terça-feira, 28 de novembro de 2017

Bound - Pensando sobre o jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje eu quero falar de Bound, jogo desenvolvido pelo estúdio Plastic e publicado pela Sony em 2016 para o PS4. Bound é um jogo com uma proposta muito interessante, extremamente inovadora e que coloca uma série de desafios. Em alguns deles, o jogo se sai bem; em outros, nem tanto. No centro de Bound está a proposta de usar a dança como a forma de expressão primordial dentro do jogo, o que é algo que, até onde eu sei, nunca foi implementado; acho que o mais próximo que já tivemos são os jogos da série Just dance, em que a proposta é reproduzir o que se vê no jogo, em vez do jogador exprimir algo com a dança.

Eu acredito que colocar a proposta de Bound em prática era uma tarefa dificílima, simplesmente porque as possibilidades de movimentos e combinações que o corpo humano permite é algo que deixaria o jogo extremamente complexo. Bem ou mal, a gente teria que ter consciência de quase todas as articulações do corpo, e isso certamente não é fácil em termos de animação ou detecção de colisão, etc.

Por outro lado, uma proposta que tentasse inverter o princípio de Just dance exigiria tanto um reconhecimento de movimentos muito apurado, quanto um perfil de jogador que, por si só, já fosse bem consciente do significado da dança e dos movimentos possíveis. Em poucas palavras, acho que o caminho para fazer de Bound a experiência a que ele se propunha exigiria ou um jogador com um domínio absurdo dos seus comandos no controle, ou então um jogador com um domínio absurdo do seu corpo. E, claro, nas duas hipóteses nós ainda precisaríamos de ferramentas tecnológicas que não estão à nossa disposição hoje em dia.

Bom, depois de tudo isso que eu disse, você deve estar pensando que eu devo estar colocando mil desculpas de antemão para o jogo, que certamente não entrega nenhuma dessas duas propostas. Talvez eu esteja, mas eu só estou mostrando para vocês o meu raciocínio quando eu ouvi falar do jogo pela primeira vez. E esses desafios imensos colocados a ele não me deixaram derrotista, e sim curioso para ver qual seria o resultado que Bound alcançaria, que meio termo entre a liberdade e complexidade da dança e os limites do game design ele construiria.

Na prática, Bound se concretizou como uma mistura de jogo de exploração e plataforma, em que o jogador controla uma princesa numa espécie de fábula abstrata e psicodélica. Ela recebe a missão da mãe de impedir o avanço de um monstro que está atacando o reino e, então, parte para encontrar meios de confrontar e derrotar o monstro. Mas, eu falo mais sobre isso no final.

Os movimentos da princesa são todos capturados digitalmente de uma bailarina profissional e absolutamente tudo que ela pode fazer é imbuído da técnica da dança. A forma de correr usando apenas a ponta dos pés, os saltos leves, os passos próximos e minimalistas ao andar por um lugar estreito, os saltos apoteóticos, cada pequeno movimento de Bound é imbuído de beleza, e isso já antes de você ter a opção de dançar, ou seja, de realizar alguns movimentos um pouco mais complexos, como piruetas.

Nesse sentido, Bound certamente acertou em cheio em um dos propósitos mais básicos da dança: parar, por um momento, para analisar e viver o nosso corpo mais do que como uma ferramenta de mobilidade, mas também como uma forma de expressão, de autodescoberta. É curioso como a nossa indústria é absolutamente dominada pela tecnologia da captura de movimentos, mas sempre voltada para o movimento mais prosaico, mais cotidiano, e menos para o lúdico, o movimento alternativo, gracioso e cheio de significado.

Certos jogos chegaram a tratar disso sutilmente. Shadow of the Colossus, por exemplo, tem um protagonista que se move de forma ligeiramente desengonçada, o que é uma forma de expressar que ele não se encaixa perfeitamente na missão a que ele se propôs; é uma carga grande demais para ele, o que é, aliás, um tema bem recorrente em jogos dessa equipe que, em seu minimalismo extremo, fez até do movimento uma forma de expressão e construção de personagem.

Bound, por sua vez, procura tirar o movimento do rodapé da experiência e transformar em centro da interação. E, como eu falei, o jogo certamente chama a atenção para como nossos protagonistas se movem de forma padronizada e sem surpresas; o movimento é só uma ferramenta. Porém, depois que a gente reconhece essa inovação, os problemas de Bound começam a surgir.

E o principal é que há limitações demais no projeto de Bound, e isso em dois aspectos. O primeiro é o número ínfimo de movimentos de dança possíveis, ao qual o jogador passa a se habituar muito rápido e, logo, se torna quase tão rotineiro quanto o andar tradicional. Faltam opções de movimento, e talvez até a possibilidade de combinar dois ou três movimentos para obter outros novos, ou conexões que formariam técnicas novas.

Eu falo isso não porque eu acho que o jogo precisa da chamada profundidade de gameplay, e sim porque, quando um jogo chama atenção para um aspecto seu e o coloca no centro, ele precisa oferecer algo que torne esse aspecto relevante e poderoso durante toda a experiência. Não é à toa que muitos jogos procuram oferecer sempre mais atividades; afinal, se o jogador se cansar de uma delas, pode sempre partir para a próxima.

A outra limitação de Bound é como os cenários e a exploração se adaptam aos diferentes movimentos da protagonista. Infelizmente, a detecção de colisão leva frequentemente a problemas para o jogador conseguir se sustentar em certos locais, às vezes é possível ver a personagem escorregando de lugares claramente firmes, etc. Por sorte, quando o jogador falha, o jogo retorna quase que exatamente no último lugar em que era possível se sustentar, mas mesmo assim acaba sendo frustrante.

