terça-feira, 28 de novembro de 2017

Bound - Pensando sobre o jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje eu quero falar de Bound, jogo desenvolvido pelo estúdio Plastic e publicado pela Sony em 2016 para o PS4. Bound é um jogo com uma proposta muito interessante, extremamente inovadora e que coloca uma série de desafios. Em alguns deles, o jogo se sai bem; em outros, nem tanto. No centro de Bound está a proposta de usar a dança como a forma de expressão primordial dentro do jogo, o que é algo que, até onde eu sei, nunca foi implementado; acho que o mais próximo que já tivemos são os jogos da série Just dance, em que a proposta é reproduzir o que se vê no jogo, em vez do jogador exprimir algo com a dança.

Eu acredito que colocar a proposta de Bound em prática era uma tarefa dificílima, simplesmente porque as possibilidades de movimentos e combinações que o corpo humano permite é algo que deixaria o jogo extremamente complexo. Bem ou mal, a gente teria que ter consciência de quase todas as articulações do corpo, e isso certamente não é fácil em termos de animação ou detecção de colisão, etc.

Por outro lado, uma proposta que tentasse inverter o princípio de Just dance exigiria tanto um reconhecimento de movimentos muito apurado, quanto um perfil de jogador que, por si só, já fosse bem consciente do significado da dança e dos movimentos possíveis. Em poucas palavras, acho que o caminho para fazer de Bound a experiência a que ele se propunha exigiria ou um jogador com um domínio absurdo dos seus comandos no controle, ou então um jogador com um domínio absurdo do seu corpo. E, claro, nas duas hipóteses nós ainda precisaríamos de ferramentas tecnológicas que não estão à nossa disposição hoje em dia.

Bom, depois de tudo isso que eu disse, você deve estar pensando que eu devo estar colocando mil desculpas de antemão para o jogo, que certamente não entrega nenhuma dessas duas propostas. Talvez eu esteja, mas eu só estou mostrando para vocês o meu raciocínio quando eu ouvi falar do jogo pela primeira vez. E esses desafios imensos colocados a ele não me deixaram derrotista, e sim curioso para ver qual seria o resultado que Bound alcançaria, que meio termo entre a liberdade e complexidade da dança e os limites do game design ele construiria.

Na prática, Bound se concretizou como uma mistura de jogo de exploração e plataforma, em que o jogador controla uma princesa numa espécie de fábula abstrata e psicodélica. Ela recebe a missão da mãe de impedir o avanço de um monstro que está atacando o reino e, então, parte para encontrar meios de confrontar e derrotar o monstro. Mas, eu falo mais sobre isso no final.

Os movimentos da princesa são todos capturados digitalmente de uma bailarina profissional e absolutamente tudo que ela pode fazer é imbuído da técnica da dança. A forma de correr usando apenas a ponta dos pés, os saltos leves, os passos próximos e minimalistas ao andar por um lugar estreito, os saltos apoteóticos, cada pequeno movimento de Bound é imbuído de beleza, e isso já antes de você ter a opção de dançar, ou seja, de realizar alguns movimentos um pouco mais complexos, como piruetas.

Nesse sentido, Bound certamente acertou em cheio em um dos propósitos mais básicos da dança: parar, por um momento, para analisar e viver o nosso corpo mais do que como uma ferramenta de mobilidade, mas também como uma forma de expressão, de autodescoberta. É curioso como a nossa indústria é absolutamente dominada pela tecnologia da captura de movimentos, mas sempre voltada para o movimento mais prosaico, mais cotidiano, e menos para o lúdico, o movimento alternativo, gracioso e cheio de significado.

Certos jogos chegaram a tratar disso sutilmente. Shadow of the Colossus, por exemplo, tem um protagonista que se move de forma ligeiramente desengonçada, o que é uma forma de expressar que ele não se encaixa perfeitamente na missão a que ele se propôs; é uma carga grande demais para ele, o que é, aliás, um tema bem recorrente em jogos dessa equipe que, em seu minimalismo extremo, fez até do movimento uma forma de expressão e construção de personagem.

Bound, por sua vez, procura tirar o movimento do rodapé da experiência e transformar em centro da interação. E, como eu falei, o jogo certamente chama a atenção para como nossos protagonistas se movem de forma padronizada e sem surpresas; o movimento é só uma ferramenta. Porém, depois que a gente reconhece essa inovação, os problemas de Bound começam a surgir.

E o principal é que há limitações demais no projeto de Bound, e isso em dois aspectos. O primeiro é o número ínfimo de movimentos de dança possíveis, ao qual o jogador passa a se habituar muito rápido e, logo, se torna quase tão rotineiro quanto o andar tradicional. Faltam opções de movimento, e talvez até a possibilidade de combinar dois ou três movimentos para obter outros novos, ou conexões que formariam técnicas novas.

