sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Teoria: Consequências do centralismo das franquias



Olá! Eu sou o Asa e hoje eu quero discutir uma questão sobre a qual eu venho me questionando há muito tempo, e que gera muita discussão dentro da indústria de entretenimento contemporâneo. Como você já sabe por ler o nome do post, o tema é a centralização da indústria em franquias.

Quem acompanha a indústria de entretenimento contemporânea sabe que, especialmente nas artes que envolvem maior investimento de capital, há uma predominância crescente do uso de franquias, ou propriedades intelectuais, em oposição a criações novas. O cinema tradicional hoje gira muito em torno de super-heróis, que vêm dos quadrinhos e são muito antigos; os últimos dez anos têm sido marcados pela elaboração de sequências de diversos filmes dos anos 80; e mesmo seriados têm começado a reproduzir esse tipo de fenômeno.

Quem está familiarizado com a indústria de jogos, por sua vez, conhece esse fenômeno ainda mais intimamente, já que, quase que desde o início da indústria moderna de jogos, é comum ver empresas retomarem fórmulas e séries de sucesso muitas vezes, mesmo ao longo de várias décadas. É claro que os exemplos mais clássicos são os da Nintendo, com séries que remontam ao começo dos anos 80. O primeiro jogo com Mario no título, por exemplo, vai completar 35 anos agora em 2018. Desde então, já são dezenas de jogos que levam o nome do encanador no título.

Há, claro, inúmeros outros, como Zelda, Sonic, Final Fantasy, Tetris, Dragon Quest, Fallout, Street Fighter, Civilization, Gran Turismo, e esses eu estou citando só de cabeça, tentando pegar um ou dois de cada gênero. Há, também, aquelas franquias novas que, pela quantidade de lançamentos, se tornaram tradicionais muito mais rapidamente, como Call of Duty, Assassin’s Creed, ou os jogos de esporte da EA, que são uma espécie de tradição anual com a qual todos na indústria já estão mais ou menos familiarizados.

Como eu disse, embora esse fenômeno seja geral no mundo do entretenimento, ele é excepcionalmente familiar aos jogos, e cabe entender por quê. O motivo mais frequentemente apontado é que, por ser uma mídia interativa, jogos são marcados mais por sistemas do que por narrativas, embora isso fosse mais marcante no tempo de formação da indústria do que é hoje.

Assim, por exemplo, um jogo como Super Mario Bros. pode receber uma sequência sem problemas, porque a história nunca foi o foco e, por ser bem simples, ela até pode ser repetida sem estranhamento. A proposta acaba sendo menos a expansão do mundo do jogo, e mais uma extensão do playground para certas mecânicas.

Eu digo isso pensando apenas numa sequência direta, mas, ainda no caso de Mario, a gente pode ver o prolongamento do conceito de franquia para algo mais geral, um certo padrão de qualidade, um certo tom. Jogos dessa série já assumiram diversos gêneros, mas eles são marcados por diversos personagens, por um tom mais ou menos geral, sempre buscando algo mais ou menos consistente. A gente sabe que um jogo do Mario vai ter mecânicas fáceis de aprender, que vai ser focado num sentimento de satisfação quase instantânea, advindo de mecânicas que se comportam bem e oferecem resultados a todos os tipos de jogadores.

Porém, quanto mais uma franquia se expande, mais é difícil mantê-la coesa e, neste ponto, começam a surgir as questões mais interessantes do ponto de vista de um debate crítico. Toda vez que um novo jogo de uma série é lançado, quem está familiarizado com essa franquia acaba mais ou menos discutindo a questão de o quanto esse novo título está próximo ou distante dos jogos anteriores e do que seria, supostamente, a essência dessa propriedade intelectual.

Como todo debate crítico, é preciso assumir um ponto de vista bem definido, e isso vai gerar problemas com pessoas que preferem abraçar a novidade ou a tradição, especialmente quando a gente fala de obras de arte nas quais nós temos algum investimento emocional. Considerando isso, eu gostaria de fazer alguns apontamentos gerais importantes, mas que são mais pressupostos para futuros debates do que algo que mereça muita atenção em si. De qualquer forma, eu gostaria também de ouvir a opinião de vocês sobre eles.

A melhor forma de começar é tratando da relação entre o uso de franquias e a tradição. Existe uma razão muito específica para as franquias estarem dominando a indústria do entretenimento hoje: elas atraem a atenção dos fãs fiéis e até daqueles que conhecem a série apenas por nome. Ou seja, criar uma obra numa franquia é já começar com pessoas que vão ativamente divulgar sua obra sem precisar ser convencidas, vão discutir, conversar, expandir o espaço que a sua obra ocupa no debate público.

Quando se cria um filme de ficção científica a partir do zero, por exemplo, é preciso criar um trailer que pareça muito interessante, para assim as pessoas discutirem e se interessarem. Agora, basta uma menção de que se está fazendo um novo Blade Runner para fóruns no mundo todo se inundarem com questões, desapontamentos e esperanças.

Ou seja, retomar um nome tradicional é uma estratégia fundamental para tornar o investimento na nova obra algo mais seguro, porque já há divulgação e investimento emocional garantidos. Além disso, é comum que uma empresa dê preferência a fortalecer suas marcas, aumentar sua divulgação e o renome de suas propriedades. Ou seja, se uma empresa faz um FPS, por exemplo, e ele é bem recebido, ela pode partir para uma sequência; se essa sequência for bem recebida também, essa série se tornou um sinônimo de excelência e, com isso, um terceiro FPS vai fazer ainda mais sucesso, pelo simples renome estabelecido pelos dois primeiros jogos.