Essas duas coisas parecem mostrar limitações que são da ordem do orçamento do jogo, são elementos que poderiam ter sido mais desenvolvidos com maior captura de movimentos, maior tecnologia de animação e um maior teste na colisão para tornar a movimentação mais fluida e rica. Mas, para um jogo tão pequeno e experimentalista, certamente não deveria haver muito dinheiro disponível.

Por outro lado, os cenários e a música são estonteantes, cheio de beleza. Embora abstratos, os cenários oferecem uma multiplicidade de cores e formas que envolvem e provocam o jogador de diversas formas, o que torna a experiência visual muito marcante. A trilha sonora, além de muito bem escolhida, sabe também se adaptar a diferentes momentos da experiência e ajuda a despertar os sentimentos pretendidos.

Na história, também, Bound procura sair um pouco da norma, e consegue resultados interessantes. Para começo de conversa, os capítulos da história do jogo podem ser experimentados em ordens variadas, e são todos como que flashes de uma história com significado muito maior do que as metáforas do jogo deixam ver. Acaba ficando a cabo do jogador juntar as peças e estabelecer o significado e os sentimentos que Bound tematiza, seguindo um pouco a técnica de montagem de que eu falei no meu vídeo sobre Braid.

O que a gente encontra por trás dessa fábula toda é uma história sobre problemas familiares que olha para a fragilidade da família não apenas com olhares ressentidos a uma pessoa, mas considerando que pessoas podem ser heróis ou vilões dependendo do momento e do papel que exercem numa relação. Nesse sentido, ter uma estrutura livre e vaga como a de Bound ajuda justamente a ter um panorama mais compreensivo, em que personagens podem exercer papéis radicalmente distintos a depender do momento, o que representa bem relações humanas: nós desempenhamos heróis e vilões em momentos diferentes, e às vezes sem saber.

Uma última coisa que eu queria falar sobre a minha experiência com Bound, mas que não se restringe a ele, é que muitos dos jogos mais alegóricos e abstratos dos últimos tempos têm tido um certo receio de seus temas reais não serem entendidos, e por isso eles acabam trazendo elementos mais diretos que se chocam com a estrutura lúdica que eles construíram até então.

No caso de Bound, que, como eu falei, tematiza relações familiares, há uma série de trechos que expressam cenas com uma família, mesmo que as figuras alegóricas do mundo da princesa fossem capazes de expressar sem problemas o que se pretendia tematizar. Essa é uma coisa que eu tenho visto reaparecer em Papo y Yo, RiME, e agora em Bound. São jogos que trabalham com metáforas como sua estrutura de significação fundamental, mas que, em um momento ou outro, especialmente ao final, resolvem mudar sua significação para explicar seu tema, caso alguém ainda não tenha entendido.

E a verdade é que em muitos casos, o tema é bastante claro, e resolver mudar a estética da experiência para se explicar acaba sendo menos bem realizado do que os jogos que aderem às suas alegorias e confiam no poder de interpretação do jogador, como Journey, Inside, Braid, e vários outros.

De qualquer forma, eu não acho que Bound, RiME ou Papo y Yo são obras fracas por isso, até porque eles estão sustentados na expressão de experiências que são recorrentes, genuínas e que provocam a nossa empatia. É só que, como obras de arte, manter a consistência de seu sistema expressivo é sinônimo de maior força e confiança nesse sistema.

E era isso que eu queria dizer sobre Bound. É um jogo muito interessante pela sua proposta de trazer as potencialidades da dança ao mundo dos jogos e, embora ele tenha acertos, vários entraves técnicos colocam um limite à sua ambição. Além disso, ainda há um deslumbre para os sentidos durante a experiência, e até uma história tocante. Até a próxima análise!

sábado, 18 de novembro de 2017

Teoria: Ludoironia



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje eu resolvi fazer mais um vídeo de teoria. O tema de hoje tem a ver com o último jogo que eu analisei aqui no canal, que foi Dark Souls 2, e também com uma retrospectiva que eu fiz sobre tudo de que eu tratei aqui no canal nesses 5 anos, e sobre as questões mais interessantes e difíceis que eu acredito que os jogos têm enfrentado e que ainda precisam enfrentar.

Talvez a principal delas seja aquilo que eu chamo de Ludoironia. É algo de que eu tratei já em alguns jogos, mas que eu queria destacar como conceito com vocês neste vídeo, até para vocês me dizerem o que acham e me indicarem mais exemplos, caso vocês tenham.

Mas, primeiro, vamos ao conceito. Ironia sempre nos dá a impressão de que quer dizer a prática de dizer uma coisa enquanto se quer dizer outra. É isso que a gente quer dizer quando a gente usa o termo no dia a dia, mas, em certas teorias de arte, quer dizer uma coisa ligeiramente diferente.

Existe um livro muito importante e interessante chamado A teoria do romance, escrito pelo crítico tcheco Georg Lukács, e nele existe uma terminologia muito curiosa chamada “ironia romanesca”, ou seja, uma ironia que faz parte dos livros que se identificam como romances.

No caso, o tema principal de um romance seria discutir um pouco a busca por um sentido da vida e, em muitos casos, essa busca terminaria com uma falta de sentido, ou seja, ela seria falha, e terminaria concluindo que o mundo não faz sentido, não existe uma ordem governando tudo, e não existe um lugar determinado em que uma pessoa precise se encaixar.

