Olá!
Hoje é dia de mais um texto de
teoria, agora discutindo um assunto que tem sido crescentemente relevante nos
debates sobre jogos – no caso, a questão do peso ou compromisso que se faz ao
adotar um tema ou uma estética socialmente relevante quando se constrói um
jogo.
Eu
acredito que o momento em que esse debate se tornou mais acentuado neste ano
foi em março, quando The division 2
foi lançado. Porém, vez ou outra ele aparece, por exemplo quando houve
reclamações sobre o uso de fósforo branco no novo Call of duty, cujo marketing
afirmava se tratar de um jogo mais realista.
Num passado recente, a
gente teve também muita discussão sobre a representação da cultura do interior
americano em Far Cry 5, ou da nação
boliviana em Ghost Recon: Wildlands.
Indo um pouco mais para o passado, temos ainda reclamações sobre o tratamento
da revolução francesa em Assassin’s
Creed: Unity. E estes, claros, são apenas alguns exemplos.
A
questão que está na base do debate, claro, é sobre a liberdade artística na
representação: afinal, se um jogo vai falar da cultura armamentista e
segregacionista americana, ele tem que fazer isso por um viés crítico? Se um
estúdio faz um retrato considerado raso de um problema social real, ele merece
críticas por isso, ou ele pode ser apenas considerado dentro do escopo a que
ele se propôs, que era de fazer uma obra de entretenimento sem grandes
pretensões?
Antes
de entrar nas respostas a essas perguntas, eu gostaria de destacar que eu não
joguei nenhum dos jogos que eu listei há pouco e, por isso, eu não vou entrar
no mérito de como essa questão se aplica a eles. Quando eu quiser citar casos
específicos, eu vou recorrer a jogos com os quais eu tenho familiaridade e, no
geral, eu vou procurar tratar a questão mais em abstrato mesmo. Dito isso,
vamos lá.
Em
grande medida, as questões principais nesse debate podem servir como uma
sequência ao meu texto sobre o peso crescente da centralidade das franquias na
nossa indústria, porque lá eu já tratei da ambivalência de certas escolhas
feitas durante a concepção de um jogo, que geram benefícios ao estúdio, mas que
também demandam compromissos e determinam limitações.
Escolher
um tema ou um cenário ou mesmo uma estética para um jogo é uma decisão que
carrega um grande peso e que pode influenciar muito no seu desempenho e
relevância. Existe uma expectativa de tipos de jogos e temas que o público quer
ver correspondida e, claro, existe um limite de atenção que pode ser dada a
jogos individuais no oceano de novos lançamentos que a atual indústria nos
oferece. E, também, existe o desejo, por parte dos criadores, de tratar
determinados temas e implementar certas estéticas que eles consideram
interessantes e recompensadoras.
Uma
escolha feliz nesse sentido tende a atrair a atenção do público e também
expectativas – o que é mais importante neste caso. Assim, digamos que você
escolhe um tema relevante para o seu jogo, por exemplo, a cultura armamentista,
libertária e de fundo religioso do interior dos Estados Unidos, bem durante os
primeiros efeitos de um governo supostamente pautado por essa cultura, e bem no
momento em que as críticas e apologias a essa gestão se encontram no ápice.
Inevitavelmente
o seu jogo será considerado altamente relevante, e instigará uma série de
debates. O fato de os vilões do jogo serem representantes dessa cultura, por
exemplo, gerará a expectativa de que quem jogar experimentará uma crítica a
esses valores. Daí mesmo é que veio a crítica conservadora ao jogo antes mesmo
de ele ter sido lançado. Porém, daí também veio a expectativa do outro lado do
debate de que esse jogo poderia tratar essa questão de forma crítica.
O
resultado disso tudo é que o jogo gozará de um imenso mindshare, ou seja, ele se manterá na mente da comunidade e como
tema dos debates por um longo tempo, o que provavelmente gerará muito interesse
pelo jogo, o qual será convertido em vendas. Mindshare hoje em dia é algo extremamente relevante, e por isso
muitas vezes um jogo morre ou faz sucesso dependendo da qualidade do seu trailer, ou em que contexto ele é
apresentado, ou quais são suas escolhas temáticas e estéticas.
