sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

The tomorrow children - Pensando sobre o jogo




Olá! Hoje eu vou fazer um exercício um pouco melancólico com vocês, que é tratar de um jogo que efetivamente não é mais jogável. Porém, eu acho que falar dele é algo importante, para manter a sua memória viva e assim, quem sabe, permitir que algumas das suas interessantes ideias se mantenham de alguma forma na comunidade.

O tema de hoje, como você nota pelo título, é o jogo The tomorrow children, desenvolvido pela Q-Games e pelo Japan Studio da Sony para PS4, e lançado em 2016. Ele era um jogo que foi vendido por um breve tempo e depois se tornou free to play. E, pouco mais de um ano depois do lançamento, os servidores foram fechados, efetivamente matando o jogo. 

The tomorrow children era um jogo que, em sua essência, procurava lutar contra aquela que talvez seja uma das bases mais antigas do mundo dos jogos: a competição. A gente sabe que, pelo menos desde o clássico Pong, a disputa pelo melhor resultado está na base do design de jogos. Mesmo os jogos single player, que não se baseiam em enfrentar um oponente real, simulam em sua estrutura algum tipo de antagonista que deve ser vencido. Além disso, temos também teorias antropológicas que entendem a origem dos jogos e esportes como uma forma simbólica e de baixo risco do que seriam combates reais.

The tomorrow children abandona esse paradigma para abraçar o da cooperação. O jogo assume a forma de um multiplayer em larga escala, em que dezenas de jogadores devem trabalhar juntos para reconstruir um mundo destruído por uma vaga ameaça chamada void. Cada jogador controla uma espécie de robô, programado para reconstruir e proteger cidades e resgatar pequenas bonecas russas que contêm os poucos humanos sobreviventes.

Na prática, os jogadores precisam se organizar para fazer múltiplas tarefas, sendo absolutamente impossível manter uma cidade sem pelo menos umas dez pessoas trabalhando juntas. As diversas atividades que compõem o gameplay do jogo podem ser divididas nas categorias de coleta e geração de recursos, construção de infraestrutura e defesa.

A maior parte do seu tempo no jogo, e também a área em que a maioria dos jogadores se aloca, é certamente a de coleta e geração de recursos. Isso pode ser feito nas cidades mesmo, como a produção de energia por meio de esteiras em que você corre, mas a principal atividade é a exploração de pequenas localidades cheia de materiais e que aparecem e desaparecem no mapa de tempos em tempos.

Um ônibus funciona como um circular, indo e vindo da cidade para as áreas de exploração. E ele faz o transporte dos materiais coletados para a cidade. Porém, vale dizer que só o transporte é automático. Alguém vai ter que colocar os recursos no ônibus, e alguém vai ter que movê-los do terminal até as áreas de armazenamento.

A extração em si é algo relativamente simples, com cada jogador utilizando instrumentos para coletar minério ou madeira que serão utilizados na cidade. Esses instrumentos são quebráveis e possuem diversos níveis de durabilidade. Quando uma nova área aparece, é sempre muito satisfatório ver os outros jogadores trabalhando, cada um coletando seu tipo de recursos, e outros mesmo gastando algum tempo para matar os eventuais inimigos que poderiam ameaçar o trabalho dos colegas. Ou mesmo levando fontes de luz para proteger os trabalhadores, já que a escuridão danifica o seu personagem.

E, como colocar recursos no ônibus leva tempo, muitos trabalhadores apenas arremessavam os itens extraídos e jogadores que acabavam de chegar, ou que não tinham ferramentas, faziam o carregamento do ônibus. Tudo isso visando otimizar a extração e o crescimento da cidade.

Do jeito que eu estou falando, você pode pensar que The tomorrow children é um jogo que funciona baseado no diálogo e em planos estratégicos, porém não há nenhum tipo de comunicação direta no jogo. Na melhor das hipóteses, você pode fazer gestos vagos como os que a gente pode fazer em Dark Souls. Isso quer dizer que o jogo espera que a organização seja espontânea, e isso certamente parece muito a se pedir.

Porém, o jogo funcionava lindamente nesse sentido, pelo menos no tocante à área de extração de recursos. Os jogadores sabiam muito bem como otimizar o trabalho e praticavam as melhores estratégias para que a cidade pudesse crescer o mais rápido possível. E, se você, por exemplo, não tivesse dinheiro para comprar uma ferramenta para extrair minério, você fazia o seu melhor no carregamento do ônibus, para enfim obter a ferramenta certa e passar a uma outra atividade. E aí outros viriam e assumiriam o seu lugar.

Nas cidades em si, as coisas funcionavam com um pouco menos de êxito. A defesa contra criaturas gigantes que atacavam de tempos em tempos funciona corretamente, e demanda que sempre haja jogadores prontos a proteger a cidade. E, quando eles conseguiam vencer um monstro com seus canhões, outros jogadores poderiam ir até o corpo do monstro e coletar nele materiais que, novamente, seriam usados na cidade.

Porém, alguns jogadores mal-intencionados também poderiam usar os canhões para destruir construções da cidade, e diversos certamente o fizeram. O mesmo vale para a parte de construção: enquanto muitos jogadores foram conscientes o bastante para sempre pensar na forma de fazer a cidade funcionar melhor e evoluir, alguns acabavam por usar recursos importantes em construções desnecessárias, ou então saíam destruindo construções essenciais.