Porém, embora ele tematize a falta de sentido, o livro em si tem que fazer sentido; do contrário, ou o público não vai entender, ou a obra de arte vai ficar toda despedaçada, sem uma coesão interna que a torne uma obra de arte interessante e que ressoe com as pessoas que leem. Ou seja, a ironia romanesca é o fato de que um romance tem que ter sentido, mesmo que ele queira falar da falta de sentido.

Bom, feita essa introdução, vamos ao universo dos jogos, que é o que nos interessa aqui. Como a gente já discutiu em outro vídeo, embora a interação não seja monopólio expressivo dos jogos, eles usam a interação como sua ferramenta de expressão mais básica, ou seja, ela é a fundação, a especialidade dos jogos.

E interação, claro, significa que, quando o jogador opera uma ação no jogo, o jogo reage a essa ação de alguma forma, e essa reação provavelmente vai demandar uma nova ação do jogador, à qual o jogo reagirá novamente, e assim combinações múltiplas de experiência vão surgindo. É uma mecânica artística fundada em trocas de ações e informações baseadas num conjunto de regras dado pelo jogo.

Sendo assim, qual seria o equivalente da ironia romanesca nos jogos? Para mim, parece que seria um jogo que tratasse da impossibilidade de ações, da falta de propósito das ações do jogador, mesmo que, nesse processo, o jogador pudesse agir de alguma forma, com o jogo reagindo. Ou seja, é o processo de interagir com um jogo enquanto ele, em sua estrutura fundamental, fala para você que as suas ações são inúteis ou, em última instância, que, por mais que você aja, você está numa situação sem saída, sem liberdade, sem propósito. Isso é o que eu chamo de ludoironia ou ironia dos jogos, roubando um pouco a terminologia da Teoria do romance.

Como eu disse no começo, eu retornei um pouco a esse tema por conta de Dark Souls 2. Sem dar muito spoiler, Dark Souls 2 é um jogo que, desde bem cedo, fala frequentemente da inutilidade das ações de importantes personagens naquele mundo, e inclusive do personagem que você controla. Além do mais, o jogo chega até a apontar que o jogador e o personagem não fazem ideia de por que estão agindo da forma como agem.

Por conta disso, o jogo assume um tom que ultrapassa a melancolia que marcou seu antecessor, e chega num ponto em que o jogador precisa se perguntar qual motivação ele deveria ter naquele mundo além de aproveitar os combates que o jogo oferece. Parece não haver incentivo nenhum à prática de assumir um papel no mundo do jogo, de se envolver de alguma forma.

A moldura da narrativa de Dark Souls 2 é tão voltada para esse sentimento de desolação e desânimo que a primeira interação com um personagem no jogo é um conjunto de pessoas rindo da cara do seu personagem, que busca conseguir uma solução para a maldição que o afeta.

O efeito que isso teve na minha experiência foi me fazer perder o investimento no mundo do jogo. Dark Souls 2 é um jogo muito competente em muitas áreas, mas no quesito de criar o seu mundo, ele acaba sendo frio e indiferente, a ponto de o seu antecessor acabar parecendo um lugar acolhedor. Um lugar cheio de inimigos e em que você não importa muito, mas um lugar em que as pessoas não desdenham de tudo que você faz.

Com isso, eu me perguntei se a ludoironia de Dark Souls 2 não era extrema, num ponto em que o jogador se sentia completamente desinvestido na experiência, desprezado por ela. E, então, eu resolvi trazer de volta alguns exemplos de jogos que tratam isso de formas diferentes e interessantes, e que talvez possam servir de exemplo sobre como se pode harmonizar essa contradição inerente a falar da inutilidade das suas ações num jogo.

Por mais estranho que pareça, eu acredito que o jogo que mais oferece o paralelo mais próximo com Dark Souls 2, mas acertando na criação do seu mundo, é The Stanley Parable. Esse jogo também trata especificamente sobre um ciclo inescapável. Nele o narrador do jogo e o seu protagonista, representando o jogador, lutam incansavelmente para ver quem está com as rédeas da narrativa. E, basta dizer, sem spoilar demais, que a moral da experiência de The Stanley Parable é que o jogador só está livre se ele não jogar. Dentro do jogo, ele segue regras, e ponto.

Mas, num universo tão declaradamente restrito como esse, como The Stanley Parable consegue deixar o jogador interessado e disposto a interagir com o jogo? A resposta é tornar interessantes os fracassos na batalha contra o narrador. No jogo, você pode tentar muitas coisas para escapar às regras e cada uma dessas coisas leva a cenários novos, interessantes e até divertidos, se esse for o seu tipo de humor.

Ou seja, o mundo de The Stanley Parable é absolutamente intransigente, mas essa intransigência se manifesta de formas tão variadas, que acabam o envolvendo o jogador, seja pelo humor, seja pela curiosidade sobre as situações que ainda podem ser descobertas. Em grande medida, é um jogo masoquista, em que você se alegra com ser derrotado, e busca sempre novas formas para isso.

Outro jogo que tentou algo interessante, e foi seguido de diversas formas, foi Gone Home. Nele você controla uma moça tentando descobrir o que aconteceu na casa dos seus pais enquanto você estava fora. Veja bem, você não tenta resolver nada, você só tenta descobrir, entender. Em última instância, o sentimento que mais marca a experiência de Gone Home é justamente esse de estar fora, de ter perdido um momento essencial por conta das escolhas que se fez. A vida é cheia de escolhas e, quando a gente faz uma, deixa, inevitavelmente, algumas coisas para trás.