Empresas,
estúdios e criadores tendem a pensar muito em como obter mindshare, e isso muitas vezes é feito a partir da escolha de seu
tema, baseando-se naquilo que é relevante no momento. Quando a indústria
percebe uma tendência, a maioria de seus integrantes tende a agir rápido e
adotá-la, o que muitas vezes dá a impressão de que temas, mecânicas e estéticas
são adotadas e abandonadas em massa de tempos em tempos. Nós tivemos, por
exemplo, no gênero do FPS, o domínio da Segunda Guerra, depois da guerra
contemporânea, depois da guerra futurista etc.
Assim,
voltando ao nosso exemplo, a escolha do tema da cultura americana não foi feita
por acaso, e certamente foram considerados muitos critérios, como a diversidade
e multiplicidade dos espaços representados; as ferramentas, como armas e fauna,
que poderiam estar lá de forma verossímil; e os elementos culturais que
poderiam ser articulados dentro daquele mundo para uma história e um mundo
interessantes. Todos esses elementos certamente foram escolhidos pensando
também em termos de repercussão com o público.
E,
com isso, ao fazer escolhas estéticas e temáticas numa obra de arte, você se
abre a todos os benefícios que essas escolhas trarão. No exemplo que eu usei, a
gente certamente pode dizer que os Estados Unidos, por sua dominância cultural,
criaram toda uma mitologia sobre seus moradores e sobre suas diversas regiões
e, por isso, ambientar um jogo lá é algo que certamente atrairá a atenção do
público. Isso cria benefícios para o jogo.
Porém,
com essa escolha, há também compromissos. Ao deixar claro, no marketing do jogo, que há uma ligação
entre armas, iconografia religiosa e cultura americana, o público espera uma
interpretação desses elementos, seja ela positiva ou negativa. Ao tratar um
elemento culturalmente relevante, você atrairá olhares, mas também expectativas
de que você será capaz de se inserir no debate sobre esse elemento de forma
sólida. Então, se a sua intenção é não tratar nada de forma contundente, talvez
seja melhor adotar temáticas que não estejam tão em alta. Do contrário, as
pessoas vão esperar, e com razão, que você se insira no debate.
Saindo
da análise do marketing e indo para
dentro dos jogos em si, um dos momentos em que essa questão ficou mais clara
para mim foi com o jogo Bioshock Infinite.
Trata-se, como todos sabem, de uma série que se pauta por lidar com temas
sociais e, por isso mesmo, atraiu um público que queria ver esses assuntos
comentados. Em Infinite, um elemento
muito importante era a presença de uma sociedade racialmente dividida, com a
opressão dos negros sendo um destaque.
Eu
não vou entrar no mérito de como a revolução retratada no jogo é representada,
porque eu já falei disso no meu vídeo sobre o jogo, mas eu queria focar na
normalidade retratada lá, e não na exceção. Uma das melhores observações da
análise do Matthewmatosis sobre o jogo é que, talvez por medo de tornar o jogo
muito ofensivo ou até com uma classificação etária muito alta, a divisão racial
de Columbia é retratada de forma tão sutil e quase inofensiva. Com isso a
cidade parece, na verdade, bem melhor do que inúmeras outras cidades americanas
da época em que se passa o jogo. O resultado é que a discussão dessa temática
no jogo acaba esvaziada.
Como
eu disse, trata-se de uma série interessada em discutir temas desse tipo, e que
chama a atenção para essa questão durante o jogo de forma intencional, porém
não executa um tratamento correto do tema. Com isso, tem-se uma escolha
temática do jogo, em grande medida porque temas sociais ditos controversos são
um dos apelos da série, e também um dos interesses do diretor do jogo, Ken
Levine. Porém, o tratamento é raso e higienizado, o que torna a experiência
incapaz de despertar o sentimento pretendido, que era de achar que, por trás da
beleza da cidade de Columbia, havia uma exploração nefasta.
