sábado, 18 de novembro de 2017

Teoria: Ludoironia



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje eu resolvi fazer mais um vídeo de teoria. O tema de hoje tem a ver com o último jogo que eu analisei aqui no canal, que foi Dark Souls 2, e também com uma retrospectiva que eu fiz sobre tudo de que eu tratei aqui no canal nesses 5 anos, e sobre as questões mais interessantes e difíceis que eu acredito que os jogos têm enfrentado e que ainda precisam enfrentar.

Talvez a principal delas seja aquilo que eu chamo de Ludoironia. É algo de que eu tratei já em alguns jogos, mas que eu queria destacar como conceito com vocês neste vídeo, até para vocês me dizerem o que acham e me indicarem mais exemplos, caso vocês tenham.

Mas, primeiro, vamos ao conceito. Ironia sempre nos dá a impressão de que quer dizer a prática de dizer uma coisa enquanto se quer dizer outra. É isso que a gente quer dizer quando a gente usa o termo no dia a dia, mas, em certas teorias de arte, quer dizer uma coisa ligeiramente diferente.

Existe um livro muito importante e interessante chamado A teoria do romance, escrito pelo crítico tcheco Georg Lukács, e nele existe uma terminologia muito curiosa chamada “ironia romanesca”, ou seja, uma ironia que faz parte dos livros que se identificam como romances.

No caso, o tema principal de um romance seria discutir um pouco a busca por um sentido da vida e, em muitos casos, essa busca terminaria com uma falta de sentido, ou seja, ela seria falha, e terminaria concluindo que o mundo não faz sentido, não existe uma ordem governando tudo, e não existe um lugar determinado em que uma pessoa precise se encaixar.

Porém, embora ele tematize a falta de sentido, o livro em si tem que fazer sentido; do contrário, ou o público não vai entender, ou a obra de arte vai ficar toda despedaçada, sem uma coesão interna que a torne uma obra de arte interessante e que ressoe com as pessoas que leem. Ou seja, a ironia romanesca é o fato de que um romance tem que ter sentido, mesmo que ele queira falar da falta de sentido.

Bom, feita essa introdução, vamos ao universo dos jogos, que é o que nos interessa aqui. Como a gente já discutiu em outro vídeo, embora a interação não seja monopólio expressivo dos jogos, eles usam a interação como sua ferramenta de expressão mais básica, ou seja, ela é a fundação, a especialidade dos jogos.

E interação, claro, significa que, quando o jogador opera uma ação no jogo, o jogo reage a essa ação de alguma forma, e essa reação provavelmente vai demandar uma nova ação do jogador, à qual o jogo reagirá novamente, e assim combinações múltiplas de experiência vão surgindo. É uma mecânica artística fundada em trocas de ações e informações baseadas num conjunto de regras dado pelo jogo.

Sendo assim, qual seria o equivalente da ironia romanesca nos jogos? Para mim, parece que seria um jogo que tratasse da impossibilidade de ações, da falta de propósito das ações do jogador, mesmo que, nesse processo, o jogador pudesse agir de alguma forma, com o jogo reagindo. Ou seja, é o processo de interagir com um jogo enquanto ele, em sua estrutura fundamental, fala para você que as suas ações são inúteis ou, em última instância, que, por mais que você aja, você está numa situação sem saída, sem liberdade, sem propósito. Isso é o que eu chamo de ludoironia ou ironia dos jogos, roubando um pouco a terminologia da Teoria do romance.

Como eu disse no começo, eu retornei um pouco a esse tema por conta de Dark Souls 2. Sem dar muito spoiler, Dark Souls 2 é um jogo que, desde bem cedo, fala frequentemente da inutilidade das ações de importantes personagens naquele mundo, e inclusive do personagem que você controla. Além do mais, o jogo chega até a apontar que o jogador e o personagem não fazem ideia de por que estão agindo da forma como agem.

Por conta disso, o jogo assume um tom que ultrapassa a melancolia que marcou seu antecessor, e chega num ponto em que o jogador precisa se perguntar qual motivação ele deveria ter naquele mundo além de aproveitar os combates que o jogo oferece. Parece não haver incentivo nenhum à prática de assumir um papel no mundo do jogo, de se envolver de alguma forma.