E o jogo tem um sistema para reportar e prender jogadores nocivos à comunidade, porém a minha experiência é de que esses meios são relativamente leves demais, e também requerem que diversos jogadores reprovem os transgressores, o que pode ser difícil de acontecer caso a cidade seja pequena, com todos trabalhando na extração, ou então no meio da madrugada, quando a maioria dos jogadores está dormindo.

A associação à iconografia soviética e o uso de termos como “proletariado” e “camarada” fazem pensar que o jogo mirava fortemente num ideário socialista, o que certamente é algo bastante inovador, até onde me consta. Jogos que trazem cenários ou temas soviéticos costumam não ser diferentes daqueles que se passam num país capitalista, e discutem muito pouco questões sociais do cenário onde decidiram localizar sua história. Um jogo como Mother Russia bleeds, por exemplo, apresenta similaridades extremas com Streets of rage e Final fight não apenas em sua jogabilidade, mas também na sua própria estrutura narrativa.

Porém, eu acho que The tomorrow children, embora tenha mirado no socialismo, acabou acertando o anarquismo. O jogo certamente não conta com uma organização de poder, confiando na organização espontânea dos jogadores para chegar aos principais objetivos. E, com isso, qualquer mecânica que não seja aquela estritamente ligada à sobrevivência acaba prejudicada, pois o jogo não conta com regras minimamente capazes de serem colocadas em prática, como a questão dos jogadores mal-intencionados demonstrava.

Independentemente disso, o que o anarquismo e o socialismo têm em comum, pelo menos nas suas teorias, é uma confiança extrema na capacidade colaborativa da humanidade, e o jogo certamente expressa essa mesma crença em sua própria estrutura, para o bem ou para o mal. Afinal, esse problema de controle de transgressores nada mais é do que uma falha gerada pela confiança de que ou haveria pouquíssimos jogadores dispostos a fazer mal às cidades, ou haveria sempre alguém de olho para punir efetivamente esses indivíduos.

E essa confiança na cooperação em oposição à disputa é o que torna The tomorrow children realmente especial enquanto experiência. Eu não sou um grande fã de jogos multiplayer, especialmente por causa da hostilidade que muitas vezes está presente neles, e a experiência de colaborar com um grupo que eu não conhecia pelo simples motivo de atingir um objetivo comum foi algo muito especial e que fez com que o jogo fosse muito marcante.

Talvez a minha descrição do jogo tenha feito o jogo parecer algo limitado e tedioso; afinal, não há um inimigo à vista. Porém, eu acredito que essa característica é bem comum em jogos de gestão, como SimCity, em que, depois de tornar a cidade funcional, o jogo se torna um pouco mais lento e repetivo. É um tipo de jogo que demanda objetivos autoimpostos mais do que determinados pelo designer.

A diferença de The tomorrow children é que o ponto de vista está no cidadão, e não no gestor, o que é certamente algo revolucionário, porque, se há um problema em jogos de gestão, é o fato de que é muito fácil ignorar que, naquele mundo, se está lidando com seres humanos, e aí só se acaba focando no objetivo final ou nos números crescentes, seja de cidadãos numa cidade, seja de renda.

O que o jogo esperava dos jogadores é que, depois que uma cidade crescesse até ficar sustentável, a maioria dos jogadores migrasse para outras cidades, que também precisariam de ajuda. Assim, seria possível testar diversos projetos de cidade, desempenhar diferentes funções e se organizar com diferentes jogadores, o que certamente é algo que parece interessante.

Eu não sou um analista capacitado a dizer por que The tomorrow children não deu certo comercialmente. Algumas pessoas atribuem esse fato a essa estrutura simplificada do gameplay; outras apontam problemas na própria gestão do modelo free to play, que demanda muita propaganda, atualizações constantes – enfim, espaço na mídia e mindshare de que o jogo nunca dispôs.

Como um crítico amador de jogos, o que eu posso dizer é que a própria estrutura de The tomorrow children é algo revolucionário e interessantíssimo, que propõe paradigmas radicalmente diferentes na nossa indústria e que pode servir de exemplo na criação de experiências que busquem se afastar da disputa, para abraçar a confiança na cooperação e no prazer de buscar um objetivo pelo simples motivo de que seria interessante e satisfatório ver esse objetivo alcançado.

E era isso que eu queria dizer sobre The tomorrow children. Até a próxima análise!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Oreshika: Tainted Bloodlines - Pensando sobre o jogo




Olá! Hoje vou falar Oreshika: Tainted Bloodlines, jogo desenvolvido para PS Vita pelo estúdio Alpha System e pelo Japan Studio da Sony, e lançado em 2014 no Japão e em 2015 no Ocidente. Uma grande razão de este canal existir ainda neste ano é o fato de eu ter ficado frustrado por não ter dado tempo de falar desse jogo na sequência do ano passado; agora, finalmente, chegou o momento.

Primeiro, uma lição de história: Oreshika é a sequência de um jogo muito querido de PS1 e que nunca foi localizado no Ocidente. O termo “oreshika”, aliás, é uma forma abreviada do título do jogo original, que, traduzido, quer dizer algo como “siga além do que fui”, “conquiste mais do que eu conquistei”. É algo como uma exortação a alguém para que abrace seu legado e alcance, com ele, mais do que você mesmo pôde. Algo que um pai poderia falar para um filho, por exemplo. Mas logo a gente volta a isso.

