quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Virginia - Pensando sobre o jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje eu vou falar de Virginia, jogo desenvolvido pelo estúdio Variable State e lançado para PC, PS4 e Xbox One em 2016. Virginia é um jogo bastante interessante, que procura trabalhar profundamente estratégias típicas de montagem e do cinema para criar uma estética nova no mundo dos jogos, embora esse propósito nem sempre seja alcançado. A verdade é que talvez Virginia seja um dos casos de jogos um pouco ambiciosos demais, se é que isso é possível. Vamos tratar disso por partes.

A trama de Virginia é centrada na jovem agente do FBI Anne Tarver, que recebe a missão de se tornar parceira da agente Maria Halperin na busca pelo menino desaparecido Lucas Fairfax. Porém, achar o rapaz está em segundo plano, já que a missão verdadeira de Tarver é investigar o comportamento da sua nova parceira. Eu imagino que quem assistiu ao começo de Arquivo X já reconheceu bastante a premissa.

Em termos de gameplay, Virginia se apresenta como um jogo de aventura com muito pouca interação, em que o jogador pode apenas explorar os cenários e interagir com um ou outro objeto. Uma coisa interessante em termos de mecânicas é que o jogo dá sinais de que é possível interagir com um objeto mesmo que ele esteja distante, mudando o sinal do cursor que fica no centro da tela. Se você aponta para objetos que não têm interação possível, ele permanece como um ponto; se você aponta para algo com que é possível interagir, o cursor vira uma circunferência. Assim, evita-se uma exploração longa que não gera fruto algum.

Porém, a simplicidade de Virginia acaba quando tratamos de gameplay e premissa, porque daí em diante as coisas começam a ficar muito mais complicadas do que se espera. Quando o jogador finaliza Virginia, há uma mensagem reconhecendo a influência do jogo Thirty flights of loving, de que eu já falei aqui faz tempo. E, realmente, há uma série de semelhanças estéticas entre os dois jogos, mas algumas lições de Thirty flights parecem escapar a Virginia.

Como Thirty flights, Virginia também se baseia na estética de montagem e outras técnicas de cinema. É normal que as cenas não possuam transições que permitam ao jogador criar uma narrativa simples em sua mente; é necessário que o jogador interprete o lugar de cada cena no todo da experiência, inclusive fazendo a distinção entre o que é sonho ou alucinação e o que se passa realmente naquele mundo.

Porém, apesar de sua estrutura inovadora, Thirty flights é um jogo muito contido, com uma experiência que dura apenas de 10 a 15 minutos, o que permite ao jogador repetir diversas vezes até entender onde cada elemento se encaixa, e até possibilitando que saltos lógicos aconteçam com um certo nível de segurança, já que não é preciso ir tão longe, pois a história é muito contida, apesar de vaga.

Virginia multiplica a duração de Thirty flights pelo menos umas 6 ou 7 vezes, e isso tem seu componente de riscos e problemas. O principal, é claro, é que, aumentando o escopo da história, aumentam os elementos que o jogador deve interpretar e ligar de forma lógica. Além disso, aumentam os frequentes cortes entre uma cena e outra, o que, numa obra mais longa, acaba se tornando muito mais agressivo do que a experiência de Thirty flights conseguiu implementar.

Ao mesmo tempo, Virginia também estende momentos em que nada muito importante acontece, como alguns trechos de caminhada, ou almoços no restaurante da cidade. Isso dá ao jogo uma sensação estranhamente desbalanceada, como se ele cortasse momentos de uma forma muito brusca, ao mesmo tempo em que estendesse outros momentos de uma forma desnecessária.

Thirty flights of loving é uma experiência que surgiu do esforço máximo de cortar absolutamente tudo que era desnecessário para contar a história. Cada pequena cena tem um significado que permite ao jogador construir uma narrativa em sua cabeça, o que acaba dando o efeito esperado ao final, que é uma obra potente por si mesma, mas também que ganha muito com o trabalho interpretativo do jogador. Virginia, em contrapartida, pareceu um pouco preocupado demais com criar algo com a mesma duração de um filme, e que por isso sofre com uma construção desbalanceada, com algumas cenas como que faltando, enquanto outras são quase vazias.

Esse efeito se complica ainda mais quando a gente pensa no caráter altamente alegórico que Virginia procura implementar, e que se une fortemente com os cortes abruptos para deixar o jogador no limite da incompreensão. Só para encerrar as comparações, Thirty flights of loving propõe uma história bem simples e direta, embora não seja implementada da forma mais direta. Assim, o jogador tem uma fundação sólida nos seus palpites, e acaba sendo mais fácil criar uma interpretação segura.

Virginia busca a alegoria e o sonho muito mais do que seria de se esperar. Certas imagens no jogo acabam funcionando como temas recorrentes, como um pássaro vermelho ou um búfalo, que mais ou menos representam a fragilidade e beleza de certos personagens frente ao mundo. Mas, essas imagens pertencem ao mundo dos sonhos, embora frequentemente apareçam em momentos em que, até este ponto, pareciam fundados na realidade, o que torna a experiência frequentemente confusa.