A moldura da narrativa de Dark Souls 2 é tão voltada para esse sentimento de desolação e desânimo que a primeira interação com um personagem no jogo é um conjunto de pessoas rindo da cara do seu personagem, que busca conseguir uma solução para a maldição que o afeta.

O efeito que isso teve na minha experiência foi me fazer perder o investimento no mundo do jogo. Dark Souls 2 é um jogo muito competente em muitas áreas, mas no quesito de criar o seu mundo, ele acaba sendo frio e indiferente, a ponto de o seu antecessor acabar parecendo um lugar acolhedor. Um lugar cheio de inimigos e em que você não importa muito, mas um lugar em que as pessoas não desdenham de tudo que você faz.

Com isso, eu me perguntei se a ludoironia de Dark Souls 2 não era extrema, num ponto em que o jogador se sentia completamente desinvestido na experiência, desprezado por ela. E, então, eu resolvi trazer de volta alguns exemplos de jogos que tratam isso de formas diferentes e interessantes, e que talvez possam servir de exemplo sobre como se pode harmonizar essa contradição inerente a falar da inutilidade das suas ações num jogo.

Por mais estranho que pareça, eu acredito que o jogo que mais oferece o paralelo mais próximo com Dark Souls 2, mas acertando na criação do seu mundo, é The Stanley Parable. Esse jogo também trata especificamente sobre um ciclo inescapável. Nele o narrador do jogo e o seu protagonista, representando o jogador, lutam incansavelmente para ver quem está com as rédeas da narrativa. E, basta dizer, sem spoilar demais, que a moral da experiência de The Stanley Parable é que o jogador só está livre se ele não jogar. Dentro do jogo, ele segue regras, e ponto.

Mas, num universo tão declaradamente restrito como esse, como The Stanley Parable consegue deixar o jogador interessado e disposto a interagir com o jogo? A resposta é tornar interessantes os fracassos na batalha contra o narrador. No jogo, você pode tentar muitas coisas para escapar às regras e cada uma dessas coisas leva a cenários novos, interessantes e até divertidos, se esse for o seu tipo de humor.

Ou seja, o mundo de The Stanley Parable é absolutamente intransigente, mas essa intransigência se manifesta de formas tão variadas, que acabam o envolvendo o jogador, seja pelo humor, seja pela curiosidade sobre as situações que ainda podem ser descobertas. Em grande medida, é um jogo masoquista, em que você se alegra com ser derrotado, e busca sempre novas formas para isso.

Outro jogo que tentou algo interessante, e foi seguido de diversas formas, foi Gone Home. Nele você controla uma moça tentando descobrir o que aconteceu na casa dos seus pais enquanto você estava fora. Veja bem, você não tenta resolver nada, você só tenta descobrir, entender. Em última instância, o sentimento que mais marca a experiência de Gone Home é justamente esse de estar fora, de ter perdido um momento essencial por conta das escolhas que se fez. A vida é cheia de escolhas e, quando a gente faz uma, deixa, inevitavelmente, algumas coisas para trás.

Essa sensação de ser incapaz de mudar algo, porque esse algo já aconteceu, poderia desmotivar o jogador, e eu acredito que fez muitas pessoas se frustrarem com o jogo, porque esperavam um papel mais ativo na história. Mas, ao mesmo tempo, Gone Home ainda conseguiu manter muitas pessoas investidas, e eu acredito que isso se deve ao fato de que o jogo oferece alguma recompensa ao jogador, mesmo que a recompensa maior, que seria alterar o destino dos personagens, esteja fora de alcance.

Gone Home oferece ao jogador a experiência de entender, de investigar detalhes e, nesse sentido, em vez de interações variadas, o jogo oferece um level design absolutamente crível e cheio de detalhes que envolvem o jogador, e o fazem se sentir um investigador, e aí colher pequenos detalhes, entender melhor a situação da família acaba sendo uma recompensa e um envolvimento em si mesmo. Assim, Gone Home coloca o jogador num mundo em que ele não pode alterar nada, mas ele pode alterar a si, a sua curiosidade, o seu conhecimento. E isso acaba sendo muito engajador.

Vários jogos seguiram a mesma trilha de Gone Home, e evoluíram técnicas que estavam todas juntas nele. What remains of Edith Finch, por exemplo, nos faz reviver os últimos momentos de um personagem de uma forma lúdica. Nós não podemos alterar nada, mas há um prazer na interação por si, uma curiosidade que permite que participar das histórias seja recompensador, e nos oferece uma percepção diferente sobre os personagens e sobre como aquela família vê a morte.