Na prática, o jogo é um RPG de turnos em que o jogador controla um clã no Japão feudal. Esse clã era o responsável por proteger artefatos divinos que foram roubados, causando desastres naturais e o aparecimento de vários monstros. Para tentar agradar os deuses e fazer cessar os desastres, um feiticeiro convence o imperador a sacrificar o clã todo. Infelizmente, os deuses nada têm a ver com os desastres; é tudo um plano do feiticeiro, chamado Abe no Seimei.

Os deuses, porém, se compadecem da situação do clã e resolvem ressuscitá-lo. Todavia, uma maldição permanece sobre o clã, permitindo que cada membro viva apenas, em média, 2 anos. A magia dos deuses permite que cada membro do clã cresça rapidamente, e eles também se oferecem para ser os pais de futuros membros do clã, contanto que o clã faça por merecer essa honra.

Essa história complexa se converte em termos mecânicos da seguinte forma: como líder do clã, o jogador precisa organizar sua família de forma a executar ações gloriosas, para que ele obtenha o favor dos deuses, podendo, assim, fazer sua descendência ser cada vez mais poderosa, a ponto de finalmente vencer o feiticeiro Seimei que, num primeiro momento, parece invulnerável. Essas ações gloriosas são compostas por, basicamente, derrotar monstros e libertar deuses que caíram do céu por conta da confusão da perda dos instrumentos divinos. Esses deuses caídos se manifestam como chefes de labirintos. E, uma vez libertos, podem ser candidatos a fazer parte da sua linhagem.

O jogo é organizado em meses. Cada expedição a um labirinto toma pelo menos um mês e, durante todo o tempo fora da sua base, há um relógio mostrando o passar desse período. Lembre-se de que cada membro da sua família, na melhor das hipóteses, vive 2 anos, sendo muito mais provável que ele viva menos, especialmente se ele sofrer frequentes danos em batalha. Levando isso em consideração, fica bem claro que a chave para entender Oreshika são os conceitos de gerenciamento de tempo e planejamento.

Assim, quando um mês começa, é preciso pensar para qual labirinto se quer ir, se se deve arriscar enfrentar um chefe, ou se talvez seja melhor apenas fortalecer os membros mais jovens do clã, ou, ainda, qual integrante deve ficar na base treinando aqueles que ainda são novos demais para sair em batalha. Uma vez nos labirintos, há ainda diversos níveis de escolhas para fazer, por conta do sistema de combate cheio de nuances.

Os grupos de Oreshika são divididos em dois tipos de membros: os comuns e os líderes. Isso vale tanto para monstros, quanto para humanos, e até para o seu grupo. O que importa, na prática, é que o líder de um grupo seja morto; quando ele é derrotado, a batalha acaba instantaneamente, é ele quem guarda os itens e o dinheiro que você ganha ao vencer, e é ele quem, ao morrer, oferece a maior quantidade de pontos de devoção, que são os pontos usados tanto para os seus personagens passarem de nível, quanto para você selecionar qual deus será o pai do próximo membro do clã.

Porém, matar os inimigos normais vai te propiciar mais pontos de devoção e, com isso, você precisa fazer uma escolha: você foca seus ataques no líder e obtém os itens rápido, sacrificando a experiência extra, ou luta por mais tempo, arriscando receber mais ataques? Além do mais, se o líder se achar sozinho, existe uma chance grande de ele simplesmente fugir, o que pode fazer você perder a maior parte dos pontos, além dos itens e do dinheiro.

Com isso, a famosa acusação que os jogos em turno recebem de ter um combate simplificado, em que só se aperta um botão para vencer, simplesmente não encontra nenhuma validade em Oreshika, porque cada pequena batalha precisa ser pensada para maximizar seus ganhos e minimizar seus riscos. Lembre-se: algumas batalhas malsucedidas são a diferença entre um membro do clã morrendo dois ou três meses antes do esperado.

Falando em membros do clã, o número de fatores a considerar na gestão da sua party é meio assustador a princípio. O jogo conta com 8 classes básicas, cada uma com diferentes habilidades, especialmente no tocante a que tipo de inimigos podem ser atacados. Um arqueiro, por exemplo, pode atacar qualquer inimigo, mas só um por vez. Um espadachim pode atacar apenas um inimigo também, mas apenas inimigos que estejam na linha de frente; ele, porém, causa bastante dano. Já um dançarino pode atacar qualquer uma das duas fileiras inimigas, mas o dano dos seus ataques geralmente é baixo.

No princípio do jogo, a estratégia mais óbvia é escolher o membro mais forte do clã e fazer uma linhagem a partir dele: você escolhe o deus com os atributos mais altos que sua devoção puder alcançar, e tem o máximo de filhos que puder com esse membro mais forte. Porém, o jogo logo deixa essa tática defasada ao introduzir habilidades chamadas de “artes secretas”, que são desenvolvidas quando um personagem alcança determinados atributos e que só podem ser passadas de pai para filho, ou seja, tanto pai quanto filho precisam ter a mesma classe. Assim, o jogo direciona o jogador a manter três ou quatro pequenas descendências dentro do clã.

