O que varia é o tipo e a dimensão do peso das decisões que eles nos permitem.

Alguns jogos vão nos permitir andar livremente, interagir com quase todos os objetos que aparecem; outros vão nos permitir só andar por um pequeno espaço; outros, ainda, vão nos dar pontos de escolha em apenas dois momentos durante toda a experiência. Entretanto, todos eles vão nos dar algum momento para fazer a nossa parte, para nós nos inserirmos na experiência – muito embora, como nós já sabemos, a imensa maioria das nossas interações já sejam esperadas e devidamente programadas pelos game designers; então, quase sempre, nós temos mais a ilusão da liberdade do que uma utópica liberdade total.

Sendo assim, a interação é a pedra fundamental de um jogo, aquela parte que nunca vai faltar. Entretanto, para a gente chegar naquele argumento que eu quero discutir, a gente precisa dar um salto meio grande e, na minha opinião, errôneo. Como a gente passa da afirmação de que a interação é a parte onipresente de um jogo para a afirmação de que a interação é a parte mais importante de um jogo?

Em grande medida, esse movimento vem justamente dessa ideia equivocada de que a interação é o que faz jogos diferentes, mas, mesmo que a gente admitisse essa afirmação como verdade, ignorando tudo que eu falei até agora, focar tão desesperadamente no seu diferencial não me parece algo muito produtivo; pelo contrário: ao procurar o que nos define, a gente pode acabar simplesmente nos limitando sem necessidade.

Essa conversa sempre me lembra uma história lá da minha área de estudos original, a literatura. Na virada do século XIX para o século XX, tanto a literatura quanto a pintura sofreram uma crise existencial sem precedentes. E isso por causa de duas novas formas de arte que, supostamente, ameaçavam as mais tradicionais. No caso da pintura, a grande inimiga era a fotografia; afinal, nenhuma imagem pintada por uma pessoa pode ser realista a ponto de competir com uma foto. Já no caso da literatura, o adversário era o cinema, que poderia vencer qualquer esforço de realismo. Afinal, nenhuma descrição é tão vívida quanto a imagem do lugar ou a transmissão de uma cena.

Graças a isso e a alguns outros fatores que não vêm ao caso aqui, nós tivemos grandes esforços para procurar na pintura e na literatura algo que só elas poderiam fazer, ou seja, aquilo que a fotografia e o cinema não poderiam. Com isso, muitas das tendências de vanguarda da pintura e da literatura nasceram, e elas procuraram criar formas de expressão diferentes, e conseguiram. A ideia era transmitir muito mais as coisas a partir da mente, utilizando processos que não tinham mais a ver com os olhos, e sim com a mente, com o emocional, etc.

Mas, ao mesmo tempo, outras tendências surgiram, e eram aquelas que procuraram incorporar as técnicas de cinema ao texto, como a técnica do rápido movimento, ou a da montagem, que eu discuti no meu vídeo sobre Braid. E essas técnicas foram devidamente incorporadas à literatura, e hoje certas obras dessa tendência são consideradas tão clássicas quanto as mais cerebrais, as que buscavam retrair a arte por conta das inovações, em vez de expandi-la.

Enfim, vamos voltar ao que nos interessa aqui, os jogos. A ideia de procurar um elemento fundamental dos jogos, não para entendê-los melhor, mas sim para prescrever o que vem adiante, necessariamente resulta em limitações. E limitações são tudo de que os jogos não precisam.

Os jogos são, provavelmente, a mídia mais ambiciosa que existe, porque hoje ela incorporou todos os outros elementos definidores das outras artes: jogos têm trabalho com o texto; têm grandes estéticas visuais, sejam realistas, sejam fantasiosas; contam com grandes trilhas sonoras, dos mais diversos estilos; diálogos são presentes em sua imensa maioria; o trabalho com a câmera é muito importante na construção da sua narrativa; e, além disso tudo, jogos são interativos.

Isso, logicamente, implica muitos riscos. Quanto mais fatores uma obra de arte incorpora, mais difícil é manter uma unidade e, portanto, mais complicado é produzir um efeito poderoso, sem elementos que distraiam da experiência que se pretende estabelecer. Não à toa, muitos dos jogos que eu considero mais poderosos são aqueles que contam com o maior foco possível, como Shadow of the Colossus, ICO, Journey, Song of Saya, Hotline Miami, Papers, please, Transistor, Her Story, Super Mario 64 e outros.

É claro que grandes produções podem alcançar excelentes resultados nesse sentido, mas o trabalho de um batalhão sempre vai ser mais difícil de controlar, e as responsabilidades de oferecer resultados lucrativos nessa indústria sempre vai levar a pressões que se comportam muito mais como um detrimento para o produto final do que como uma ferramenta para estabelecer foco. Mas, mesmo assim, nós temos Ocarina of Time, Bloodborne, Bioshock, Fallout e vários outros.

Eu acredito que é dessa dificuldade de criar uma experiência coesa que vem um dos pontos centrais para o afloramento dessa questão de gameplay ser o principal elemento: afinal, com a dificuldade em lidar com tantos aspectos diferentes numa mesma obra, com orçamentos e riscos gigantes, é bem comum ver franquias e estúdios de renome escolhendo novas estratégias, que acabam não sendo tão populares com os jogadores tradicionais, e esses mesmos jogadores acabam associando essas mudanças a uma suposta falta de foco no gameplay.