Her Story continua 100% o lado detetive de Gone Home, agora retomando uma história que já se encerrou muitos anos antes da experiência que você está vivendo, mas que se apresenta de forma complexa, requerendo planejamento e lógica da parte do jogador e aí o ato de entender se torna uma recompensa muito interessante, mesmo que a reação inicial do jogador pudesse ser apenas um desprezo por não ser capaz de afetar nada.

Assim, esses três jogos acabam focando muito na ideia de uma interação diferente, uma espécie de recompensa interna. O mundo desses jogos não muda, mas o protagonista e o jogador mudam. E essa mudança é a recompensa do jogo, a força que a experiência traz consigo e que se torna muito marcante.

Uma terceira opção, um pouco mais aberta, é a de Papers, please. Diferentemente desses outros jogos, há diversos fatores que o jogador pode afetar naquele mundo, pelo menos supostamente. É claro que o jogador pode ficar cada vez melhor no trabalho do jogo e realmente dominar as mecânicas, mas é bem claro que o jogo trabalha intensamente para que o jogador falhe. A intenção é que ele falhe, que seja difícil ou até impossível fazer escolhas em condições ideais. Talvez você tenha que separar um casal para não perder o dinheiro para o remédio do seu filho, mas talvez seja tarde para o remédio e o seu filho morra mesmo assim.

Com isso, a recompensa do jogador não está numa saída feliz ou necessariamente recompensadora, mas no sentimento de esforço, de tentar ir o mais longe possível, de se ater mais aos valores que o jogador escolheu, seja manter a família, seja ajudar desconhecidos, seja fazer o máximo para fugir dessa situação toda e ficar em segurança. Não existem situações ideais e certamente haverá sacrifícios no caminho e a ideia é que o jogador sofra as frustrações desse processo.

E essa experiência tão negativa acaba funcionando justamente porque ela passa ao jogador o peso das suas decisões. Ele tem uma ilusão de controle no processo e, portanto, está envolvido, mesmo que a ideia é que ele falhe. Quando ele falha, a sensação é de que a intenção do jogo nunca foi a de que ele vencesse, e passar por isso acaba fornecendo a compreensão das situações-limite que o jogo procura mimetizar.

E, durante tudo isso, as mecânicas do jogo funcionam de forma a quase viciar o jogador no processo. É preciso ter tanta atenção e velocidade que o cérebro quase desliga e o jogador se move num ritmo tal que o ato de jogar se torna prazeroso, mesmo que a experiência final seja voltada para não dar nenhuma alegria.

Um jogo que retomou bastante esse conjunto de propostas foi This war of mine, em que o ato de sobreviver é sofrido e moralmente questionável, mas o jogador tem momentos de alegria no processo, procurando por itens e estratégias para sobreviver, e o propósito não é vencer e causar mudanças significativas, e sim ver até quando se consegue sobreviver. Ou seja, se a moldura narrativa colocar uma situação impossível de início, porém com pontos de envolvimento fortes durante vários momentos imediatos da experiência, a impossibilidade se torna um ponto distante e sai um pouco do horizonte.

E era isso que eu queria dizer sobre esse conceito estranho que eu criei, e chamei de ludoironia, que nada mais é do que construir um jogo, ou seja, uma obra de arte interativa, cuja estrutura é fazer com que as ações do jogador não tenham uma ressonância profunda no universo do jogo. Seria quase como um inverso da tradicional fantasia de poder que tantos e tantos jogos praticam, justamente por ser mais fácil.

Na verdade, quando a gente pensa na história da indústria, a gente nota que há um esforço justamente para aumentar a repercussão das ações do jogador: mais ações possíveis, mais lugares para ir, mais horas de jogo, NPCs que lembram de decisões feitas há muito tempo, pequenas decisões que tomam repercussões imensas, etc. Mas, ao mesmo tempo, também é possível remar contra essa maré e criar jogos em que a própria falta de poder seja o tema, e os resultados ainda podem ser muito poderosos.

Por favor, me diga o que você achou dos exemplos que eu elenquei e se você tem mais algum, e inclusive se você acha que jogos assim são fadados ao fracasso ou não usam a mídia ao máximo. E até uma próxima análise!

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