E, apesar de tudo que eu falei provavelmente estar misturado na sua cabeça de uma forma confusa, já que são tantos fatores a considerar em cada momento desse jogo, ele é estranhamente unificado dentro de um mesmo conceito: o de legado. Tudo em Oreshika serve para te passar o sentimento das dificuldades e dores de fazer escolhas que vão repercutir nas gerações adiante e dos desafios de fazer progresso real quando as suas capacidades são mais ou menos resetadas de tempos em tempos.

Na prática, o jogo é centrado em pouquíssimos objetivos principais: você precisa enfrentar o feiticeiro Seimei de tempos em tempos, até que finalmente você chega à batalha final. Ele tem seus próprios objetivos também, não só o de sacanear o seu clã, e as múltiplas batalhas com ele fazem algum sentido, pois você o vai enfraquecendo aos poucos.

Entre uma batalha com o Seimei e outra, você precisa se manter e, principalmente, se fortificar. É essencial que cada geração do clã seja mais forte que a anterior, porém isso não é simples. Deuses têm atributos radicalmente distintos, especialmente no começo, o que te deixa muito inseguro na hora de escolher qual o melhor caminho para determinado personagem na hora de gerar um filho.

Os chefes também são fortemente voltados para algo que eu chamaria de gimmicks, ou seja, eles são radicalmente baseados em alguma tática específica, demandando táticas também específicas para serem vencidos com facilidade, o que pode ser um desastre para um certo personagem, enquanto pode ser tranquilo para outros. Mas, você só vai ficar sabendo qual a melhor escolha depois de ter feito a sua e, como eu disse, erros nesse jogo têm repercussão sobre a vida dos seus personagens, e isso imediatamente gera repercussões no seu clã e, claro, no seu progresso no jogo como um todo.

Assim, um clã derrotado por um chefe no mês de abril pode não estar em condições de enfrentar o Seimei em maio, o único mês em que ele vai estar disponível naquele ano. Com isso, você perdeu o objetivo do ano. Sua equipe era forte, mas estava abalada. Talvez em maio do ano seguinte, ela esteja composta apenas por membros mais jovens e fracos, o que vai dificultar a luta. Talvez seja melhor esperar dois anos inteiros. Momentos como esse fazem de Oreshika um jogo extremamente punitivo e te fazem pensar realmente como planejamento e sorte influenciam quando a gente tem um objetivo a longo prazo a cumprir.

Este é um bom momento para falar que Oreshika não apresenta opções de dificuldade, mas sim opções de tempo de jogo. Ele te pergunta, basicamente, quanto tempo você quer gastar para zerar e aí adequa as recompensas de acordo. Eu dei uma olhada em cada opção e aquela que me parece a básica é justamente a chamada “fanática”, com o jogo prevendo uma playthrough de 100 horas. Eu acredito que passei dessa estimativa.

E, apesar desse tempo todo, o jogo nunca chegou a ser trivial para mim. Primeiro, os gráficos, que lembram pinturas japonesas, são muito bonitos e frequentemente impressionam. Segundo, embora os labirintos sejam poucos, e não muito memoráveis, por terem layout randomizado, os inimigos são bem diversos e com padrões específicos. E terceiro, como eu disse, o jogo é composto por ameaças constantes de perda de progresso, o que deixa tudo muito tenso, mesmo que você já esteja tão familiarizado com ele.

Porém, quando as coisas saem como deveriam e você contempla uma vitória, é difícil não ficar muito feliz e olhar para trás, enxergando com satisfação todo o esforço necessário para chegar onde se chegou. A gente lembra das gerações envolvidas nas batalhas, nos personagens que fizeram a diferença, e às vezes até nas últimas palavras de cada um deles antes de morrer. Você abre a árvore genealógica do seu clã e contempla toda a longa jornada nessas mais de 100 horas e lembra das dificuldades e percalços.

Nesse sentido, eu acredito que Oreshika oferece uma reflexão e uma lição que são inestimáveis hoje em dia. Eu acho que uma coisa que o mundo teve que perceber recentemente é como a história é algo complicado de se prever, e que muitas vezes a gente quebra a cara por acreditar que se anda sempre para frente e como é fácil dar um salto para trás se estivermos desatentos e não trabalharmos para que nossas conquistas sejam, antes de mais nada, duradouras.

Oreshika replica exatamente essa experiência: embora seu objetivo seja sempre tão claro desde o começo do jogo, e que dificilmente se altere até o final, a claridade desses objetivos não necessariamente contribui para alcançá-los, e a trajetória até eles pode ser muito longa, tortuosa e cheia de fracassos no meio do caminho. Algumas gerações se perdem no processo por decisões estúpidas da geração seguinte ou mesmo por um acaso.

Há muito tempo a civilização humana busca por alguns valores essenciais, como paz, bem-estar, respeito ao próximo, sustentabilidade, cooperação. São coisas muito simples, mas não é simples colocá-las em prática. É um trajeto cheio de desafios, e de fracassos também. E não é porque você conseguiu que os outros também vão conseguir. E não é porque temos instituições que garantem certas conquistas que estamos a salvo de regressões.

Oreshika é um jogo que mimetiza à perfeição esse processo, as lutas constantes, as ameaças repentinas, as regressões dolorosas. Mas, também, é um jogo que demonstra profunda reverência pelo esforço dos já mortos e sincera esperança naqueles que virão. Em grande medida, é um dos jogos mais fundamentais para entender a experiência humana em sociedade.