Se Thirty flights of loving é a influência direta de Virginia no mundo dos jogos, a obra do diretor David Lynch é a influência no mundo do cinema. Filmes como Veludo Azul, Cidade dos sonhos e até uma série como Twin Peaks revelam o esforço para criar um mundo em que alegorias ingressam no mundo real, e em que a diferença entre alucinação e sonho pode ser muito pequena. Porém, enquanto os filmes de Lynch são muito mais coesos num sentido narrativo, geralmente seguindo numa linha reta e num ritmo que parece realista, apesar dos personagens e figuras não realistas, Virginia soma essa estética aos cortes constantes, o que torna a experiência mais confusa e menos confortável para o jogador apreciar.

Foi por isso que eu disse, no começo, que Virginia é provavelmente um jogo que sofre por sua grande ambição. O principal esforço do jogo era transportar, de um jeito inteligente, a estética dos filmes para um jogo, porém há um esforço para transportar o máximo de técnicas fílmicas não convencionais, o que torna Virginia um jogo que, muitas vezes, faz o jogador ficar mais confuso do que deveria.

E, na verdade, a mensagem do jogo sequer é muito complexa, embora seja interessante. O tema principal de Virginia é o da luta de personagens oprimidos por um mundo que os vê com desconfiança e desprezo. Não é à toa que as duas protagonistas são mulheres negras, atuando numa área em que essas duas características não são tão comuns. Muitas das alegorias do jogo simbolizam justamente os sacrifícios necessários a esses personagens para conseguir o que outros já conseguiram mais facilmente.

Além disso, o jogo procura estabelecer uma simpatia pelas personagens femininas daquele mundo, que são silenciosas e sutis, enquanto a maioria dos homens representa figuras de poder que forçam a opressão e o sacrifício de outros personagens. Sendo assim, é um jogo sobre dinâmicas raciais e de gênero, mas que enterra muito uma discussão interessante num aglomerado de técnicas que dificultam sua compreensão e acabam fazendo com que o jogador passe muito mais tempo tentando entender qual o seu tema, do que tentando entender a complexidade do seu tema.

E era isso que eu queria dizer sobre Virginia. É um jogo bem interessante, muito bem intencionado, seja na sua mensagem social, seja nos seus esforços estéticos, com uma trilha sonora muito boa e com um visual simples, porém belo, e que contém cenas isoladas poderosas, mas que é uma vítima de uma ambição tão grande, que coloca muitos dos seus esforços a perder. Bom fim de ano e até uma próxima análise!

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Doki Doki Literature Club! - Pensando sobre o jogo



Olá! Eu sou o Asa e, como prometido, hoje é dia de falar de Doki Doki Literature Club!, jogo desenvolvido por Team Salvato e lançado em setembro deste ano para PC. Como avisado, eu vou falar de 100% dos spoilers do jogo, por isso eu recomendei que quem quisesse ler este texto passasse antes pela experiência do jogo; portanto, você está avisado sobre spoilers.

Doki Doki é, estruturalmente, uma visual novel, ou seja, um jogo centrado no texto e na leitura, com ocasionais pontos em que o jogador precisa fazer escolhas que influenciam o rumo da história. Mais especificamente, a estrutura de Doki Doki é a de um dating sim, ou seja, de um jogo focado em colocar o jogador no papel de um personagem específico que é cercado por um monte de outros personagens que acabam se interessando pelo protagonista.

Assim, na prática, é um tipo de jogo em que o jogador deve fazer escolhas de ações e diálogos para conseguir se envolver com o personagem por que ele está interessado. É importante dizer, caso alguém não saiba, que esse tipo de jogo tem exemplares voltados para moças e para rapazes, e que é algo muito popular no Japão, embora tenha também seus representantes no Ocidente. Qualquer jogo da série Mass Effect, por exemplo, tem um componente fortíssimo de dating sim, embora isso não componha 100% do jogo.

Doki Doki segue bastante a moldura de um dating sim tradicional: o protagonista é um rapaz que não tem muito rumo ou background, o que permite que o jogador se reflita nesse personagem ou crie alguma outra versão que ele bem entender. Esse protagonista é um tanto quanto coagido por sua amiga Sayori a se juntar ao clube de literatura de sua escola, que é formado inteiramente por moças: a irritadiça Natsuki, a tímida Yuri, a líder Monika e a otimista e desastrada Sayori.

Obviamente, isso é uma plataforma para o jogador escolher entre esses estereótipos e estabelecer um relacionamento, mas é a partir daí que Doki Doki começa sua subversão do modelo. Como vocês que jogaram sabem, nenhum final tradicional do jogo é feliz. Pelo contrário: todos terminam com um evento trágico acontecendo. E todos têm uma coisa em comum: os relacionamentos das garotas com o protagonista vão desenvolvendo um componente doentio aos poucos, e fatalmente terminam em tragédia.

