Olá!
Hoje eu quero falar brevemente
de American McGee’s Alice e Alice: madness returns, dois jogos que
para mim encapsulam alguns problemas frequentes da nossa indústria, mas que não
deixam de ser muito interessantes mesmo assim.
Não
dá para começar a falar desses dois jogos sem referenciar a sua fonte de
inspiração, que são os livros Alice no
país das maravilhas e Alice através
do espelho, escritos por Lewis Carroll no século XIX, que são clássicos
exemplos de textos imaginativos e com diversos níveis de significação, e que
por isso se mantêm relevantes na cultura popular e no universo infanto-juvenil,
dividindo espaço com os contos de fada e outros conhecimentos muito mais
antigos.
Curiosamente,
houve um esforço recente de reimaginar os personagens do país das maravilhas,
com destaque tanto para os jogos dirigidos pelo American McGee quanto para os
filmes dirigidos pelo Tim Burton. Mais curiosamente ainda, os dois são muito
semelhantes na forma como decidiram reimaginar o material: ambos focam numa
Alice mais velha que revisita o país das maravilhas para lidar com algum
problema do mundo real, recontextualizando e organizando muito do conteúdo que
pode parecer meio solto para um leitor casual dos livros – o que pode frustrar
fãs do formato clássico do Lewis Carroll, mas isso não vem ao caso aqui.
O
primeiro jogo, American McGee’s Alice,
lançado em 2000 para PC, gira em torno do trauma da menina Alice, que foi a
única sobrevivente de um incêndio em sua casa e que perde a consciência no
mundo real e retorna ao país das maravilhas, que está todo devastado pelo
domínio da rainha de copas.
A
proposta do jogo é extremamente interessante, pois reverte a estética jovial e
brincalhona dos textos originais, e transforma o país das maravilhas num lugar
violento, cheio de sangue e absolutamente nefasto. Não só isso: ao longo da
trajetória, em vez de melhoras, Alice só vê muitos dos seus aliados se
perdendo, o que torna o país das maravilhas um lugar pior. Então, o tom do jogo
é absolutamente pessimista.
É
claro que, embora os gráficos do jogo fossem certamente avançados para a época,
sendo ainda bem agradáveis hoje, eles certamente são influenciados pela
específica estética da virada do milênio, que era de excesso, o que cria alguma
dissonância. A quantidade de sangue e morte que invadem a mente da menina Alice
não condiz com alguém que é vítima, em grande parte, de uma experiência pontual
e que pouco tem a ver com a escatologia que perpassa o jogo. O fogo em si, em
contrapartida, nem é tão presente quanto seria de se esperar.
Porém,
a estética acerta no tom geral e é possível falar que seria de se esperar de
uma menina tão imaginativa uma extrapolação na violência a partir de uma única
experiência traumática. Com isso, o jogo tem uma estética, ao menos, coerente.
E, ao observar a trajetória da protagonista do jogo, a gente vê uma narrativa
alegórica bem interessante sobre as dificuldades de superação de um trauma, tema
que eu já tinha apontado num jogo como Ni
no kuni.
A aventura de Alice é, em grande parte, o caminho para se recompor de uma
experiência que, de alguma forma, a quebrou por dentro. Nesse sentido, muitas
vezes a imaginação desempenha papel fundamental, especialmente para crianças,
mas não apenas para elas. Já é atestado por estudos antropológicos que a
elaboração de narrativas, contendo aventuras, batalhas e conquistas, pode ser
essencial para entender e aceitar experiências difíceis. O que o jogo nos
oferece é a oportunidade para acompanhar esse processo dentro da mente de
alguém excepcionalmente imaginativo.
Sendo
assim, a história e a experiência que o jogo propõe certamente são muito
marcantes e interessantes, porém eu acredito que, no geral, a execução desse
jogo deixa muito a desejar. Na prática, American
McGee’s Alice é um jogo de aventura em terceira pessoa, basicamente focando
em plataforma e combate, o que é um estilo extremamente popular na época – você
encontra um parentesco forte desse jogo com os jogos da Rare para Nintendo 64,
por exemplo, especialmente Conker’s bad
fur day.
No
tocante à parte de plataformas, o jogo tem um componente de imprecisão que
sempre me incomodou, lembrando muito Castlevania
64 com seus pulos desajeitados. Os combates, por sua vez, permitem uma
variedade de armas algo criativa, mas elas sempre apresentam alguns problemas
em termos de feedback, parecendo
fracas, enquanto os inimigos são muito eficientes em trucidar a Alice se o
jogador não for cauteloso.
A própria movimentação
durante o combate não parece ajudar o jogador a sentir o impacto dos seus
golpes, com a Alice sempre deslizando pelo cenário. Na verdade, o jeito como a
movimentação durante os combates funciona lembra muito um deslizar constante
enquanto o jogador torce para acertar os inimigos.
Assim, é sempre muito
interessante pensar sobre o conceito do jogo e esperar pelos próximos capítulos
da aventura da Alice durante a experiência; porém, o ato de jogar em si acaba
sendo algo desagradável, que fica no caminho da proposta interessante do jogo.
Após 11 anos, e de uma
forma algo inesperada, visto que o jogo de 2000 tinha uma conclusão bastante
sólida, surgiu uma sequência, chamada Alice:
madness returns, também dirigida por American McGee, e lançada para PC, PS3
e Xbox 360. Este jogo é um interessante caso de análise sobre o papel e os
desafios de sequências na nossa indústria. Na prática, o jogo continua dentro
do seu mesmo estilo, em terceira pessoa e dividindo sua jogabilidade entre
trechos de plataforma e de combate.