E era isso que eu queria dizer sobre Oreshika: Tainted Bloodlines. Até a próxima análise!

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Castlevania: Aria of Sorrow - Pensando sobre o jogo




Olá! Hoje vou falar de Castlevania: Aria of Sorrow, jogo desenvolvido pela Konami e lançado em 2003 para Gameboy Advance. Hoje, portanto, damos seguimento à série sobre a franquia Castlevania e encerramos o trio de jogos desenvolvidos para o Gameboy Advance.

Se eu tivesse que resumir a situação de Aria of Sorrow dentro da série Castlevania já para a gente começar a discutir, eu diria que o jogo marca o ponto em que a série se tornou tão consciente do seu legado que grande parte da sua estrutura acaba sendo concebida e entendida baseado na série de lugares-comuns já estabelecidos pelos jogos anteriores. Ou seja, pensar Aria of Sorrow significa, muitas vezes, enxergar um jogo que parece se forçar o tempo todo seja a inovar, seja a se manter tradicional.

Acho que o ponto mais óbvio para se enxergar isso é a história: Aria of Sorrow se passa no Japão em 2035, sendo, portanto, futurista e fora do eixo europeu que pautou a série até aquele momento. O protagonista é o jovem Soma Cruz, que provavelmente é europeu, mas que está visitando um templo no Japão durante um eclipse, quando é transportado para o castelo de Drácula. O clássico vilão da série, por sua vez, supostamente foi vencido em definitivo havia 36 anos e a existência do seu castelo é, por si só, um mistério.

Esse cenário parece completamente distinto dos clássicos da série, porém, quanto mais a gente explora o jogo, mas ele se revela semelhante: embora o Soma não seja um protagonista padrão num primeiro momento, logo é aludido que os poderes que ele ganha ao explorar ao castelo têm uma fonte sombria. Com isso, imediatamente o modelo de Symphony of the Night vêm à mente, com um herói que usa poderes das trevas para vencer o mal. E, conforme o jogo avança, a gente reencontra alguns sobrenomes muito conhecidos dentre os NPCs, como Belnaldes e Belmont.

Além disso, embora o cenário seja algo futurista, as armas e demais itens ainda têm suas origens em padrões medievais. O castelo em si também mantém a estética pela qual a série é conhecida, e o detalhismo gráfico continua nos passos de Harmony of Dissonance, desafiando os limites do Gameboy Advance. Se existe algo mais típico de Aria of Sorrow nesse quesito, seriam apenas as roupas dos personagens, que são modernizadas.

No tocante ao gameplay, a gente vê um movimento muito semelhante. Aria of Sorrow é o terceiro jogo da série a andar nos mesmos passos de Symphony of the Night e adotar um modelo metroidvania, em que você vai explorando o castelo de Drácula aos poucos, expandindo o número de áreas acessáveis conforme adquire novas habilidades, e aumentando seu poder conforme acumula experiência e coleta novos itens. O level design do jogo é certamente um avanço imenso em relação a Harmony of Dissonance, que era muito simplista, como eu falei no meu texto sobre o jogo.

Aria of Sorrow é cheio de elevadores e de uma verticalidade interessante, o que se soma ainda a algumas áreas em que é preciso pensar e testar estratégias diferentes para acessar. Há uma boa variedade de itens escondidos em salas secretas ou difíceis de acessar, o que torna a exploração em si muito interessante.

Se há um problema com o lado de exploração do jogo, é apenas uma certa falta de ambição com as habilidades disponíveis no jogo. Muitas delas são até irrisórias quando você fala em voz alta, como a habilidade de andar sobre a água ou mesmo embaixo dela. Certamente elas cumprem seu papel – a falta delas bloqueia áreas e a presença delas expande o mapa. Porém, eu sinto falta de habilidades que expandem a movimentação do personagem de forma mais expressiva, o que era especialidade de Circle of the Moon. A primeira habilidade que você ganhava naquele jogo era a de correr, algo que mudava muito a forma como você explorava o castelo já nos primeiros minutos.

Mesmo se a gente recuar até Symphony of the Night, as habilidades daquele jogo são tão memoráveis não só porque elas expandem as áreas exploráveis, mas porque elas transformam o jogo de diversas formas. Há até algumas habilidades mais interessantes em Aria of Sorrow, mas elas aparecem em pontos extremamente tardios do jogo, quando praticamente todo o castelo já está explorado e é mais prático apenas usar a rede de teletransportes do que explorar com suas novas habilidades.

O verdadeiro acerto puro de Aria of Sorrow está no sistema de captação de almas. Os poderes sombrios de Soma permitem que ele absorva as almas dos inimigos, o que, na prática, quer dizer que ele ganha habilidades específicas de cada inimigo. Elas podem ser projéteis diferentes para usar, habilidades passivas ou mesmo mecanismos de defesa. Cada tipo de inimigo cede uma habilidade única, porém nem todo inimigo derrotado cede uma alma – há apenas uma pequena chance de isso acontecer.

Na prática, isso é um mecanismo eficaz de manter o jogador engajado com o combate do jogo. É uma prática bem comum nas últimas partes dos metroidvanias da série o jogador simplesmente ignorar os inimigos, especialmente se ele já tiver habilidades que tornem isso mais fácil. A possibilidade de ganhar habilidades únicas mantém o jogador pronto a combater e fornece pequenas doses de recompensa em situações que, normalmente, seriam tediosas.