Isso cria uma mensagem magistral nesse jogo, e que comenta muito sobre como o jogador estabelece relações com personagens num jogo, e sobre como desenvolvedores criam personagens para interagir com o jogador. As personagens de Doki Doki podem se apresentar como estereótipos, mas a história pregressa que o jogo oferece a elas acrescenta elementos que subvertem a característica básica que deveria marcá-las: e se a moça sempre otimista fosse assim para disfarçar a sua depressão? E se a moça tímida se afastasse dos outros porque ela tem crises de ansiedade com válvulas de escape violentas?

Muitas vezes, desenvolvedores criam personagens que se mostram de forma unilateral ao jogador, ou seja, o que o jogador viu em poucos minutos é aquilo que ele verá até o fim da experiência com relação àquele personagem. Isso tem um motivo bastante óbvio, que é o fato de a maioria dos jogos se apresentar como altamente dinâmicos, com muitas ações e eventos se passando, o que não dá o tempo requerido para os personagens terem a intimidade necessária para se conhecerem de fato, para serem amigos ou construírem uma relação.

É claro que isso não é exclusivo de jogos. Uma das coisas que eu mais me lembro sobre o filme Constatine, por exemplo, é o fato de que, apesar de ser protagonizado por um homem e uma mulher, os dois não se envolverem romanticamente em momento nenhum. E isso me marcou porque é uma quebra da norma, e que não vale só para filmes de ação, mas também para animações da Disney, por exemplo, e só recentemente essa constante tem sido evitada.

Na verdade, em Doki Doki, conforme o jogador se aproxima do final da experiência, é possível perceber que há outros fatores que levam esses personagens a um ponto de ruptura, que se encaixa no domínio da doença, mas, a princípio, é muito surpreendente ver esse outro lado e entender como isso tem muitas semelhanças com o mundo real. Dilemas reais se apresentam às vezes, e não têm respostas certas.

Por exemplo, num determinado momento da minha experiência com Doki Doki, a Sayori se confessa fortemente depressiva, e apaixonada pelo protagonista. Só que o protagonista que eu criei estava interessado em outra garota. O que fazer? Será que recusar esse amor não levaria essa pessoa a uma ação extrema? Será que mentir para agradá-la não pode levar a uma situação ainda pior?

São questões impossíveis como essas que o jogo coloca o tempo todo e que, até o jogador ter 100% de entendimento sobre a situação, são sinais apenas de que a gente não conhece tanto as pessoas assim. Quantas pessoas a gente vê, ou com quem convive, que escondem dramas, segredos, doenças e a gente só descobre isso quando a nossa responsabilidade para com elas já é maior do que a gente gostaria de ter, agora que a gente conhece tudo?

Isso acaba sendo um exemplo muito interessante de criação de personagens num jogo, e que reflete imediatamente na forma como o jogador se vale desses personagens num jogo comum – no caso, como instrumentos para um determinado fim. Um dating sim é um gênero muito específico: o jogador age e fala visando desenvolver um romance com um personagem.

Mas isso é claramente simplista demais e não reflete como o mundo funciona. Romances não são estabelecidos baseados em dizer e fazer o que é mais certo. Aliás, um dos grandes ressentimentos que existem na nossa sociedade é o de pessoas que sentem que deveriam receber o afeto da pessoa amada simplesmente porque são boas pessoas, que dizem e fazem tudo certo e, portanto, mereciam o carinho de quem desejam.

Mas, a verdade é que as regras de um relacionamento não têm a ver com quem é melhor ou pior. Às vezes nós nos relacionamos com quem não nos merece, e às vezes nós não merecemos as pessoas com quem nos relacionamos. Há fatores demais nas relações amorosas para ser apenas algo regido pela lei de ação e reação. Doki Doki mostra isso diretamente ao jogador, fazendo com que ele trabalhe segundo as regras de um dating sim, mas obtendo resultados cada vez mais desastrosos.

A forma como o jogador interage com as garotas é por meio de seus poemas. Para criar um, é preciso usar algumas palavras-chave que o jogo oferece, e cada palavra está associada mais ao estilo de uma das colegas de clube. Uma pode gostar de palavras mais simples, outra, de termos mais metafóricos e difíceis. Ao levar seu poema ao clube, as garotas reagem ao seu trabalho e você pode se afastar ou se aproximar delas baseado nessa reação, o que, aliás, é uma mecânica bem interessante, mesmo que simples.

O que o jogador não sabe, porém, é que seduzi-las sem conhecê-las pode colocar o protagonista e as garotas em uma série de riscos, já que a saúde mental delas é extremamente instável. Então, em grande medida, a instrumentalização desses personagens acaba gerando repercussões que o jogador não espera, e acaba por fazê-lo refletir: afinal, é justo tratar uma pessoa como um objeto, um meio para obter um fim? Quem é essa pessoa? Qual será o efeito da minha presença na vida dela?

Nos dias de hoje, a gente vive um processo de instrumentalização do ser humano. Relacionamentos casuais e de interesse são coisas bastante comuns e, em grande medida, eles são uma conquista do mundo moderno. Porém, o que para uma pessoa pode ser um jogo de sedução com data de validade, para outra, pode ser a chance de um romance como ela sempre sonhou. E esse tipo de discrepância pode gerar sérias consequências.