Com tudo isso, eu quero dizer que a adoção e o investimento em franquias é fato constante hoje e advém, sobretudo, do lado econômico do mercado de jogos, filmes e séries. Porém, há um problema inerente a esse processo: fãs possuem um investimento emocional numa franquia e, por isso, além de terem energia para divulgar e gastar, eles também têm expectativas com as quais as empresas precisam lidar.

E a verdade é que não há um jeito correto de lidar com elas, porque fãs de uma franquia têm ideias diferentes do que ela representa, do que é essencial para ela, e de para onde ela deve ir em seguida. Nesse sentido, geralmente, uma obra bem-sucedida acaba sendo aquela que apresenta uma chamada curva-padrão, ou seja: a maioria dos fãs e demais pessoas que tiveram contato com a obra ficaram felizes satisfeitas, embora haja tanto uma minoria que detestou as mudanças implementadas, quanto uma minoria que achou que as mudanças foram insuficientes.

E talvez o mais importante é que nenhum desses três grupos está necessariamente errado. Conforme uma franquia se expande, ela deixa de ser uma coisa só, e vai se tornando várias, adquirindo diferentes significados para pessoas diferentes. Uma coisa que sempre me incomodou em seriados, por exemplo, foi o fato de que, quando eles fazem sucesso, eles acabam perdendo a oportunidade de se encerrar dentro do seu plano original, e acabam se estendendo por várias temporadas extras, o que muitas vezes acaba descaracterizando os seriados em si.

Isso é uma das grandes questões do mundo do entretenimento hoje, porque nós estamos acostumados a ver a arte como fruto do trabalho de indivíduos com uma determinada visão, mas as franquias hoje contam com roteiristas diferentes, diretores diferentes, dedicando-se a gêneros e públicos diferentes.

Muitas das discussões tradicionais sobre a possibilidade de interpretar obras realizadas por uma equipe grande giram em torno da ideia de que a responsabilidade pelas decisões acaba recaindo sobre poucas pessoas, como o diretor do projeto. Porém, uma franquia que passa por diversas equipes acaba deixando cada título sob responsabilidade de uma equipe diferente, o que inviabiliza uma interpretação geral para a franquia. E mesmo quando há a possibilidade de enxergar traços gerais, eles são mais voltados para um tom e para algumas propostas mais amplas, como acontece com o exemplo que eu dei sobre a Nintendo e o Mario no começo.

Nesse processo, quem fica na pior posição são os próprios artistas, que precisam o tempo todo identificar quais são os valores essenciais para o público dentro de uma determinada série, e a partir disso tentar criar algo que seja, simultaneamente, diferente do original, mas ainda detentor de suas características mais importantes. E certamente esta não é uma posição que oferece muita liberdade.

Na minha opinião, a indústria está chegando a um ponto em que franquias já não significam quase nada, e a melhor forma de abordá-las é considerando cada título independentemente, a não ser que ele insista em contar uma história diretamente conectada a outro jogo. Uma comparação com os jogos anteriores acaba sendo inevitável, mas hoje me parece que essas comparações tendem a gerar apenas frustração, seja por notar uma repetição excessiva dos mesmos princípios, seja por fugir aos elementos básicos dos originais. A possibilidade de um sentido geral e autoral no mundo de hoje parece comprometida no geral e, esse processo coloca em risco a nossa recepção das obras individuais.

Talvez a melhor forma de abordar a questão seja como acontece com as HQs: existem ciclos que são marcados por determinadas abordagens, sejam estéticas, sejam em termos de enredo. Um personagem como o Batman, por exemplo, protagoniza histórias com todo tipo de tom, sejam as mais leves dos primeiros tempos, sejam as mais pesadas, como as escritas pelo Frank Miller, Allan Moore ou Grant Morrison.

No geral, escrever uma HQ do Batman significa apenas um conjunto de personagens mais ou menos fixo, mas o tom e o mundo construídos acabam variando drasticamente. Se passarmos aos jogos, a gente também tem que pensar nas mudanças possíveis em termos de gameplay, e aí a variação possível acaba sendo gigantesca, a ponto de a gente se perguntar qual o propósito de tentar enxergar um todo na trajetória de uma franquia.

Na verdade, eu acredito que é preciso confrontar o fato de que a indústria do entretenimento continua crescendo e obras amadas acabam se tornando muito menos um patrimônio intelectual de quem teve contato com ela e mais uma propriedade intelectual de uma empresa. Com isso, cria-se um confronto entre o esforço humanizador do público, que procura identificar sentidos e mensagens nas obras que consomem, e um esforço mercantilizador da empresa, que vê essas mesmas obras como tijolos na construção de uma grande marca, e não necessariamente de uma obra.

Eu me lembro, lá no começo do canal, que, quando eu discuti se jogos deveriam ser considerados arte, eu comentei um pouco o argumento de que a arte sempre esteve envolvida com o dinheiro, e por isso a faceta dos negócios não seria impedimento para um jogo ser arte. Mas, conforme propriedades artísticas vão sendo detidas mais e mais por grandes corporações, talvez seja o caso de, não necessariamente deixar de tratar as grandes franquias como arte, mas de entender que uma parcela preciosa da integridade artística delas é sacrificada conforme a indústria cultural se expande. Pelo menos os projetos menores continuam sendo mais livres, e vez por outra a gente encontra uma série que ainda tem uma assinatura marcante.

E você? O que acha? É ainda produtivo tentar enxergar e interpretar um jogo à luz dos seus antecessores? A indústria liga para uma coesão nas suas franquias? Ela deveria ligar? Por favor, me diga a sua opinião nos comentários e até uma próxima análise!

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