E vale dizer que essas habilidades são realmente úteis e muitas delas me salvaram em lutas mais ou menos complicadas. O fato é que esse sistema torna o combate algo mais interessante e permite uma customização imensa ao jogador, o que é um contrapeso na balança em relação à mediocridade das habilidades relacionadas a movimentação e acesso. Por um lado, Aria of Sorrow é muito aberto e ambicioso; por outro, parece que muitas vezes faltam ideias.

Em grande medida, isso é o peso de ser o quarto jogo a adotar um determinado modelo de jogabilidade, e isso num período de 6 anos apenas. Se a gente excluir Symphony of the Night, cabe considerar que, naquele momento, os jogos da série para Gameboy Advance eram anuais e não só isso: Harmony of Dissonance tinha sido lançado menos de um ano antes, com ambos tendo sido desenvolvidos ao mesmo tempo por subtimes dentro do mesmo estúdio da Konami.

Se a gente voltar ao que eu disse sobre Harmony of Dissonance ser um dos primeiros jogos a mostrar uma certa falta de ambição na série, com quase cada título até então tendo sido marcado por coisas absolutamente memoráveis, é difícil não notar um pouco dessa questão também em Aria of Sorrow. O jogo mantém limitações evidentes na área de movimentação, enquanto procura inovar com o sistema de habilidades de almas. Vale dizer, ainda, que há sinais de que havia um esforço para também absorver as críticas ao jogo anterior, com melhorias no som e, eu acredito, no level design.

Entrando ainda mais na especulação, se os dados da Wikipedia e suas fontes forem de confiança, a série vivia um certo declínio de vendas na linha do Gameboy Advance. Enquanto Circle of the Moon foi extremamente bem-sucedido, os demais nunca alcançaram seu sucesso. É de se pensar o quanto isso era responsável por mudanças ou limitações no jogo.

Do mesmo jeito que a recepção negativa do som de Harmony of Dissonance motivou o time a reelaborar a estrutura do som em Aria of Sorrow, mesmo sabendo que o jogo teria que ser lançado em 2003, quantas outras decisões poderiam afetar o ciclo de desenvolvimento e criar limitações que acabam deixando o jogo um pouco à sombra de seus pares?

O par Harmony of Dissonance e Aria of Sorrow me faz pensar muito nesses percalços do desenvolvimento de jogos: dois jogos desenvolvidos quase simultaneamente, dentro de um mesmo estúdio, lutando para avançar um formato e inovar, ao mesmo tempo em que um tanto presos ao compromisso de honrar as vendas surpreendentes de Circle of the Moon. Há um ponto em que o orçamento do jogo e a data para finalizar acabam falando alto demais e escolhas precisam ser feitas.

E é preciso dizer que eu acho que Aria of Sorrow, no geral, desempenhou um bom papel com esses desafios: propôs uma mecânica completamente nova com o sistema de captação de almas, criou um level design interessante, aumentou a qualidade do som e propôs alguns novos elementos à história. É claro que o jogo possui as limitações que eu já mencionei, mas certamente está diversos passos à frente de Harmony of Dissonance. O único negativo importante que chama minha atenção são os sinais de o ciclo de desenvolvimento do jogo parecer cada vez mais tortuoso e os desafios, maiores.

E era isso que eu queria dizer sobre Castlevania: Aria of Sorrow. Até a próxima análise!

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Teoria: Compromissos ao escolher um tema ou estética num jogo




Olá! Hoje é dia de mais um texto de teoria, agora discutindo um assunto que tem sido crescentemente relevante nos debates sobre jogos – no caso, a questão do peso ou compromisso que se faz ao adotar um tema ou uma estética socialmente relevante quando se constrói um jogo.

Eu acredito que o momento em que esse debate se tornou mais acentuado neste ano foi em março, quando The division 2 foi lançado. Porém, vez ou outra ele aparece, por exemplo quando houve reclamações sobre o uso de fósforo branco no novo Call of duty, cujo marketing afirmava se tratar de um jogo mais realista.

Num passado recente, a gente teve também muita discussão sobre a representação da cultura do interior americano em Far Cry 5, ou da nação boliviana em Ghost Recon: Wildlands. Indo um pouco mais para o passado, temos ainda reclamações sobre o tratamento da revolução francesa em Assassin’s Creed: Unity. E estes, claros, são apenas alguns exemplos.

A questão que está na base do debate, claro, é sobre a liberdade artística na representação: afinal, se um jogo vai falar da cultura armamentista e segregacionista americana, ele tem que fazer isso por um viés crítico? Se um estúdio faz um retrato considerado raso de um problema social real, ele merece críticas por isso, ou ele pode ser apenas considerado dentro do escopo a que ele se propôs, que era de fazer uma obra de entretenimento sem grandes pretensões?

Antes de entrar nas respostas a essas perguntas, eu gostaria de destacar que eu não joguei nenhum dos jogos que eu listei há pouco e, por isso, eu não vou entrar no mérito de como essa questão se aplica a eles. Quando eu quiser citar casos específicos, eu vou recorrer a jogos com os quais eu tenho familiaridade e, no geral, eu vou procurar tratar a questão mais em abstrato mesmo. Dito isso, vamos lá.