Essa sensação de ser incapaz de mudar algo, porque esse algo já aconteceu, poderia desmotivar o jogador, e eu acredito que fez muitas pessoas se frustrarem com o jogo, porque esperavam um papel mais ativo na história. Mas, ao mesmo tempo, Gone Home ainda conseguiu manter muitas pessoas investidas, e eu acredito que isso se deve ao fato de que o jogo oferece alguma recompensa ao jogador, mesmo que a recompensa maior, que seria alterar o destino dos personagens, esteja fora de alcance.

Gone Home oferece ao jogador a experiência de entender, de investigar detalhes e, nesse sentido, em vez de interações variadas, o jogo oferece um level design absolutamente crível e cheio de detalhes que envolvem o jogador, e o fazem se sentir um investigador, e aí colher pequenos detalhes, entender melhor a situação da família acaba sendo uma recompensa e um envolvimento em si mesmo. Assim, Gone Home coloca o jogador num mundo em que ele não pode alterar nada, mas ele pode alterar a si, a sua curiosidade, o seu conhecimento. E isso acaba sendo muito engajador.

Vários jogos seguiram a mesma trilha de Gone Home, e evoluíram técnicas que estavam todas juntas nele. What remains of Edith Finch, por exemplo, nos faz reviver os últimos momentos de um personagem de uma forma lúdica. Nós não podemos alterar nada, mas há um prazer na interação por si, uma curiosidade que permite que participar das histórias seja recompensador, e nos oferece uma percepção diferente sobre os personagens e sobre como aquela família vê a morte.

Her Story continua 100% o lado detetive de Gone Home, agora retomando uma história que já se encerrou muitos anos antes da experiência que você está vivendo, mas que se apresenta de forma complexa, requerendo planejamento e lógica da parte do jogador e aí o ato de entender se torna uma recompensa muito interessante, mesmo que a reação inicial do jogador pudesse ser apenas um desprezo por não ser capaz de afetar nada.

Assim, esses três jogos acabam focando muito na ideia de uma interação diferente, uma espécie de recompensa interna. O mundo desses jogos não muda, mas o protagonista e o jogador mudam. E essa mudança é a recompensa do jogo, a força que a experiência traz consigo e que se torna muito marcante.

Uma terceira opção, um pouco mais aberta, é a de Papers, please. Diferentemente desses outros jogos, há diversos fatores que o jogador pode afetar naquele mundo, pelo menos supostamente. É claro que o jogador pode ficar cada vez melhor no trabalho do jogo e realmente dominar as mecânicas, mas é bem claro que o jogo trabalha intensamente para que o jogador falhe. A intenção é que ele falhe, que seja difícil ou até impossível fazer escolhas em condições ideais. Talvez você tenha que separar um casal para não perder o dinheiro para o remédio do seu filho, mas talvez seja tarde para o remédio e o seu filho morra mesmo assim.

Com isso, a recompensa do jogador não está numa saída feliz ou necessariamente recompensadora, mas no sentimento de esforço, de tentar ir o mais longe possível, de se ater mais aos valores que o jogador escolheu, seja manter a família, seja ajudar desconhecidos, seja fazer o máximo para fugir dessa situação toda e ficar em segurança. Não existem situações ideais e certamente haverá sacrifícios no caminho e a ideia é que o jogador sofra as frustrações desse processo.

E essa experiência tão negativa acaba funcionando justamente porque ela passa ao jogador o peso das suas decisões. Ele tem uma ilusão de controle no processo e, portanto, está envolvido, mesmo que a ideia é que ele falhe. Quando ele falha, a sensação é de que a intenção do jogo nunca foi a de que ele vencesse, e passar por isso acaba fornecendo a compreensão das situações-limite que o jogo procura mimetizar.

E, durante tudo isso, as mecânicas do jogo funcionam de forma a quase viciar o jogador no processo. É preciso ter tanta atenção e velocidade que o cérebro quase desliga e o jogador se move num ritmo tal que o ato de jogar se torna prazeroso, mesmo que a experiência final seja voltada para não dar nenhuma alegria.

Um jogo que retomou bastante esse conjunto de propostas foi This war of mine, em que o ato de sobreviver é sofrido e moralmente questionável, mas o jogador tem momentos de alegria no processo, procurando por itens e estratégias para sobreviver, e o propósito não é vencer e causar mudanças significativas, e sim ver até quando se consegue sobreviver. Ou seja, se a moldura narrativa colocar uma situação impossível de início, porém com pontos de envolvimento fortes durante vários momentos imediatos da experiência, a impossibilidade se torna um ponto distante e sai um pouco do horizonte.

E era isso que eu queria dizer sobre esse conceito estranho que eu criei, e chamei de ludoironia, que nada mais é do que construir um jogo, ou seja, uma obra de arte interativa, cuja estrutura é fazer com que as ações do jogador não tenham uma ressonância profunda no universo do jogo. Seria quase como um inverso da tradicional fantasia de poder que tantos e tantos jogos praticam, justamente por ser mais fácil.

Na verdade, quando a gente pensa na história da indústria, a gente nota que há um esforço justamente para aumentar a repercussão das ações do jogador: mais ações possíveis, mais lugares para ir, mais horas de jogo, NPCs que lembram de decisões feitas há muito tempo, pequenas decisões que tomam repercussões imensas, etc. Mas, ao mesmo tempo, também é possível remar contra essa maré e criar jogos em que a própria falta de poder seja o tema, e os resultados ainda podem ser muito poderosos.

