Olá! Eu sou o Asa e, como prometido, hoje é dia de
falar de Doki Doki Literature Club!,
jogo desenvolvido por Team Salvato e lançado em setembro deste ano para PC.
Como avisado, eu vou falar de 100% dos spoilers
do jogo, por isso eu recomendei que quem quisesse ler este texto passasse
antes pela experiência do jogo; portanto, você está avisado sobre spoilers.
Doki Doki é, estruturalmente, uma visual novel, ou seja, um jogo centrado
no texto e na leitura, com ocasionais pontos em que o jogador precisa fazer
escolhas que influenciam o rumo da história. Mais especificamente, a estrutura
de Doki Doki é a de um dating sim, ou seja, de um jogo focado
em colocar o jogador no papel de um personagem específico que é cercado por um
monte de outros personagens que acabam se interessando pelo protagonista.
Assim, na prática, é um
tipo de jogo em que o jogador deve fazer escolhas de ações e diálogos para
conseguir se envolver com o personagem por que ele está interessado. É
importante dizer, caso alguém não saiba, que esse tipo de jogo tem exemplares
voltados para moças e para rapazes, e que é algo muito popular no Japão, embora
tenha também seus representantes no Ocidente. Qualquer jogo da série Mass Effect, por exemplo, tem um
componente fortíssimo de dating sim,
embora isso não componha 100% do jogo.
Doki
Doki
segue bastante a moldura de um dating sim
tradicional: o protagonista é um rapaz que não tem muito rumo ou background, o que permite que o jogador
se reflita nesse personagem ou crie alguma outra versão que ele bem entender.
Esse protagonista é um tanto quanto coagido por sua amiga Sayori a se juntar ao
clube de literatura de sua escola, que é formado inteiramente por moças: a
irritadiça Natsuki, a tímida Yuri, a líder Monika e a otimista e desastrada
Sayori.
Obviamente, isso é uma
plataforma para o jogador escolher entre esses estereótipos e estabelecer um
relacionamento, mas é a partir daí que Doki
Doki começa sua subversão do modelo. Como vocês que jogaram sabem, nenhum
final tradicional do jogo é feliz. Pelo contrário: todos terminam com um evento
trágico acontecendo. E todos têm uma coisa em comum: os relacionamentos das
garotas com o protagonista vão desenvolvendo um componente doentio aos poucos,
e fatalmente terminam em tragédia.
Isso cria uma mensagem
magistral nesse jogo, e que comenta muito sobre como o jogador estabelece
relações com personagens num jogo, e sobre como desenvolvedores criam
personagens para interagir com o jogador. As personagens de Doki Doki podem se apresentar como
estereótipos, mas a história pregressa que o jogo oferece a elas acrescenta
elementos que subvertem a característica básica que deveria marcá-las: e se a
moça sempre otimista fosse assim para disfarçar a sua depressão? E se a moça
tímida se afastasse dos outros porque ela tem crises de ansiedade com válvulas
de escape violentas?
Muitas vezes,
desenvolvedores criam personagens que se mostram de forma unilateral ao
jogador, ou seja, o que o jogador viu em poucos minutos é aquilo que ele verá
até o fim da experiência com relação àquele personagem. Isso tem um motivo
bastante óbvio, que é o fato de a maioria dos jogos se apresentar como
altamente dinâmicos, com muitas ações e eventos se passando, o que não dá o
tempo requerido para os personagens terem a intimidade necessária para se
conhecerem de fato, para serem amigos ou construírem uma relação.
É claro que isso não é
exclusivo de jogos. Uma das coisas que eu mais me lembro sobre o filme Constatine, por exemplo, é o fato de
que, apesar de ser protagonizado por um homem e uma mulher, os dois não se
envolverem romanticamente em momento nenhum. E isso me marcou porque é uma
quebra da norma, e que não vale só para filmes de ação, mas também para
animações da Disney, por exemplo, e só recentemente essa constante tem sido
evitada.
Na verdade, em Doki Doki, conforme o jogador se
aproxima do final da experiência, é possível perceber que há outros fatores que
levam esses personagens a um ponto de ruptura, que se encaixa no domínio da
doença, mas, a princípio, é muito surpreendente ver esse outro lado e entender
como isso tem muitas semelhanças com o mundo real. Dilemas reais se apresentam
às vezes, e não têm respostas certas.
Por exemplo, num
determinado momento da minha experiência com Doki Doki, a Sayori se confessa fortemente depressiva, e apaixonada
pelo protagonista. Só que o protagonista que eu criei estava interessado em
outra garota. O que fazer? Será que recusar esse amor não levaria essa pessoa a
uma ação extrema? Será que mentir para agradá-la não pode levar a uma situação
ainda pior?
São questões
impossíveis como essas que o jogo coloca o tempo todo e que, até o jogador ter
100% de entendimento sobre a situação, são sinais apenas de que a gente não
conhece tanto as pessoas assim. Quantas pessoas a gente vê, ou com quem convive,
que escondem dramas, segredos, doenças e a gente só descobre isso quando a
nossa responsabilidade para com elas já é maior do que a gente gostaria de ter,
agora que a gente conhece tudo?
Isso acaba sendo um
exemplo muito interessante de criação de personagens num jogo, e que reflete
imediatamente na forma como o jogador se vale desses personagens num jogo comum
– no caso, como instrumentos para um determinado fim. Um dating sim é um gênero muito específico: o jogador age e fala
visando desenvolver um romance com um personagem.