Doki Doki apresenta essa questão por comentar justamente como, no mundo de um dating sim, e até da maioria dos jogos, as coisas são inteiramente voltadas para o jogador. Ele é o centro, ele é o foco, ele é o objeto de interesse e desejo de todos ali. Mas, em Doki Doki, esse centralismo faz todas as personagens se apaixonarem pelo protagonista, o que faz todas ultrapassarem o limite da loucura, especialmente a presidente do clube, Monika.

Quem terminou o jogo sabe que a Monika tem um domínio sobre a programação do jogo, e é ela quem exagera certas características nas outras meninas, levando-as à morte. Tudo isso para tentar fazer com que o jogador se afaste das outras e dê atenção só a ela, Monika. Ela é a última faceta que o jogo apresenta: a de alguém que rompe o limite da violência contra si e parte para a violência contra outros, sendo esses outros totalmente inocentes. Ela usa a inevitabilidade de todas as meninas se apaixonarem pelo protagonista e faz essa paixão alcançar níveis catastróficos, sendo que a paixão dela mesma já alcançou esse nível há muito tempo.

Quando ela finalmente vence e prende o jogador para si, só resta ao jogador jogá-la fora, desfazer-se dela para se proteger, talvez o último movimento de usar um personagem como objeto e encerrar esse ciclo. Mas, ao final, depois de se livrar da Monika, as coisas ainda não são tão simples quanto o jogador imagina que serão.

Dessa forma, o jogo questiona, pela sua estrutura baseada em escolhas e romances, a forma como nós tratamos personagens de jogo como objetos, racionalizamos nossas relações com eles, olhamos para eles como meios para um fim, e isso, além de ser desumanizador para eles, é também muito perigoso para a nossa mente. Em grande medida, Doki Doki é como uma versão visual novel de Undertale, um jogo que luta para expor a humanidade de personagens de um jogo, na esperança de que talvez nós vejamos as pessoas reais menos como personagens, e mais como seres humanos.

Por fim, vale dizer que existe um final bom em Doki Doki, que requer que o jogador tenha passado por todas as histórias das meninas e tentado se relacionar com elas da melhor forma possível. Ao contrário do que certos jogos oferecem quando há finais assim, o protagonista não fica com todas as garotas. Ao final, a Sayori apenas reconhece seu esforço, agradece e se despede, porque assim se encerra o ciclo de objetificação. Ela agradece por você ter interagido com elas, ter tentado se conectar, mas a verdade é que a própria estrutura do jogo não vai levar ninguém a nenhuma conexão real. Por isso, ele se encerra. O único jeito de vencer é não jogar. Ou, como a Monika diz ao final, não há felicidade naquele mundo.

E era isso que eu queria dizer sobre Doki Doki Literature Club!. É um jogo muito interessante, que questiona o centralismo do jogador no mundo em que habita, e que mostra que, quanto maior é este centralismo, maior é a tendência a fazer dos outros personagens apenas ferramentas, elementos do jogo que carregam uma função, mas não uma personalidade. Até a próxima análise!

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Bound - Pensando sobre o jogo



Olá! Eu sou o Asa e hoje eu quero falar de Bound, jogo desenvolvido pelo estúdio Plastic e publicado pela Sony em 2016 para o PS4. Bound é um jogo com uma proposta muito interessante, extremamente inovadora e que coloca uma série de desafios. Em alguns deles, o jogo se sai bem; em outros, nem tanto. No centro de Bound está a proposta de usar a dança como a forma de expressão primordial dentro do jogo, o que é algo que, até onde eu sei, nunca foi implementado; acho que o mais próximo que já tivemos são os jogos da série Just dance, em que a proposta é reproduzir o que se vê no jogo, em vez do jogador exprimir algo com a dança.

Eu acredito que colocar a proposta de Bound em prática era uma tarefa dificílima, simplesmente porque as possibilidades de movimentos e combinações que o corpo humano permite é algo que deixaria o jogo extremamente complexo. Bem ou mal, a gente teria que ter consciência de quase todas as articulações do corpo, e isso certamente não é fácil em termos de animação ou detecção de colisão, etc.

Por outro lado, uma proposta que tentasse inverter o princípio de Just dance exigiria tanto um reconhecimento de movimentos muito apurado, quanto um perfil de jogador que, por si só, já fosse bem consciente do significado da dança e dos movimentos possíveis. Em poucas palavras, acho que o caminho para fazer de Bound a experiência a que ele se propunha exigiria ou um jogador com um domínio absurdo dos seus comandos no controle, ou então um jogador com um domínio absurdo do seu corpo. E, claro, nas duas hipóteses nós ainda precisaríamos de ferramentas tecnológicas que não estão à nossa disposição hoje em dia.

Bom, depois de tudo isso que eu disse, você deve estar pensando que eu devo estar colocando mil desculpas de antemão para o jogo, que certamente não entrega nenhuma dessas duas propostas. Talvez eu esteja, mas eu só estou mostrando para vocês o meu raciocínio quando eu ouvi falar do jogo pela primeira vez. E esses desafios imensos colocados a ele não me deixaram derrotista, e sim curioso para ver qual seria o resultado que Bound alcançaria, que meio termo entre a liberdade e complexidade da dança e os limites do game design ele construiria.