Por favor, me diga o que você achou dos exemplos que eu elenquei e se você tem mais algum, e inclusive se você acha que jogos assim são fadados ao fracasso ou não usam a mídia ao máximo. E até uma próxima análise!

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Dark Souls 2 - Pensando sobre o jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje eu vou falar de Dark Souls II, jogo desenvolvido pela FROM Software e publicado pela Bandai Namco em 2014 para PC, PS3 e Xbox 360. A versão que eu joguei e que será comentada é a final, com todos os DLCs e uma série de mudanças, batizada de Scholar of the first sin, lançada em 2015 para as mesmas plataformas, e também para PS4 e Xbox One. Como eu passei só por essa versão, não espere muitas comparações com a original; eu vou realmente me concentrar na forma definitiva que o jogo assumiu com a reformulação de 2015.

Dark Souls 2 é possivelmente o jogo mais comentado e discutido na internet. Ou, pelo menos, é o mais comentado e discutido com exceção daqueles clássicos supremos que guardam seu lugar um pouco além da própria história. Eu acredito até que ele seja mais discutido do que o próprio Dark Souls, o qual muitas pessoas passaram a entender melhor por conta das comparações incessantes entre ele e a sequência.

O fato é que há diversas diferenças em relação ao jogo original da franquia e muitos fãs antigos criam inúmeros ensaios para mostrar essas diferenças, e mostrar como o original seria superior. Atualmente, a gente tem finalmente também os ensaios em contrário, aqueles que explicam como Dark Souls 2 talvez seja superior ou, pelo menos, diferente do seu antecessor.

Muitos youtubers, especialmente os estrangeiros, já discutiram Dark Souls 2 em detalhe, a ponto de restar muito pouco a dizer: o Matthewmatosis tem um vídeo de quase 50 minutos falando das mudanças do jogo em relação ao original, o Joseph Anderson tem mais de uma hora e meia de comentário sobre as diversas partes do jogo, e esses dois são só exemplos.

Estou falando tudo isso só para fundamentar a minha decisão de não ficar repetindo muito o que já foi falado, ou seja, este é mais um vídeo como os que eu fiz sobre Mega man ou Cuphead, em que eu mais tento dar a minha contribuição ao debate do que repetir o que já se conhece bem sobre o jogo.

Dito isso, eu tenho mais dois avisos: o primeiro é que eu recomendo muito ver o meu vídeo sobre o primeiro Dark Souls, porque eu vou fazer algumas referências ao jogo e a certas interpretações que eu fiz lá; e o segundo é que este vídeo vai spoilar livremente Dark Souls 2, bem como seu antecessor. Como quando eu falei sobre o primeiro Dark Souls, este é um vídeo para quem já conhece o jogo em detalhe. Se, depois de saber tudo isso, você quiser continuar, vamos lá.

Acho que a primeira e principal ideia que eu preciso indicar é que Dark Souls 2 tem claramente um tema que ele persegue e que, talvez até sem querer, ele acaba sempre retomando. É, curiosamente, uma obra de uma coesão estranha, porque, quando eu uso esse termo, eu normalmente quero dizer algo positivo, mas a verdade é que a coesão desse jogo mais o prejudica do que o favorece.

E esse tema é o do esquecimento, da perda, da quebra de ligações, da falta de nexo, ou, em uma palavra: alienação. Esse termo é muito carregado politicamente, mas vamos usá-lo no seu sentido original e mais amplo, que é o do processo em que se perde o conhecimento sobre um objeto, sobre o seu passado, sobre o que está ligado a ele no geral.

Falar que isso está em Dark Souls 2 é declarar o óbvio, porque a cutscene inicial já trata desse assunto, falando que a maldição dos mortos-vivos apaga lentamente a memória, até que só reste um hollow, uma casca no lugar da pessoa que um dia ocupou aquele corpo.

Mas, esse tema vai muito além disso dentro do jogo. Ainda falando da história, a alienação não se dá apenas em relação ao passado dos amaldiçoados, mas também com relação ao presente e ao futuro: a trajetória do protagonista é mencionada constantemente como algo que nem ele mesmo entende, suas motivações não são claras, apenas um vago desejo de se livrar da maldição. Ou seja, o protagonista está alienado em relação ao passado e ao presente. Se ele não tem essas informações, como se pode saber quem é ele?

Com o tempo, analisando as decisões de design, o jogador finalmente entende quem é esse personagem: é ele mesmo, o jogador. Afinal, a única diferença entre esse personagem vagando por Drangleic e um hollow qualquer é que há alguém o controlando do lado de fora; a única força real carregando esse personagem é o seu desejo, como jogador, de prosseguir no jogo, ver coisas novas, vencer novos desafios.

Neste ponto, cabe uma rápida comparação com Bloodborne, em que muitas das coisas são obscuras a ponto de dar uma impressão semelhante ao jogador. A diferença é que, em Bloodborne, há, por um lado, uma motivação do personagem que simplesmente o jogo não esclarece, mas que também não diz que não existe; e, por outro lado, há criaturas cuja ação estão além da compreensão do personagem que nós acompanhamos, mas que pode ser intuída conforme se progride no jogo. E, vale dizer, desde o início a missão de Bloodborne está clara: conseguir sangue pálido e acabar com o pesadelo.

O mesmo vale para o primeiro Dark Souls: embora o jogador possa se sentir um pouco sem direcionamento, há uma série de NPCs que dão direções e explicações muito claras e que oferecem objetivos muito claros, que servem de motivação ou de norte. Dark Souls 2 não só não costuma oferecer direcionamentos muito claros, como também não explica a razão dos direcionamentos que dá e, na imensa maioria dos casos, só diz que o protagonista não entende o que está fazendo.