Vale dizer, claro, que essa interpretação de um abandono do gameplay acaba sendo muito fácil para a nossa comunidade fazer, porque, na verdade, esse fenômeno de os jogos incorporarem as mais diversas formas de arte só se consolidou recentemente, apenas conforme a tecnologia permitiu esse processo, que já dura décadas. Quem estava lá no começo, quem se considera mais entendido e apaixonado por esta mídia, muitas vezes começou num tempo em que as outras possibilidades não existiam, quando quase não havia texto, quando as cutscenes de Ninja Gaiden eram revolucionárias.

Com isso, o pensamento de que os outros elementos estão roubando foco do gameplay acaba sendo lógico; afinal, jogos já eram bons antes de terem diálogo, antes de terem dublagem, antes de terem trilha sonora orquestrada, etc. A verdade, entretanto, é que experiências diferentes tendem a adotar focos diferentes e, por várias razões, a indústria se moveu um pouco para longe da ideia do gameplay complexo, intensivo e desafiador, embora ainda haja jogos que mantenham esse foco.

Determinadas escolhas de design e o desejo de ter gráficos melhores nos afastaram das frame rates mais altas, mas muitos jogos desafiadores, que exigem uma resposta rápida e precisa, continuam adotando os padrões de qualidade que existem há décadas para esses gêneros. A questão, como sempre, é saber achar o jogo certo para o jogador certo.

Porém, uma mudança de foco pode parecer um abandono quando a indústria era antes voltada para você, como a gente já discutiu em outro texto. Por isso, jogos como Gone Home, sem nenhum tipo de desafio ou complexidade no gameplay, acabaram recebendo tantos ataques desnecessários de um público que não tinha interesse em jogar um jogo assim, mas tinha raiva por tal jogo existir.

A questão, entretanto, é que Gone Home não tinha um gameplay ruim, o que, para mim, quer dizer que Gone Home não tinha um gameplay que lutava contra a experiência que ele queria construir. Pelo contrário: o gameplay de Gone Home era uma ferramenta perfeita para explorar o cenário e viver a experiência que o jogo propunha.

Agora, pensando neste mesmo gênero, o gameplay de Everybody’s gone to the Rapture falha, porque a própria mecânica de exploração apresenta problemas – no caso, a velocidade, que trabalha contra o impulso de explorar o cenário. Ou seja, antes de tudo, eu acredito que é necessário a gente pensar no que o jogo pensa em atingir e ver se cada parte que compõe o jogo alcançou o efeito necessário para isso.

Vamos para mais um exemplo, agora Hotline Miami: no jogo, você tem uma mecânica de movimentação e combate que são absolutamente frenéticos. Que são punitivos, mas rápidos, intoxicantes e dão muita satisfação. Quando a gente pensa no visual, a gente nota uma estética cheia de cores que estimulam os nossos olhos e o nosso cérebro, do mesmo jeito intoxicante com que o gameplay trabalha.

Passando ao som, a gente tem uma trilha sonora que praticamente desliga o nosso cérebro e só funciona repetindo as poderosas batidas que nos levam ao combate frenético. Para finalizar, nós temos uma história cheia de buracos e ambiguidades, própria de uma experiência que, como um todo, procura expressar esse vazio da consciência, essa violência vazia e, ao mesmo tempo, tão satisfatória. Com isso, nós temos um jogo compacto, bem planejado, e que entrega uma experiência única.

Mas, vamos passar a algo um pouco mais desagradável, por assim dizer. Em Papers, please, a estética é feia e simples. É desagradável olhar, mas, ao mesmo tempo, oferece algo próximo da realidade, algo que transmite como que uma realidade feia.

O som é abafado, como se você vivesse distante de pessoas que vê tão de perto. A única trilha sonora que marca são as batidas do tema principal, como um martelo que massacra você, decretando a sentença cruel da sua falta de dinheiro, da sua incapacidade de prover a sua família ou de ajudar alguém que precisava.

O gameplay é simples, monótono, mas, ao mesmo tempo, tenso, dando uma mistura de satisfação e culpa por fazer o seu trabalho. E a história provê uma moldura que te dá uma motivação melancólica, tão melancólica quanto o seu espírito no começo de um novo dia no jogo, esperando para ver qual é a novidade que o governo criou para tornar tudo mais difícil e cruel.

Assim, nós temos um jogo que une suas partes para criar um sentimento ruim, embora ligeiramente agradável, apenas o bastante para te manter jogando. Assim, quando você termina, você não diz que viveu uma experiência agradável, mas certamente foi uma experiência interessante, e talvez até importante, que te fez pensar e sentir coisas diferentes.

Os dois exemplos que eu escolhi são de jogos que eu respeito muito, e que procuraram moldar todos os seus elementos para aquilo que eles procuravam despertar no jogador. Todas as partes de um jogo são ferramentas para um determinado fim; elas não existem por si mesmas – ou, pelo menos, não nos jogos mais interessantes.

E era isso que eu queria dizer sobre essa questão de gameplay ser considerado o elemento número um. Não existe elemento número um, e nem deveria. O que importa é a estrutura que os elementos criam. A depender da experiência, os elementos recebem a importância adequada.

Um jogo como Counter-Strike pode existir há quase 20 anos e ser um imenso sucesso, então o foco nas mecânicas e o público que aprecia esse foco nunca foram embora. Mario continua sendo o maior ícone da nossa indústria. Mas, hoje nós temos os mais diversos focos. Em vez de a gente tentar limitar nossas possibilidades, que tal tentarmos expandi-las? Até uma próxima análise!

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