Na prática, Bound se concretizou como uma mistura de jogo de exploração e plataforma, em que o jogador controla uma princesa numa espécie de fábula abstrata e psicodélica. Ela recebe a missão da mãe de impedir o avanço de um monstro que está atacando o reino e, então, parte para encontrar meios de confrontar e derrotar o monstro. Mas, eu falo mais sobre isso no final.

Os movimentos da princesa são todos capturados digitalmente de uma bailarina profissional e absolutamente tudo que ela pode fazer é imbuído da técnica da dança. A forma de correr usando apenas a ponta dos pés, os saltos leves, os passos próximos e minimalistas ao andar por um lugar estreito, os saltos apoteóticos, cada pequeno movimento de Bound é imbuído de beleza, e isso já antes de você ter a opção de dançar, ou seja, de realizar alguns movimentos um pouco mais complexos, como piruetas.

Nesse sentido, Bound certamente acertou em cheio em um dos propósitos mais básicos da dança: parar, por um momento, para analisar e viver o nosso corpo mais do que como uma ferramenta de mobilidade, mas também como uma forma de expressão, de autodescoberta. É curioso como a nossa indústria é absolutamente dominada pela tecnologia da captura de movimentos, mas sempre voltada para o movimento mais prosaico, mais cotidiano, e menos para o lúdico, o movimento alternativo, gracioso e cheio de significado.

Certos jogos chegaram a tratar disso sutilmente. Shadow of the Colossus, por exemplo, tem um protagonista que se move de forma ligeiramente desengonçada, o que é uma forma de expressar que ele não se encaixa perfeitamente na missão a que ele se propôs; é uma carga grande demais para ele, o que é, aliás, um tema bem recorrente em jogos dessa equipe que, em seu minimalismo extremo, fez até do movimento uma forma de expressão e construção de personagem.

Bound, por sua vez, procura tirar o movimento do rodapé da experiência e transformar em centro da interação. E, como eu falei, o jogo certamente chama a atenção para como nossos protagonistas se movem de forma padronizada e sem surpresas; o movimento é só uma ferramenta. Porém, depois que a gente reconhece essa inovação, os problemas de Bound começam a surgir.

E o principal é que há limitações demais no projeto de Bound, e isso em dois aspectos. O primeiro é o número ínfimo de movimentos de dança possíveis, ao qual o jogador passa a se habituar muito rápido e, logo, se torna quase tão rotineiro quanto o andar tradicional. Faltam opções de movimento, e talvez até a possibilidade de combinar dois ou três movimentos para obter outros novos, ou conexões que formariam técnicas novas.

Eu falo isso não porque eu acho que o jogo precisa da chamada profundidade de gameplay, e sim porque, quando um jogo chama atenção para um aspecto seu e o coloca no centro, ele precisa oferecer algo que torne esse aspecto relevante e poderoso durante toda a experiência. Não é à toa que muitos jogos procuram oferecer sempre mais atividades; afinal, se o jogador se cansar de uma delas, pode sempre partir para a próxima.

A outra limitação de Bound é como os cenários e a exploração se adaptam aos diferentes movimentos da protagonista. Infelizmente, a detecção de colisão leva frequentemente a problemas para o jogador conseguir se sustentar em certos locais, às vezes é possível ver a personagem escorregando de lugares claramente firmes, etc. Por sorte, quando o jogador falha, o jogo retorna quase que exatamente no último lugar em que era possível se sustentar, mas mesmo assim acaba sendo frustrante.

Essas duas coisas parecem mostrar limitações que são da ordem do orçamento do jogo, são elementos que poderiam ter sido mais desenvolvidos com maior captura de movimentos, maior tecnologia de animação e um maior teste na colisão para tornar a movimentação mais fluida e rica. Mas, para um jogo tão pequeno e experimentalista, certamente não deveria haver muito dinheiro disponível.

Por outro lado, os cenários e a música são estonteantes, cheio de beleza. Embora abstratos, os cenários oferecem uma multiplicidade de cores e formas que envolvem e provocam o jogador de diversas formas, o que torna a experiência visual muito marcante. A trilha sonora, além de muito bem escolhida, sabe também se adaptar a diferentes momentos da experiência e ajuda a despertar os sentimentos pretendidos.

Na história, também, Bound procura sair um pouco da norma, e consegue resultados interessantes. Para começo de conversa, os capítulos da história do jogo podem ser experimentados em ordens variadas, e são todos como que flashes de uma história com significado muito maior do que as metáforas do jogo deixam ver. Acaba ficando a cabo do jogador juntar as peças e estabelecer o significado e os sentimentos que Bound tematiza, seguindo um pouco a técnica de montagem de que eu falei no meu vídeo sobre Braid.