Sendo assim, no fundo, a história de Dark Souls 2 não é a história de um morto-vivo tentando reverter sua maldição e talvez salvar Drangleic e o resto do mundo; é, sim, a história de um jogador que colocou Dark Souls 2 para rodar e quer se divertir com mais essa experiência, ser desafiado, ver o que há adiante, e por aí vai.

Do jeito que eu estou falando, deve estar parecendo que isso é uma crítica, mas, na verdade, não é – pelo menos, não necessariamente. É apenas uma mudança drástica de foco. Os jogos da série até então, e até Bloodborne, valorizam muito o sentimento de uma missão, o entendimento do que está acontecendo naquele universo, a postura de detetive, ou seja, os jogos da FROM Software buscam um sentido de imersão que simplesmente não está presente em Dark Souls 2, e talvez por escolha própria.

Um dos grandes desafios ao conceber uma sequência, ainda mais se o encarregado de dirigir o jogo não é o mesmo do antecessor, é entender o que faz parte da base da série, o que é essencial, qual é a sua identidade. Uma das estratégias mais válidas para fazer isso é ver o que o público acha, o que ele valoriza, o que o marcou na primeira experiência. E, se alguém pesquisasse sobre Dark Souls antes de fazer uma sequência, provavelmente o que mais ouviria seria o apreço pela dificuldade, a diversão dos combates, o terror das invasões, etc.

É claro que aquele que ouvir mais atentamente também vai ficar sabendo do apreço pelo level design complexo e a coerência do universo, mas esses argumentos, embora já existissem antes de Dark Souls 2, viraram o centro da conversa principalmente após o lançamento de Dark Souls 2, porque esse jogo não alcançava o mesmo nível dos jogos anteriores nesses quesitos.

Sendo o combate o centro da conversa, a FROM resolveu centralizar a experiência da sequência nele, incorporando elementos temáticos e narrativos apenas como acessórios na construção do mundo, mas sem a centralidade que eles antes ocupavam. É claro que eu estou só especulando aqui, baseado no meu conhecimento sobre a comunidade e sobre aquilo que o jogo apresenta. Talvez eu esteja atirando no escuro, mas o fato é que, em Dark Souls 2, o combate parece ser o centro, e as coisas são construídas em volta dele.

Alguém pode argumentar que o combate sempre foi o centro da série, mas eu diria que não necessariamente. O combate na série Souls é uma ferramenta poderosa para criar a experiência geral, que é transitar por um mundo perigoso e hostil, em que quase tudo está contra você, mas no qual você tem as ferramentas para perseverar. Mas, nesse sentido, tão importante quanto o combate é o level design complexo, que te dá aquela sensação de um mundo enorme e difícil de entender; a história que coloca grandes perigos no seu caminho; e mesmo os cenários, que possuem beleza e grandiosidade, como se você estivesse num lugar majestoso demais para você.

Em grande medida, acho que desses três elementos, level design, história e cenários, Dark Souls 2 foi capaz de manter o nível apenas nos cenários, e, pelo menos no quesito estético, certamente superou o original. Eu fico especialmente impressionado com as paisagens desse jogo, com a imensidão e o contraste de cores que muitas das localidades possuem.

Falando um pouco em detalhe desses três elementos, eu acredito dê para ficar claro o quanto partes que antes funcionavam de forma coesa e com igual importância nos jogos anteriores foram rebaixadas em favor da prática do combate, que se tornou rei e subjugou os outros elementos, de um jeito que Dark Souls 2 acaba não sendo um jogo ruim, mas tem um forte tom artificial, alienado, em que apenas o quê importa, e não o por quê, ou o para quê, o quando, o onde, etc.

O primeiro elemento é o level design, e esse talvez seja a clássica crítica que se faz ao jogo: em sua imensa maioria, o level design de Dark Souls 2 é linear, com apenas algumas salas para explorar, em vez do design complexo do primeiro jogo. Exceções a isso se dão apenas nos dois primeiros DLCs e em cenários como Gutter e Lost Bastille.

Se pensarmos nas mudanças de prioridade da série, acaba fazendo muito sentido: Dark Souls 2 não incentiva tanto exploração, e sim combates, especialmente combates contra grupos. Levando isso em consideração, o level design foi simplificado para funcionar quase como uma maratona, porque enfrentar tantos inimigos talvez fosse cansativo demais para depois ficar explorando o mapa e correndo o risco de encontrar mais coisas. Quase todas as fases de Dark Souls 2 dão aquela impressão de que o objetivo final não era chegar em algum lugar específico, mas sim sobreviver até certo ponto. E, como a caminhada é extenuante, há um excesso de bonfires, com todas permitindo fast travel; assim você não precisa repetir a maratona.

Esse sentimento de sobrevivência é bem simbolizado mesmo nos combates individuais. Dark Souls 2 tirou a centralidade do sistema de estus flasks, que fornecia uma quantidade fixa de itens de cura, em favor das lifegems, que podem ser compradas livremente. Além disso, o processo de usar um item de cura se tornou extremamente lento, a ponto de se tornar bem pouco viável na maioria das situações de combate. Com isso, a filosofia do combate do jogo é tratar cada luta como um pequeno desafio, que o jogador precisa superar e que é, em si, um potencial momento de derrota.