E, no geral, muitos dos
meus motivos para reclamar do jogo anterior foram suprimidos: os pulos são
muito mais precisos, a movimentação é menos deslizante, os inimigos são mais
interessantes, com estratégias bem distintas e com combinações que, muitas
vezes, se apresentam quase como um minixadrez, com diversas opções estratégicas
para vencer. São diversos os inimigos que passam por fases durante a luta, com
diferentes opções de ataque dependendo do dano que é causado a eles. Se há algo
a reclamar em termos de jogabilidade, é que as hitboxes do jogo são bem questionáveis às vezes. Assim, onde havia
espaço para melhorar, Madness returns
certamente apresentou bons resultados.
Melhorar sistemas
antigos é um dos pressupostos na elaboração de sequências, e o mesmo pode ser
dito sobre lidar com dificuldades com a história. O jogo de 2000 acaba de um
jeito bastante definitivo; por isso, a sequência, por si só, não poderia
existir sem arruinar muito do impacto do final do primeiro jogo; é um problema
inevitável. A solução de Madness returns
foi mudar drasticamente o foco de sua narrativa, embora ainda considerando os
eventos de seu antecessor.
Se o foco do primeiro
jogo era a reconstrução do indivíduo a partir de dentro e do poder da narrativa
e da imaginação para restabelecer a própria identidade e um sentido às
experiências que vivemos, a sequência foca muito na relação da mente
fragmentada com o mundo à sua volta, na forma como os outros veem essa pessoa,
e no poder que esses outros têm de desestabilizar aquilo que tão cuidadosamente
se construiu sozinho. Assim, se American
McGee’s Alice é muito sobre o eu, Madness
returns é sobre eu versus outros.
Esta é uma proposta
interessante, porém ela perde muito do conceito simples do primeiro jogo, e do
seu poder significativo, além de criar novos problemas: se os outros são o
grande desafio, é preciso que esses outros apareçam muito mais no jogo, o que
demanda trechos no mundo real, que na prática são muito simplistas (já que as
habilidades da Alice só existem no país das maravilhas) e acabam oferecendo
pouco em termos de contextualização para o jogo.
E, com isso, o fato de
95% do jogo se passar no país das maravilhas acaba sendo um tanto dissonante,
visto que o conflito principal não está lá. Além disso, o jogo conta com
diversas memórias coletáveis pelo cenário, que dão dicas sobre a vida de Alice
e sobre os eventos de sua história. Graças a essas memórias coletáveis e
opcionais, fica bem claro para o jogador qual a fonte de seus problemas bem
antes de Alice chegar a uma conclusão, o que torna seus retornos ao país das
maravilhas ainda mais dissonantes.
Aliás, falando em
coletáveis, Madness returns conta com
uma multiplicidade deles, que oferecem recompensas seja em termos de gameplay, como pontos de vida extras,
seja em termos de contexto, como as memórias que eu citei. É uma adição
interessante a princípio, mas o fato é que há tantos coletáveis que acaba
virando hábito sair explorando o cenário sem muita preocupação com a trama
principal, o que é algo um pouco justificável no começo, mas certamente
estranho na segunda metade da experiência.
A linearidade do
primeiro jogo poderia parecer um problema para quem se importa com a duração das
obras, mas o fato é que ela oferecia um foco que Madness returns não tem, e isso faz a sequência sofrer. Duração,
inclusive, é uma questão interessante, porque Madness returns é bem mais longo que seu antecessor, e isso não se
deve apenas aos inúmeros coletáveis, mas também à quantidade imensa de salas
por que o jogador precisa passar.
A quantidade em si não
é problema, mas muitas propostas de plataforma acabam sendo repetidas inúmeras
vezes, o que é cansativo e faz o jogador se perguntar por que o jogo está
durando tanto, considerando que poucas coisas novas são propostas. Assim, em termos
de jogabilidade, Madness returns pode
apresentar uma melhora imensa num olhar microscópico, das mecânicas em si;
porém, ele declina muito na perspectiva macroscópica, da aplicação dessas
mecânicas.
Por tudo isso, quando a
gente olha os dois jogos em perspectiva, o que fica é a visão de experiências
com conceitos ou propostas muito interessantes e que tentam sinceramente
apresentar algo novo em seus tratamentos, mas que encontram fortes dificuldades
na hora de executar essas mesmas propostas. O primeiro jogo tem problemas com a
movimentação e um combate pouco satisfatório; o segundo tem dificuldades em
conciliar sua nova proposta ao gameplay,
e apresenta uma preocupação pouco saudável com a duração do jogo. Com isso, a
gente tem jogos altamente desbalanceados.
Em textos anteriores,
eu comentei bastante sobre como gameplay
precisa ser uma preocupação, mas não necessariamente deve ser a prioridade; o
importante é que parte nenhuma de um jogo fique no caminho da outra para
oferecer a experiência desejada. Os dois jogos da série Alice me parecem exemplos bastante claros de quando as diferentes
partes de um jogo não se ajustam corretamente, o que pode criar experiências
algo interessantes, mas consideravelmente falhas. Eles acabam ficando de
exemplo de acertos e erros para futuros jogos. E eu espero que eles sejam
revisitados de alguma forma, porque os conceitos básicos certamente valem a
pena.
E era isso que eu
queria dizer sobre American McGee’s Alice
e Alice: madness returns. Até a
próxima análise!
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