sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

American McGee's Alice e Alice: Madness returns - Pensando sobre os jogos




Olá! Hoje eu quero falar brevemente de American McGee’s Alice e Alice: madness returns, dois jogos que para mim encapsulam alguns problemas frequentes da nossa indústria, mas que não deixam de ser muito interessantes mesmo assim.

Não dá para começar a falar desses dois jogos sem referenciar a sua fonte de inspiração, que são os livros Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho, escritos por Lewis Carroll no século XIX, que são clássicos exemplos de textos imaginativos e com diversos níveis de significação, e que por isso se mantêm relevantes na cultura popular e no universo infanto-juvenil, dividindo espaço com os contos de fada e outros conhecimentos muito mais antigos.

Curiosamente, houve um esforço recente de reimaginar os personagens do país das maravilhas, com destaque tanto para os jogos dirigidos pelo American McGee quanto para os filmes dirigidos pelo Tim Burton. Mais curiosamente ainda, os dois são muito semelhantes na forma como decidiram reimaginar o material: ambos focam numa Alice mais velha que revisita o país das maravilhas para lidar com algum problema do mundo real, recontextualizando e organizando muito do conteúdo que pode parecer meio solto para um leitor casual dos livros – o que pode frustrar fãs do formato clássico do Lewis Carroll, mas isso não vem ao caso aqui.

O primeiro jogo, American McGee’s Alice, lançado em 2000 para PC, gira em torno do trauma da menina Alice, que foi a única sobrevivente de um incêndio em sua casa e que perde a consciência no mundo real e retorna ao país das maravilhas, que está todo devastado pelo domínio da rainha de copas.

A proposta do jogo é extremamente interessante, pois reverte a estética jovial e brincalhona dos textos originais, e transforma o país das maravilhas num lugar violento, cheio de sangue e absolutamente nefasto. Não só isso: ao longo da trajetória, em vez de melhoras, Alice só vê muitos dos seus aliados se perdendo, o que torna o país das maravilhas um lugar pior. Então, o tom do jogo é absolutamente pessimista.

É claro que, embora os gráficos do jogo fossem certamente avançados para a época, sendo ainda bem agradáveis hoje, eles certamente são influenciados pela específica estética da virada do milênio, que era de excesso, o que cria alguma dissonância. A quantidade de sangue e morte que invadem a mente da menina Alice não condiz com alguém que é vítima, em grande parte, de uma experiência pontual e que pouco tem a ver com a escatologia que perpassa o jogo. O fogo em si, em contrapartida, nem é tão presente quanto seria de se esperar.

Porém, a estética acerta no tom geral e é possível falar que seria de se esperar de uma menina tão imaginativa uma extrapolação na violência a partir de uma única experiência traumática. Com isso, o jogo tem uma estética, ao menos, coerente. E, ao observar a trajetória da protagonista do jogo, a gente vê uma narrativa alegórica bem interessante sobre as dificuldades de superação de um trauma, tema que eu já tinha apontado num jogo como Ni no kuni.

A aventura de Alice é, em grande parte, o caminho para se recompor de uma experiência que, de alguma forma, a quebrou por dentro. Nesse sentido, muitas vezes a imaginação desempenha papel fundamental, especialmente para crianças, mas não apenas para elas. Já é atestado por estudos antropológicos que a elaboração de narrativas, contendo aventuras, batalhas e conquistas, pode ser essencial para entender e aceitar experiências difíceis. O que o jogo nos oferece é a oportunidade para acompanhar esse processo dentro da mente de alguém excepcionalmente imaginativo.

Sendo assim, a história e a experiência que o jogo propõe certamente são muito marcantes e interessantes, porém eu acredito que, no geral, a execução desse jogo deixa muito a desejar. Na prática, American McGee’s Alice é um jogo de aventura em terceira pessoa, basicamente focando em plataforma e combate, o que é um estilo extremamente popular na época – você encontra um parentesco forte desse jogo com os jogos da Rare para Nintendo 64, por exemplo, especialmente Conker’s bad fur day.

No tocante à parte de plataformas, o jogo tem um componente de imprecisão que sempre me incomodou, lembrando muito Castlevania 64 com seus pulos desajeitados. Os combates, por sua vez, permitem uma variedade de armas algo criativa, mas elas sempre apresentam alguns problemas em termos de feedback, parecendo fracas, enquanto os inimigos são muito eficientes em trucidar a Alice se o jogador não for cauteloso.

A própria movimentação durante o combate não parece ajudar o jogador a sentir o impacto dos seus golpes, com a Alice sempre deslizando pelo cenário. Na verdade, o jeito como a movimentação durante os combates funciona lembra muito um deslizar constante enquanto o jogador torce para acertar os inimigos.

Assim, é sempre muito interessante pensar sobre o conceito do jogo e esperar pelos próximos capítulos da aventura da Alice durante a experiência; porém, o ato de jogar em si acaba sendo algo desagradável, que fica no caminho da proposta interessante do jogo.

Após 11 anos, e de uma forma algo inesperada, visto que o jogo de 2000 tinha uma conclusão bastante sólida, surgiu uma sequência, chamada Alice: madness returns, também dirigida por American McGee, e lançada para PC, PS3 e Xbox 360. Este jogo é um interessante caso de análise sobre o papel e os desafios de sequências na nossa indústria. Na prática, o jogo continua dentro do seu mesmo estilo, em terceira pessoa e dividindo sua jogabilidade entre trechos de plataforma e de combate.