O jogador precisa aprender a lidar com muitos inimigos simultâneos, às vezes até muitos inimigos fortes ou com métodos de ataque diferentes. Se ele consegue vencer, ele tem o direito de se curar e passar ao próximo desafio. Se ele passar por vários desafios, ele ganha direito a ativar o checkpoint.

Além disso, mesmo após ativar a animação de ataque, os inimigos conseguem seguir a movimentação do jogador e atingi-lo se ele não desviar no momento exatíssimo, com o mesmo valendo para flechas e magias. Com isso, mesmo se a tradicional técnica de correr dos inimigos for usada, ela demandará uma precisão bem maior, e talvez até investimento em Adaptabilidade, que é o atributo que regula os frames em que o personagem está invulnerável ao rolar.

A ideia é, então, que Dark Souls 2 quer que você lute sempre com os inimigos que colocou no cenário, por isso os cenários não apresentam tantos caminhos alternativos, e os inimigos acabam sendo muito bons em te seguir e te acertar quando você tenta correr. Por conta disso, você tem um level design simplificado, apenas um conjunto de corredores e arenas, com a eventual armadilha aqui e ali para te pegar de surpresa e te deixar em pânico antes do combate em si começar.

Passando agora aos cenários, a gente tem uma mudança de tentar criar um universo orgânico para criar um universo simplesmente variado, que oferece diversidade de localidades ao jogador, mas sem pensar que elas deveriam fazer algum sentido entre si. Nesse aspecto, há uma semelhança com o princípio de Demon’s Souls, que propõe cenários radicalmente distintos, mas, em Demon’s Souls, os cenários são totalmente separados, sem nada que especifique a distância a que eles estão um do outro e, dentro dos cenários em si, há uma coerência. Todas as partes de Valley of Defilement são coerentes, por exemplo.

Em Dark Souls 2, o jogador pode chegar a localidades totalmente distintas num piscar de olhos, porque, como o primeiro Dark Souls, a ideia é que você vá de uma área a outra a pé, e não que se teletransporte a partir da área central, como é o caso em Demon’s Souls. Com isso, certas transições fazem muito pouco sentido, o que arruína significativamente a imersão que o jogo poderia criar.

Pensando em tudo que eu falei até agora, Dark Souls 2 aparece como um jogo baseado em núcleos, que se propõem como situações interessantes para o jogador interagir com o sistema de combate. Tematicamente há muitas semelhanças com os outros jogos da série, mas, enquanto os outros pensam muito mais em termos gerais, da experiência como um todo, Dark Souls 2 se concentra muito mais no momento, nas situações individuais.

E, para essas situações individuais, o combate foi significativamente expandido, oferecendo muito mais diversidade de opções de builds, um monte de magias novas, especialmente as magias negras, chamadas hexes, e as pyromancies. Além disso, os anéis foram expandidos, com o personagem podendo usar até quatro de uma vez. A quantidade de elementos que se pode atribuir a uma arma parece ultrapassar até o número de opções que Demon’s Souls oferecia, e é até possível usar armas nas duas mãos agora.

Tudo isso torna o combate de Dark Souls 2 muito mais interessante do que o primeiro. Alguém pode argumentar que os inimigos que se está enfrentando são menos variados e interessantes, mas, da parte do jogador, nunca foi tão fácil criar situações diferentes e interessantes de combate, testar coisas novas e exercitar suas habilidades até aprender a tirar o máximo que o sistema de combate te permite.

Mesmo o problema da inteligência artificial com relação a flechas foi atenuado, com os inimigos partindo para o ataque se forem feridos a uma distância longa. Com o arco e o anel certos, ainda é possível explorar essa falha, mas ela é bem menos sensível do que era no primeiro Dark Souls. Se eu tivesse que apontar dois problemas no combate desse jogo, seriam apenas os agarrões dos inimigos, que conseguem acertar muito mais do que deveriam, o que é um problema até sério, porque geralmente esses ataques causam um dano muito grande.

O outro problema é o fato de que os inimigos conseguem atacar por dentro do inimigo que está na frente deles. Até então, isso não era tão perceptível, mas, como em Dark Souls 2 há muitos grupos de inimigos e é um raciocínio comum querer atraí-los para um corredor e matá-los um por vez, acaba ficando frustrante levar dano do inimigo que está atrás de um outro, e cuja espada passa direto pelo companheiro, só para te acertar.

Assim, Dark Souls 2 é um jogo muito competente no que ele se propõe a fazer, que é criar essas situações de combate. Ele te dá as ferramentas certas, te oferece cenários curiosos e interessantes para travar combates, e os inimigos oferecem desafios diferentes do que se enfrentou até então e, mesmo que o design deles seja semelhante, eles possuem diversidade suficiente para ser necessário estudar estratégias e opções.

É por isso que é tão comum os críticos de Dark Souls 2 falarem que o jogo é bom, mas não é um bom Dark Souls. Não há como negar que ele seja competente, talvez o mais competente da série, mas o fato de que ele destaca o combate e faz com que o resto se submeta a ele acaba fazendo dele uma obra muito menos ambiciosa e interessante do que o resto dos jogos da série.

O resultado dessa autoconsciência de que Dark Souls 2 é um jogo e desse ato de priorizar o aspecto mais fundamental da jogabilidade é que o jogo se torna artificial e estranhamente desencantado, e nada deixa isso mais claro do que a própria história do jogo. Como eu falei, a ideia de que as motivações passadas e futuras do protagonista não são claras sequer a ele mesmo já explicita que o jogo não se importa muito com o universo que ele cria. Mas, a coisa vai muito além, especialmente no tocante ao conceito de ciclos.