O que a gente encontra por trás dessa fábula toda é uma história sobre problemas familiares que olha para a fragilidade da família não apenas com olhares ressentidos a uma pessoa, mas considerando que pessoas podem ser heróis ou vilões dependendo do momento e do papel que exercem numa relação. Nesse sentido, ter uma estrutura livre e vaga como a de Bound ajuda justamente a ter um panorama mais compreensivo, em que personagens podem exercer papéis radicalmente distintos a depender do momento, o que representa bem relações humanas: nós desempenhamos heróis e vilões em momentos diferentes, e às vezes sem saber.

Uma última coisa que eu queria falar sobre a minha experiência com Bound, mas que não se restringe a ele, é que muitos dos jogos mais alegóricos e abstratos dos últimos tempos têm tido um certo receio de seus temas reais não serem entendidos, e por isso eles acabam trazendo elementos mais diretos que se chocam com a estrutura lúdica que eles construíram até então.

No caso de Bound, que, como eu falei, tematiza relações familiares, há uma série de trechos que expressam cenas com uma família, mesmo que as figuras alegóricas do mundo da princesa fossem capazes de expressar sem problemas o que se pretendia tematizar. Essa é uma coisa que eu tenho visto reaparecer em Papo y Yo, RiME, e agora em Bound. São jogos que trabalham com metáforas como sua estrutura de significação fundamental, mas que, em um momento ou outro, especialmente ao final, resolvem mudar sua significação para explicar seu tema, caso alguém ainda não tenha entendido.

E a verdade é que em muitos casos, o tema é bastante claro, e resolver mudar a estética da experiência para se explicar acaba sendo menos bem realizado do que os jogos que aderem às suas alegorias e confiam no poder de interpretação do jogador, como Journey, Inside, Braid, e vários outros.

De qualquer forma, eu não acho que Bound, RiME ou Papo y Yo são obras fracas por isso, até porque eles estão sustentados na expressão de experiências que são recorrentes, genuínas e que provocam a nossa empatia. É só que, como obras de arte, manter a consistência de seu sistema expressivo é sinônimo de maior força e confiança nesse sistema.

E era isso que eu queria dizer sobre Bound. É um jogo muito interessante pela sua proposta de trazer as potencialidades da dança ao mundo dos jogos e, embora ele tenha acertos, vários entraves técnicos colocam um limite à sua ambição. Além disso, ainda há um deslumbre para os sentidos durante a experiência, e até uma história tocante. Até a próxima análise!

sábado, 18 de novembro de 2017

Teoria: Ludoironia



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje eu resolvi fazer mais um vídeo de teoria. O tema de hoje tem a ver com o último jogo que eu analisei aqui no canal, que foi Dark Souls 2, e também com uma retrospectiva que eu fiz sobre tudo de que eu tratei aqui no canal nesses 5 anos, e sobre as questões mais interessantes e difíceis que eu acredito que os jogos têm enfrentado e que ainda precisam enfrentar.

Talvez a principal delas seja aquilo que eu chamo de Ludoironia. É algo de que eu tratei já em alguns jogos, mas que eu queria destacar como conceito com vocês neste vídeo, até para vocês me dizerem o que acham e me indicarem mais exemplos, caso vocês tenham.

Mas, primeiro, vamos ao conceito. Ironia sempre nos dá a impressão de que quer dizer a prática de dizer uma coisa enquanto se quer dizer outra. É isso que a gente quer dizer quando a gente usa o termo no dia a dia, mas, em certas teorias de arte, quer dizer uma coisa ligeiramente diferente.

Existe um livro muito importante e interessante chamado A teoria do romance, escrito pelo crítico tcheco Georg Lukács, e nele existe uma terminologia muito curiosa chamada “ironia romanesca”, ou seja, uma ironia que faz parte dos livros que se identificam como romances.

No caso, o tema principal de um romance seria discutir um pouco a busca por um sentido da vida e, em muitos casos, essa busca terminaria com uma falta de sentido, ou seja, ela seria falha, e terminaria concluindo que o mundo não faz sentido, não existe uma ordem governando tudo, e não existe um lugar determinado em que uma pessoa precise se encaixar.

Porém, embora ele tematize a falta de sentido, o livro em si tem que fazer sentido; do contrário, ou o público não vai entender, ou a obra de arte vai ficar toda despedaçada, sem uma coesão interna que a torne uma obra de arte interessante e que ressoe com as pessoas que leem. Ou seja, a ironia romanesca é o fato de que um romance tem que ter sentido, mesmo que ele queira falar da falta de sentido.

Bom, feita essa introdução, vamos ao universo dos jogos, que é o que nos interessa aqui. Como a gente já discutiu em outro vídeo, embora a interação não seja monopólio expressivo dos jogos, eles usam a interação como sua ferramenta de expressão mais básica, ou seja, ela é a fundação, a especialidade dos jogos.

E interação, claro, significa que, quando o jogador opera uma ação no jogo, o jogo reage a essa ação de alguma forma, e essa reação provavelmente vai demandar uma nova ação do jogador, à qual o jogo reagirá novamente, e assim combinações múltiplas de experiência vão surgindo. É uma mecânica artística fundada em trocas de ações e informações baseadas num conjunto de regras dado pelo jogo.