Eu falo isso não porque eu acho que o jogo precisa da chamada profundidade de gameplay, e sim porque, quando um jogo chama atenção para um aspecto seu e o coloca no centro, ele precisa oferecer algo que torne esse aspecto relevante e poderoso durante toda a experiência. Não é à toa que muitos jogos procuram oferecer sempre mais atividades; afinal, se o jogador se cansar de uma delas, pode sempre partir para a próxima.

A outra limitação de Bound é como os cenários e a exploração se adaptam aos diferentes movimentos da protagonista. Infelizmente, a detecção de colisão leva frequentemente a problemas para o jogador conseguir se sustentar em certos locais, às vezes é possível ver a personagem escorregando de lugares claramente firmes, etc. Por sorte, quando o jogador falha, o jogo retorna quase que exatamente no último lugar em que era possível se sustentar, mas mesmo assim acaba sendo frustrante.

Essas duas coisas parecem mostrar limitações que são da ordem do orçamento do jogo, são elementos que poderiam ter sido mais desenvolvidos com maior captura de movimentos, maior tecnologia de animação e um maior teste na colisão para tornar a movimentação mais fluida e rica. Mas, para um jogo tão pequeno e experimentalista, certamente não deveria haver muito dinheiro disponível.

Por outro lado, os cenários e a música são estonteantes, cheio de beleza. Embora abstratos, os cenários oferecem uma multiplicidade de cores e formas que envolvem e provocam o jogador de diversas formas, o que torna a experiência visual muito marcante. A trilha sonora, além de muito bem escolhida, sabe também se adaptar a diferentes momentos da experiência e ajuda a despertar os sentimentos pretendidos.

Na história, também, Bound procura sair um pouco da norma, e consegue resultados interessantes. Para começo de conversa, os capítulos da história do jogo podem ser experimentados em ordens variadas, e são todos como que flashes de uma história com significado muito maior do que as metáforas do jogo deixam ver. Acaba ficando a cabo do jogador juntar as peças e estabelecer o significado e os sentimentos que Bound tematiza, seguindo um pouco a técnica de montagem de que eu falei no meu vídeo sobre Braid.

O que a gente encontra por trás dessa fábula toda é uma história sobre problemas familiares que olha para a fragilidade da família não apenas com olhares ressentidos a uma pessoa, mas considerando que pessoas podem ser heróis ou vilões dependendo do momento e do papel que exercem numa relação. Nesse sentido, ter uma estrutura livre e vaga como a de Bound ajuda justamente a ter um panorama mais compreensivo, em que personagens podem exercer papéis radicalmente distintos a depender do momento, o que representa bem relações humanas: nós desempenhamos heróis e vilões em momentos diferentes, e às vezes sem saber.

Uma última coisa que eu queria falar sobre a minha experiência com Bound, mas que não se restringe a ele, é que muitos dos jogos mais alegóricos e abstratos dos últimos tempos têm tido um certo receio de seus temas reais não serem entendidos, e por isso eles acabam trazendo elementos mais diretos que se chocam com a estrutura lúdica que eles construíram até então.

No caso de Bound, que, como eu falei, tematiza relações familiares, há uma série de trechos que expressam cenas com uma família, mesmo que as figuras alegóricas do mundo da princesa fossem capazes de expressar sem problemas o que se pretendia tematizar. Essa é uma coisa que eu tenho visto reaparecer em Papo y Yo, RiME, e agora em Bound. São jogos que trabalham com metáforas como sua estrutura de significação fundamental, mas que, em um momento ou outro, especialmente ao final, resolvem mudar sua significação para explicar seu tema, caso alguém ainda não tenha entendido.

E a verdade é que em muitos casos, o tema é bastante claro, e resolver mudar a estética da experiência para se explicar acaba sendo menos bem realizado do que os jogos que aderem às suas alegorias e confiam no poder de interpretação do jogador, como Journey, Inside, Braid, e vários outros.

De qualquer forma, eu não acho que Bound, RiME ou Papo y Yo são obras fracas por isso, até porque eles estão sustentados na expressão de experiências que são recorrentes, genuínas e que provocam a nossa empatia. É só que, como obras de arte, manter a consistência de seu sistema expressivo é sinônimo de maior força e confiança nesse sistema.

E era isso que eu queria dizer sobre Bound. É um jogo muito interessante pela sua proposta de trazer as potencialidades da dança ao mundo dos jogos e, embora ele tenha acertos, vários entraves técnicos colocam um limite à sua ambição. Além disso, ainda há um deslumbre para os sentidos durante a experiência, e até uma história tocante. Até a próxima análise!

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