Mas isso é claramente
simplista demais e não reflete como o mundo funciona. Romances não são
estabelecidos baseados em dizer e fazer o que é mais certo. Aliás, um dos
grandes ressentimentos que existem na nossa sociedade é o de pessoas que sentem
que deveriam receber o afeto da pessoa amada simplesmente porque são boas
pessoas, que dizem e fazem tudo certo e, portanto, mereciam o carinho de quem
desejam.
Mas, a verdade é que as
regras de um relacionamento não têm a ver com quem é melhor ou pior. Às vezes
nós nos relacionamos com quem não nos merece, e às vezes nós não merecemos as
pessoas com quem nos relacionamos. Há fatores demais nas relações amorosas para
ser apenas algo regido pela lei de ação e reação. Doki Doki mostra isso diretamente ao jogador, fazendo com que ele
trabalhe segundo as regras de um dating
sim, mas obtendo resultados cada vez mais desastrosos.
A forma como o jogador
interage com as garotas é por meio de seus poemas. Para criar um, é preciso
usar algumas palavras-chave que o jogo oferece, e cada palavra está associada
mais ao estilo de uma das colegas de clube. Uma pode gostar de palavras mais
simples, outra, de termos mais metafóricos e difíceis. Ao levar seu poema ao
clube, as garotas reagem ao seu trabalho e você pode se afastar ou se aproximar
delas baseado nessa reação, o que, aliás, é uma mecânica bem interessante,
mesmo que simples.
O que o jogador não
sabe, porém, é que seduzi-las sem conhecê-las pode colocar o protagonista e as
garotas em uma série de riscos, já que a saúde mental delas é extremamente
instável. Então, em grande medida, a instrumentalização desses personagens
acaba gerando repercussões que o jogador não espera, e acaba por fazê-lo
refletir: afinal, é justo tratar uma pessoa como um objeto, um meio para obter
um fim? Quem é essa pessoa? Qual será o efeito da minha presença na vida dela?
Nos dias de hoje, a
gente vive um processo de instrumentalização do ser humano. Relacionamentos
casuais e de interesse são coisas bastante comuns e, em grande medida, eles são
uma conquista do mundo moderno. Porém, o que para uma pessoa pode ser um jogo
de sedução com data de validade, para outra, pode ser a chance de um romance
como ela sempre sonhou. E esse tipo de discrepância pode gerar sérias
consequências.
Doki
Doki
apresenta essa questão por comentar justamente como, no mundo de um dating sim, e até da maioria dos jogos,
as coisas são inteiramente voltadas para o jogador. Ele é o centro, ele é o
foco, ele é o objeto de interesse e desejo de todos ali. Mas, em Doki Doki, esse centralismo faz todas as
personagens se apaixonarem pelo protagonista, o que faz todas ultrapassarem o
limite da loucura, especialmente a presidente do clube, Monika.
Quem terminou o jogo
sabe que a Monika tem um domínio sobre a programação do jogo, e é ela quem
exagera certas características nas outras meninas, levando-as à morte. Tudo
isso para tentar fazer com que o jogador se afaste das outras e dê atenção só a
ela, Monika. Ela é a última faceta que o jogo apresenta: a de alguém que rompe
o limite da violência contra si e parte para a violência contra outros, sendo
esses outros totalmente inocentes. Ela usa a inevitabilidade de todas as
meninas se apaixonarem pelo protagonista e faz essa paixão alcançar níveis
catastróficos, sendo que a paixão dela mesma já alcançou esse nível há muito
tempo.
Quando ela finalmente
vence e prende o jogador para si, só resta ao jogador jogá-la fora, desfazer-se
dela para se proteger, talvez o último movimento de usar um personagem como
objeto e encerrar esse ciclo. Mas, ao final, depois de se livrar da Monika, as
coisas ainda não são tão simples quanto o jogador imagina que serão.
Dessa forma, o jogo
questiona, pela sua estrutura baseada em escolhas e romances, a forma como nós
tratamos personagens de jogo como objetos, racionalizamos nossas relações com
eles, olhamos para eles como meios para um fim, e isso, além de ser desumanizador
para eles, é também muito perigoso para a nossa mente. Em grande medida, Doki Doki é como uma versão visual novel de Undertale, um jogo que luta para expor a humanidade de personagens
de um jogo, na esperança de que talvez nós vejamos as pessoas reais menos como
personagens, e mais como seres humanos.
Por fim, vale dizer que
existe um final bom em Doki Doki, que
requer que o jogador tenha passado por todas as histórias das meninas e tentado
se relacionar com elas da melhor forma possível. Ao contrário do que certos
jogos oferecem quando há finais assim, o protagonista não fica com todas as
garotas. Ao final, a Sayori apenas reconhece seu esforço, agradece e se
despede, porque assim se encerra o ciclo de objetificação. Ela agradece por
você ter interagido com elas, ter tentado se conectar, mas a verdade é que a
própria estrutura do jogo não vai levar ninguém a nenhuma conexão real. Por
isso, ele se encerra. O único jeito de vencer é não jogar. Ou, como a Monika
diz ao final, não há felicidade naquele mundo.
E era isso que eu
queria dizer sobre Doki Doki Literature
Club!. É um jogo muito interessante, que questiona o centralismo do jogador
no mundo em que habita, e que mostra que, quanto maior é este centralismo, maior
é a tendência a fazer dos outros personagens apenas ferramentas, elementos do
jogo que carregam uma função, mas não uma personalidade. Até a próxima análise!
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