Em grande medida, as questões principais nesse debate podem servir como uma sequência ao meu texto sobre o peso crescente da centralidade das franquias na nossa indústria, porque lá eu já tratei da ambivalência de certas escolhas feitas durante a concepção de um jogo, que geram benefícios ao estúdio, mas que também demandam compromissos e determinam limitações.

Escolher um tema ou um cenário ou mesmo uma estética para um jogo é uma decisão que carrega um grande peso e que pode influenciar muito no seu desempenho e relevância. Existe uma expectativa de tipos de jogos e temas que o público quer ver correspondida e, claro, existe um limite de atenção que pode ser dada a jogos individuais no oceano de novos lançamentos que a atual indústria nos oferece. E, também, existe o desejo, por parte dos criadores, de tratar determinados temas e implementar certas estéticas que eles consideram interessantes e recompensadoras.

Uma escolha feliz nesse sentido tende a atrair a atenção do público e também expectativas – o que é mais importante neste caso. Assim, digamos que você escolhe um tema relevante para o seu jogo, por exemplo, a cultura armamentista, libertária e de fundo religioso do interior dos Estados Unidos, bem durante os primeiros efeitos de um governo supostamente pautado por essa cultura, e bem no momento em que as críticas e apologias a essa gestão se encontram no ápice.

Inevitavelmente o seu jogo será considerado altamente relevante, e instigará uma série de debates. O fato de os vilões do jogo serem representantes dessa cultura, por exemplo, gerará a expectativa de que quem jogar experimentará uma crítica a esses valores. Daí mesmo é que veio a crítica conservadora ao jogo antes mesmo de ele ter sido lançado. Porém, daí também veio a expectativa do outro lado do debate de que esse jogo poderia tratar essa questão de forma crítica.

O resultado disso tudo é que o jogo gozará de um imenso mindshare, ou seja, ele se manterá na mente da comunidade e como tema dos debates por um longo tempo, o que provavelmente gerará muito interesse pelo jogo, o qual será convertido em vendas. Mindshare hoje em dia é algo extremamente relevante, e por isso muitas vezes um jogo morre ou faz sucesso dependendo da qualidade do seu trailer, ou em que contexto ele é apresentado, ou quais são suas escolhas temáticas e estéticas.

Empresas, estúdios e criadores tendem a pensar muito em como obter mindshare, e isso muitas vezes é feito a partir da escolha de seu tema, baseando-se naquilo que é relevante no momento. Quando a indústria percebe uma tendência, a maioria de seus integrantes tende a agir rápido e adotá-la, o que muitas vezes dá a impressão de que temas, mecânicas e estéticas são adotadas e abandonadas em massa de tempos em tempos. Nós tivemos, por exemplo, no gênero do FPS, o domínio da Segunda Guerra, depois da guerra contemporânea, depois da guerra futurista etc.

Assim, voltando ao nosso exemplo, a escolha do tema da cultura americana não foi feita por acaso, e certamente foram considerados muitos critérios, como a diversidade e multiplicidade dos espaços representados; as ferramentas, como armas e fauna, que poderiam estar lá de forma verossímil; e os elementos culturais que poderiam ser articulados dentro daquele mundo para uma história e um mundo interessantes. Todos esses elementos certamente foram escolhidos pensando também em termos de repercussão com o público.

E, com isso, ao fazer escolhas estéticas e temáticas numa obra de arte, você se abre a todos os benefícios que essas escolhas trarão. No exemplo que eu usei, a gente certamente pode dizer que os Estados Unidos, por sua dominância cultural, criaram toda uma mitologia sobre seus moradores e sobre suas diversas regiões e, por isso, ambientar um jogo lá é algo que certamente atrairá a atenção do público. Isso cria benefícios para o jogo.

Porém, com essa escolha, há também compromissos. Ao deixar claro, no marketing do jogo, que há uma ligação entre armas, iconografia religiosa e cultura americana, o público espera uma interpretação desses elementos, seja ela positiva ou negativa. Ao tratar um elemento culturalmente relevante, você atrairá olhares, mas também expectativas de que você será capaz de se inserir no debate sobre esse elemento de forma sólida. Então, se a sua intenção é não tratar nada de forma contundente, talvez seja melhor adotar temáticas que não estejam tão em alta. Do contrário, as pessoas vão esperar, e com razão, que você se insira no debate.

Saindo da análise do marketing e indo para dentro dos jogos em si, um dos momentos em que essa questão ficou mais clara para mim foi com o jogo Bioshock Infinite. Trata-se, como todos sabem, de uma série que se pauta por lidar com temas sociais e, por isso mesmo, atraiu um público que queria ver esses assuntos comentados. Em Infinite, um elemento muito importante era a presença de uma sociedade racialmente dividida, com a opressão dos negros sendo um destaque.

Eu não vou entrar no mérito de como a revolução retratada no jogo é representada, porque eu já falei disso no meu vídeo sobre o jogo, mas eu queria focar na normalidade retratada lá, e não na exceção. Uma das melhores observações da análise do Matthewmatosis sobre o jogo é que, talvez por medo de tornar o jogo muito ofensivo ou até com uma classificação etária muito alta, a divisão racial de Columbia é retratada de forma tão sutil e quase inofensiva. Com isso a cidade parece, na verdade, bem melhor do que inúmeras outras cidades americanas da época em que se passa o jogo. O resultado é que a discussão dessa temática no jogo acaba esvaziada.