E, no geral, muitos dos meus motivos para reclamar do jogo anterior foram suprimidos: os pulos são muito mais precisos, a movimentação é menos deslizante, os inimigos são mais interessantes, com estratégias bem distintas e com combinações que, muitas vezes, se apresentam quase como um minixadrez, com diversas opções estratégicas para vencer. São diversos os inimigos que passam por fases durante a luta, com diferentes opções de ataque dependendo do dano que é causado a eles. Se há algo a reclamar em termos de jogabilidade, é que as hitboxes do jogo são bem questionáveis às vezes. Assim, onde havia espaço para melhorar, Madness returns certamente apresentou bons resultados.

Melhorar sistemas antigos é um dos pressupostos na elaboração de sequências, e o mesmo pode ser dito sobre lidar com dificuldades com a história. O jogo de 2000 acaba de um jeito bastante definitivo; por isso, a sequência, por si só, não poderia existir sem arruinar muito do impacto do final do primeiro jogo; é um problema inevitável. A solução de Madness returns foi mudar drasticamente o foco de sua narrativa, embora ainda considerando os eventos de seu antecessor.

Se o foco do primeiro jogo era a reconstrução do indivíduo a partir de dentro e do poder da narrativa e da imaginação para restabelecer a própria identidade e um sentido às experiências que vivemos, a sequência foca muito na relação da mente fragmentada com o mundo à sua volta, na forma como os outros veem essa pessoa, e no poder que esses outros têm de desestabilizar aquilo que tão cuidadosamente se construiu sozinho. Assim, se American McGee’s Alice é muito sobre o eu, Madness returns é sobre eu versus outros.

Esta é uma proposta interessante, porém ela perde muito do conceito simples do primeiro jogo, e do seu poder significativo, além de criar novos problemas: se os outros são o grande desafio, é preciso que esses outros apareçam muito mais no jogo, o que demanda trechos no mundo real, que na prática são muito simplistas (já que as habilidades da Alice só existem no país das maravilhas) e acabam oferecendo pouco em termos de contextualização para o jogo.

E, com isso, o fato de 95% do jogo se passar no país das maravilhas acaba sendo um tanto dissonante, visto que o conflito principal não está lá. Além disso, o jogo conta com diversas memórias coletáveis pelo cenário, que dão dicas sobre a vida de Alice e sobre os eventos de sua história. Graças a essas memórias coletáveis e opcionais, fica bem claro para o jogador qual a fonte de seus problemas bem antes de Alice chegar a uma conclusão, o que torna seus retornos ao país das maravilhas ainda mais dissonantes.

Aliás, falando em coletáveis, Madness returns conta com uma multiplicidade deles, que oferecem recompensas seja em termos de gameplay, como pontos de vida extras, seja em termos de contexto, como as memórias que eu citei. É uma adição interessante a princípio, mas o fato é que há tantos coletáveis que acaba virando hábito sair explorando o cenário sem muita preocupação com a trama principal, o que é algo um pouco justificável no começo, mas certamente estranho na segunda metade da experiência.

A linearidade do primeiro jogo poderia parecer um problema para quem se importa com a duração das obras, mas o fato é que ela oferecia um foco que Madness returns não tem, e isso faz a sequência sofrer. Duração, inclusive, é uma questão interessante, porque Madness returns é bem mais longo que seu antecessor, e isso não se deve apenas aos inúmeros coletáveis, mas também à quantidade imensa de salas por que o jogador precisa passar.

A quantidade em si não é problema, mas muitas propostas de plataforma acabam sendo repetidas inúmeras vezes, o que é cansativo e faz o jogador se perguntar por que o jogo está durando tanto, considerando que poucas coisas novas são propostas. Assim, em termos de jogabilidade, Madness returns pode apresentar uma melhora imensa num olhar microscópico, das mecânicas em si; porém, ele declina muito na perspectiva macroscópica, da aplicação dessas mecânicas.

Por tudo isso, quando a gente olha os dois jogos em perspectiva, o que fica é a visão de experiências com conceitos ou propostas muito interessantes e que tentam sinceramente apresentar algo novo em seus tratamentos, mas que encontram fortes dificuldades na hora de executar essas mesmas propostas. O primeiro jogo tem problemas com a movimentação e um combate pouco satisfatório; o segundo tem dificuldades em conciliar sua nova proposta ao gameplay, e apresenta uma preocupação pouco saudável com a duração do jogo. Com isso, a gente tem jogos altamente desbalanceados.

Em textos anteriores, eu comentei bastante sobre como gameplay precisa ser uma preocupação, mas não necessariamente deve ser a prioridade; o importante é que parte nenhuma de um jogo fique no caminho da outra para oferecer a experiência desejada. Os dois jogos da série Alice me parecem exemplos bastante claros de quando as diferentes partes de um jogo não se ajustam corretamente, o que pode criar experiências algo interessantes, mas consideravelmente falhas. Eles acabam ficando de exemplo de acertos e erros para futuros jogos. E eu espero que eles sejam revisitados de alguma forma, porque os conceitos básicos certamente valem a pena.

E era isso que eu queria dizer sobre American McGee’s Alice e Alice: madness returns. Até a próxima análise!

Nenhum comentário:

Postar um comentário