Desde o início do jogo, Dark Souls 2 deixa bem claro que se passa no mesmo mundo que seu antecessor, mas muito tempo depois. Nesse meio tempo, a mesma história tende a se repetir inúmeras vezes: o fogo começa a se apagar, a maldição dos mortos-vivos se intensifica, e alguém precisa se oferecer como combustível para que a chama volte ao normal, por apenas um curto tempo que seja. E assim se passam milhares de anos, com as mesmas coisas sempre acontecendo.

Há um grande esforço para simbolizar essa repetição, com direito ao retorno das almas dos principais chefes de Dark Souls atreladas aos principais chefes de Dark Souls 2, mesmo sem uma explicação muito convincente para isso; os quatro reis que supostamente poderiam se oferecer em sacrifício à chama são todos acompanhados por uma mulher criada pela escuridão, embora cada uma delas aja diferentemente em relação a esse sacrifício; muitas das magias e dos itens presentes em Dark Souls reaparecem na sequência, mas sendo atribuídos a outras pessoas, como se o conhecimento original deles tivesse se perdido e eles tivessem que ser reinventados do zero; diversos NPCs falam que Drangleic é só um reino que veio depois de muitos outros surgirem e desaparecerem, etc.

Tudo isso passa uma sensação de inevitabilidade de lutar com o destino, ou melhor, da inutilidade da ação do protagonista, o que fica ainda mais claro quando a gente pensa que o primeiro Dark Souls tinha uma escolha em seu final, e que essa escolha é completamente ignorada em Dark Souls 2. Ou o jogo considera o final de se sacrificar à chama como canônico, o que esvazia as opções do primeiro, ou indica que, mesmo que você tenha deixado a chama morrer, algum outro morto-vivo se sacrificou por ela e você, como senhor da escuridão, não fez nada para impedir.

A ideia da inevitabilidade era tão grande que, em sua versão original, a única opção de final de Dark Souls 2 era se sacrificar pela chama. Na versão Scholar of the first sin, você pode se recusar a isso, mas, em vez do final do senhor da escuridão, a gente tem um discurso vago sobre a busca por uma terceira via que, até onde se sabe, nada no jogo substancia, o que provavelmente indica que é uma busca vã.

Algumas pessoas interpretam esse tom de inevitabilidade do jogo como uma deixa para uma continuação da série e, como se sabe, Dark Souls 3 não demorou muito a ser lançado. Afinal, se há sempre ciclos, há infinitos Dark Souls possíveis. Mas, considerando o quanto esse jogo deixa claro para si mesmo e para o jogador que ele é um jogo, um objeto artificial feito para você se divertir, eu interpreto a ideia dos ciclos mais como uma forma de incorporar a mecânica de New Game Plus à própria história. Afinal, assim que você termina um ciclo, você já pode começar o próximo.

Uma das coisas que mais me faz pensar isso é o fato de que Dark Souls 2 oferece diferenças interessantes quando se passa para um novo New Game Plus, com novos inimigos, itens para comprar e ganhar, ou seja, há um esforço para que o jogador trate essa nova trajetória como igual, mas um pouco diferente, ou seja, um novo ciclo. E, a partir disso, a história do jogo foi repensada para incorporar mais um elemento pertencente à jogabilidade.

E não é só nesse caso que isso acontece: um dos temas mais frequentes no jogo é a ideia de buscar sofrimento. Pelo menos dois personagens afirmam diretamente que isso é essencial para encontrar as respostas que o protagonista procura, se é que ele está mesmo procurando algo. Note que esses personagens não falam em buscar desafio, poder ou conhecimento. Eles falam claramente em sofrimento. Essa ideia de busca a dor tem um paralelo direto com a ideia de que a série é difícil, porque nada mais no universo de Dark Souls justifica esse impulso.

Pelo contrário: morrer no jogo faz você perder suas almas, o que limita seu potencial para deixar seu personagem mais forte e, a cada vez que você morre na forma hollow, você perde mais do seu HP máximo. Ou seja, buscar sofrimento efetivamente limita seu poder, não te torna mais forte. E você só progride no jogo por vencer, e não por sofrer.

Sendo assim, sempre me pareceu que cada fala desse jogo não era direcionada ao morto-vivo circulando por Drangleic, e sim para uma pessoa no mundo real, segurando um controle. Mesmo aqueles itens de Dark Souls que reaparecem na sequência são cheios de comentários que não fazem nenhum sentido para quem não conhece o original, e são decididamente só os desenvolvedores dando uma piscadela aos jogadores fiéis da série.

E assim é Dark Souls 2: um jogo que talvez tenha tomado consciência de si mesmo num nível tal que escolheu abandonar sua imersão e fazer apenas um jogo divertido, com um combate evoluído, mas num mundo decididamente menos interessante, tão desgastado quanto a chama primordial. Em vez de se sacrificar para fazer essa chama brilhar de novo, os desenvolvedores da FROM Software preferiram apelar diretamente ao jogador e criar algo que não existe num mundo paralelo, com significações próprias e ambivalências que te fazem pensar, e sim uma simulação de combate divertida que recomeça toda vez que você liga seu console ou computador e coloca o jogo para rodar.

Talvez isso não seja um problema para aquele jogador que veio atrás da série por conta da lenda de sua dificuldade, dos desafios, da comunidade e das múltiplas opções de build. Mas, certamente resultou num jogo bem distinto dos universos complexos que a série tinha estabelecido até então, e que retornou com toda a força em Bloodborne. E era isso que eu queria dizer sobre Dark Souls 2. Até a próxima análise!