Sendo assim, qual seria o equivalente da ironia romanesca nos jogos? Para mim, parece que seria um jogo que tratasse da impossibilidade de ações, da falta de propósito das ações do jogador, mesmo que, nesse processo, o jogador pudesse agir de alguma forma, com o jogo reagindo. Ou seja, é o processo de interagir com um jogo enquanto ele, em sua estrutura fundamental, fala para você que as suas ações são inúteis ou, em última instância, que, por mais que você aja, você está numa situação sem saída, sem liberdade, sem propósito. Isso é o que eu chamo de ludoironia ou ironia dos jogos, roubando um pouco a terminologia da Teoria do romance.

Como eu disse no começo, eu retornei um pouco a esse tema por conta de Dark Souls 2. Sem dar muito spoiler, Dark Souls 2 é um jogo que, desde bem cedo, fala frequentemente da inutilidade das ações de importantes personagens naquele mundo, e inclusive do personagem que você controla. Além do mais, o jogo chega até a apontar que o jogador e o personagem não fazem ideia de por que estão agindo da forma como agem.

Por conta disso, o jogo assume um tom que ultrapassa a melancolia que marcou seu antecessor, e chega num ponto em que o jogador precisa se perguntar qual motivação ele deveria ter naquele mundo além de aproveitar os combates que o jogo oferece. Parece não haver incentivo nenhum à prática de assumir um papel no mundo do jogo, de se envolver de alguma forma.

A moldura da narrativa de Dark Souls 2 é tão voltada para esse sentimento de desolação e desânimo que a primeira interação com um personagem no jogo é um conjunto de pessoas rindo da cara do seu personagem, que busca conseguir uma solução para a maldição que o afeta.

O efeito que isso teve na minha experiência foi me fazer perder o investimento no mundo do jogo. Dark Souls 2 é um jogo muito competente em muitas áreas, mas no quesito de criar o seu mundo, ele acaba sendo frio e indiferente, a ponto de o seu antecessor acabar parecendo um lugar acolhedor. Um lugar cheio de inimigos e em que você não importa muito, mas um lugar em que as pessoas não desdenham de tudo que você faz.

Com isso, eu me perguntei se a ludoironia de Dark Souls 2 não era extrema, num ponto em que o jogador se sentia completamente desinvestido na experiência, desprezado por ela. E, então, eu resolvi trazer de volta alguns exemplos de jogos que tratam isso de formas diferentes e interessantes, e que talvez possam servir de exemplo sobre como se pode harmonizar essa contradição inerente a falar da inutilidade das suas ações num jogo.

Por mais estranho que pareça, eu acredito que o jogo que mais oferece o paralelo mais próximo com Dark Souls 2, mas acertando na criação do seu mundo, é The Stanley Parable. Esse jogo também trata especificamente sobre um ciclo inescapável. Nele o narrador do jogo e o seu protagonista, representando o jogador, lutam incansavelmente para ver quem está com as rédeas da narrativa. E, basta dizer, sem spoilar demais, que a moral da experiência de The Stanley Parable é que o jogador só está livre se ele não jogar. Dentro do jogo, ele segue regras, e ponto.

Mas, num universo tão declaradamente restrito como esse, como The Stanley Parable consegue deixar o jogador interessado e disposto a interagir com o jogo? A resposta é tornar interessantes os fracassos na batalha contra o narrador. No jogo, você pode tentar muitas coisas para escapar às regras e cada uma dessas coisas leva a cenários novos, interessantes e até divertidos, se esse for o seu tipo de humor.

Ou seja, o mundo de The Stanley Parable é absolutamente intransigente, mas essa intransigência se manifesta de formas tão variadas, que acabam o envolvendo o jogador, seja pelo humor, seja pela curiosidade sobre as situações que ainda podem ser descobertas. Em grande medida, é um jogo masoquista, em que você se alegra com ser derrotado, e busca sempre novas formas para isso.

Outro jogo que tentou algo interessante, e foi seguido de diversas formas, foi Gone Home. Nele você controla uma moça tentando descobrir o que aconteceu na casa dos seus pais enquanto você estava fora. Veja bem, você não tenta resolver nada, você só tenta descobrir, entender. Em última instância, o sentimento que mais marca a experiência de Gone Home é justamente esse de estar fora, de ter perdido um momento essencial por conta das escolhas que se fez. A vida é cheia de escolhas e, quando a gente faz uma, deixa, inevitavelmente, algumas coisas para trás.

Essa sensação de ser incapaz de mudar algo, porque esse algo já aconteceu, poderia desmotivar o jogador, e eu acredito que fez muitas pessoas se frustrarem com o jogo, porque esperavam um papel mais ativo na história. Mas, ao mesmo tempo, Gone Home ainda conseguiu manter muitas pessoas investidas, e eu acredito que isso se deve ao fato de que o jogo oferece alguma recompensa ao jogador, mesmo que a recompensa maior, que seria alterar o destino dos personagens, esteja fora de alcance.