Como eu disse, trata-se de uma série interessada em discutir temas desse tipo, e que chama a atenção para essa questão durante o jogo de forma intencional, porém não executa um tratamento correto do tema. Com isso, tem-se uma escolha temática do jogo, em grande medida porque temas sociais ditos controversos são um dos apelos da série, e também um dos interesses do diretor do jogo, Ken Levine. Porém, o tratamento é raso e higienizado, o que torna a experiência incapaz de despertar o sentimento pretendido, que era de achar que, por trás da beleza da cidade de Columbia, havia uma exploração nefasta.

O resumo dessa ópera é que, ao escolher um tema relevante, é necessário ir até o fim na sua análise, ou pelo menos bem fundo; do contrário, quanto mais você intercala temas e estéticas na estrutura geral do jogo, mais ela vai sofrer por isso, e isso seja por expectativas do público, seja pela própria dependência que a estrutura do jogo terá em relação a esse tema.

Outro exemplo que sempre vem à minha cabeça quando eu trato dessa questão é a série Assassin’s Creed, a qual me frustra desde seu início. Um dos grandes apelos dessa franquia é o seu realismo. Eu entendo 100% que isso pode ser questionado com alguns elementos, como o fato de que você controla um personagem que mata dezenas, se não centenas, de inimigos, e que pula de edifícios com dezenas de metros de altura e não se machuca. Porém, eu acredito firmemente que o realismo faz parte das preocupações principais da série, e que os elementos que eu citei agora são, em grande medida, concessões feitas ao gameplay do jogo.

O motivo para essa minha convicção é o esforço real e de marketing em entender os costumes das épocas retratadas em cada jogo, de reproduzir edifícios reais, e até de criar uma moldura narrativa que permita contextualizar a morte do personagem principal quantas vezes fosse necessário. Até a ordem dos assassinos é baseada numa organização real.

O primeiro Assassin’s Creed certamente carregava essa preocupação com maior compromisso, passando-se em época próxima da em que a ordem real existiu, adotando métodos de assassinato também mais realistas, envolvendo muito mais stealth e dando prioridade a se esconder na multidão. As construções também eram menores, então os saltos malucos faziam mais sentido, e o parkour, enquanto técnica de movimentação, criava condições para fazer do ato de fugir algo divertido sem parecer absurdo.

Dezenas de jogos foram lançados com o nome Assassin’s Creed, muita coisa mudou, mas, pelos jogos que eu joguei, a preocupação em mostrar a época próxima do que era, fazer você interagir com personagens reais e reproduzir edifícios reais continuam sendo prioridades para a série. Eu não joguei, mas sei que Assassin’s Creed: Origins tem um modo dito educacional, voltado para quem quer conhecer as construções e os cenários do jogo, o que é um depoimento do quanto a Ubisoft se orgulha do realismo com que replica o mundo.

Porém, apesar de reproduzir o esqueleto da história como ninguém, Assassin’s Creed, pelo menos até o III, tem uma dificuldade séria com os órgãos e os músculos da história, ou seja, os eventos e desenvolvimentos humanos, os quais são sempre movidos por conspirações, o que é sempre uma explicação barata e simplista para as grandes tendências e eventos que pautaram a história real. Se a gente olhar em retrospecto, com a consciência do quanto conspirações ridículas têm pautado o debate sobre questões tão sérias como aquecimento global, vacinas, educação infantil, cultura, economia e até o formato do nosso planeta, uma série com tanto realismo retratar conspirações acaba sendo um defeito sempre mais gritante e até irresponsável.

As partes do jogo ficam misturadas como água e óleo. A escolha estética e temática, de realismo e historicismo, precisa ter suporte também na história do jogo, ou então a experiência perde a força que deveria. A escolha do jogo por conspirações talvez tenha sido feita por acreditarem que era o melhor, considerando quantas narrativas são simplistas em jogos. Porém, nenhum desses jogos com narrativas simplistas tem as pretensões realistas de Assassin’s Creed. Elas são bem particulares dessa série.

Será que uma série de FPS ultra-realista poderia deixar o jogador entrar num jato, levantar voo, pular dele em pleno ar, dar um tiro no piloto do jato inimigo, entrar no jato inimigo e seguir pilotando normalmente, baseando-se apenas no fato de que esse é um célebre momento de Battlefield e as pessoas gostam?

O cerne das respostas para as perguntas que eu fiz no começo é justamente a adequação. Cada escolha realizada na composição de uma obra é um compromisso que precisa ser honrado pelas demais escolhas que compõem a obra como um todo. Isso inclui fatores internos, da estrutura da obra, e também externos, como a relevância dos temas e a expectativa do público.

O estúdio pode conceber a obra que quiser, e há liberdade artística dessa forma; porém, se o que se espera é uma obra interessante e uma recepção positiva, é necessário que cada decisão seja pensada de forma articulada, e as escolhas sejam pautadas por aquilo que o resto da obra quer realizar. Um tema relevante precisa de tratamento relevante; um tema profundo precisa de tratamento profundo; uma estética realista normalmente precisa de temas realistas. Do contrário, só o que temos são contradições.

E era isso que eu queria dizer sobre o compromisso na escolha de temas e estéticas em jogos. Até a próxima análise!