Gone Home oferece ao jogador a experiência de entender, de investigar detalhes e, nesse sentido, em vez de interações variadas, o jogo oferece um level design absolutamente crível e cheio de detalhes que envolvem o jogador, e o fazem se sentir um investigador, e aí colher pequenos detalhes, entender melhor a situação da família acaba sendo uma recompensa e um envolvimento em si mesmo. Assim, Gone Home coloca o jogador num mundo em que ele não pode alterar nada, mas ele pode alterar a si, a sua curiosidade, o seu conhecimento. E isso acaba sendo muito engajador.

Vários jogos seguiram a mesma trilha de Gone Home, e evoluíram técnicas que estavam todas juntas nele. What remains of Edith Finch, por exemplo, nos faz reviver os últimos momentos de um personagem de uma forma lúdica. Nós não podemos alterar nada, mas há um prazer na interação por si, uma curiosidade que permite que participar das histórias seja recompensador, e nos oferece uma percepção diferente sobre os personagens e sobre como aquela família vê a morte.

Her Story continua 100% o lado detetive de Gone Home, agora retomando uma história que já se encerrou muitos anos antes da experiência que você está vivendo, mas que se apresenta de forma complexa, requerendo planejamento e lógica da parte do jogador e aí o ato de entender se torna uma recompensa muito interessante, mesmo que a reação inicial do jogador pudesse ser apenas um desprezo por não ser capaz de afetar nada.

Assim, esses três jogos acabam focando muito na ideia de uma interação diferente, uma espécie de recompensa interna. O mundo desses jogos não muda, mas o protagonista e o jogador mudam. E essa mudança é a recompensa do jogo, a força que a experiência traz consigo e que se torna muito marcante.

Uma terceira opção, um pouco mais aberta, é a de Papers, please. Diferentemente desses outros jogos, há diversos fatores que o jogador pode afetar naquele mundo, pelo menos supostamente. É claro que o jogador pode ficar cada vez melhor no trabalho do jogo e realmente dominar as mecânicas, mas é bem claro que o jogo trabalha intensamente para que o jogador falhe. A intenção é que ele falhe, que seja difícil ou até impossível fazer escolhas em condições ideais. Talvez você tenha que separar um casal para não perder o dinheiro para o remédio do seu filho, mas talvez seja tarde para o remédio e o seu filho morra mesmo assim.

Com isso, a recompensa do jogador não está numa saída feliz ou necessariamente recompensadora, mas no sentimento de esforço, de tentar ir o mais longe possível, de se ater mais aos valores que o jogador escolheu, seja manter a família, seja ajudar desconhecidos, seja fazer o máximo para fugir dessa situação toda e ficar em segurança. Não existem situações ideais e certamente haverá sacrifícios no caminho e a ideia é que o jogador sofra as frustrações desse processo.

E essa experiência tão negativa acaba funcionando justamente porque ela passa ao jogador o peso das suas decisões. Ele tem uma ilusão de controle no processo e, portanto, está envolvido, mesmo que a ideia é que ele falhe. Quando ele falha, a sensação é de que a intenção do jogo nunca foi a de que ele vencesse, e passar por isso acaba fornecendo a compreensão das situações-limite que o jogo procura mimetizar.

E, durante tudo isso, as mecânicas do jogo funcionam de forma a quase viciar o jogador no processo. É preciso ter tanta atenção e velocidade que o cérebro quase desliga e o jogador se move num ritmo tal que o ato de jogar se torna prazeroso, mesmo que a experiência final seja voltada para não dar nenhuma alegria.

Um jogo que retomou bastante esse conjunto de propostas foi This war of mine, em que o ato de sobreviver é sofrido e moralmente questionável, mas o jogador tem momentos de alegria no processo, procurando por itens e estratégias para sobreviver, e o propósito não é vencer e causar mudanças significativas, e sim ver até quando se consegue sobreviver. Ou seja, se a moldura narrativa colocar uma situação impossível de início, porém com pontos de envolvimento fortes durante vários momentos imediatos da experiência, a impossibilidade se torna um ponto distante e sai um pouco do horizonte.

E era isso que eu queria dizer sobre esse conceito estranho que eu criei, e chamei de ludoironia, que nada mais é do que construir um jogo, ou seja, uma obra de arte interativa, cuja estrutura é fazer com que as ações do jogador não tenham uma ressonância profunda no universo do jogo. Seria quase como um inverso da tradicional fantasia de poder que tantos e tantos jogos praticam, justamente por ser mais fácil.

Na verdade, quando a gente pensa na história da indústria, a gente nota que há um esforço justamente para aumentar a repercussão das ações do jogador: mais ações possíveis, mais lugares para ir, mais horas de jogo, NPCs que lembram de decisões feitas há muito tempo, pequenas decisões que tomam repercussões imensas, etc. Mas, ao mesmo tempo, também é possível remar contra essa maré e criar jogos em que a própria falta de poder seja o tema, e os resultados ainda podem ser muito poderosos.

Por favor, me diga o que você achou dos exemplos que eu elenquei e se você tem mais algum, e inclusive se você acha que jogos assim são fadados ao fracasso ou não usam a mídia ao máximo. E até uma próxima análise!