O
resumo dessa ópera é que, ao escolher um tema relevante, é necessário ir até o
fim na sua análise, ou pelo menos bem fundo; do contrário, quanto mais você
intercala temas e estéticas na estrutura geral do jogo, mais ela vai sofrer por
isso, e isso seja por expectativas do público, seja pela própria dependência
que a estrutura do jogo terá em relação a esse tema.
Outro
exemplo que sempre vem à minha cabeça quando eu trato dessa questão é a série Assassin’s Creed, a qual me frustra
desde seu início. Um dos grandes apelos dessa franquia é o seu realismo. Eu
entendo 100% que isso pode ser questionado com alguns elementos, como o fato de
que você controla um personagem que mata dezenas, se não centenas, de inimigos,
e que pula de edifícios com dezenas de metros de altura e não se machuca.
Porém, eu acredito firmemente que o realismo faz parte das preocupações
principais da série, e que os elementos que eu citei agora são, em grande
medida, concessões feitas ao gameplay
do jogo.
O
motivo para essa minha convicção é o esforço real e de marketing em entender os costumes das épocas retratadas em cada
jogo, de reproduzir edifícios reais, e até de criar uma moldura narrativa que
permita contextualizar a morte do personagem principal quantas vezes fosse
necessário. Até a ordem dos assassinos é baseada numa organização real.
O
primeiro Assassin’s Creed certamente
carregava essa preocupação com maior compromisso, passando-se em época próxima
da em que a ordem real existiu, adotando métodos de assassinato também mais
realistas, envolvendo muito mais stealth
e dando prioridade a se esconder na multidão. As construções também eram
menores, então os saltos malucos faziam mais sentido, e o parkour, enquanto técnica de movimentação, criava condições para
fazer do ato de fugir algo divertido sem parecer absurdo.
Dezenas
de jogos foram lançados com o nome Assassin’s
Creed, muita coisa mudou, mas, pelos jogos que eu joguei, a preocupação em
mostrar a época próxima do que era, fazer você interagir com personagens reais
e reproduzir edifícios reais continuam sendo prioridades para a série. Eu não
joguei, mas sei que Assassin’s Creed:
Origins tem um modo dito educacional, voltado para quem quer conhecer as
construções e os cenários do jogo, o que é um depoimento do quanto a Ubisoft se
orgulha do realismo com que replica o mundo.
Porém,
apesar de reproduzir o esqueleto da história como ninguém, Assassin’s Creed, pelo menos até o III, tem uma dificuldade séria com os órgãos e os músculos da
história, ou seja, os eventos e desenvolvimentos humanos, os quais são sempre
movidos por conspirações, o que é sempre uma explicação barata e simplista para
as grandes tendências e eventos que pautaram a história real. Se a gente olhar
em retrospecto, com a consciência do quanto conspirações ridículas têm pautado
o debate sobre questões tão sérias como aquecimento global, vacinas, educação
infantil, cultura, economia e até o formato do nosso planeta, uma série com tanto
realismo retratar conspirações acaba sendo um defeito sempre mais gritante e até
irresponsável.
As
partes do jogo ficam misturadas como água e óleo. A escolha estética e
temática, de realismo e historicismo, precisa ter suporte também na história do
jogo, ou então a experiência perde a força que deveria. A escolha do jogo por
conspirações talvez tenha sido feita por acreditarem que era o melhor,
considerando quantas narrativas são simplistas em jogos. Porém, nenhum desses
jogos com narrativas simplistas tem as pretensões realistas de Assassin’s Creed. Elas são bem
particulares dessa série.
Será
que uma série de FPS ultra-realista poderia deixar o jogador entrar num jato,
levantar voo, pular dele em pleno ar, dar um tiro no piloto do jato inimigo,
entrar no jato inimigo e seguir pilotando normalmente, baseando-se apenas no
fato de que esse é um célebre momento de Battlefield
e as pessoas gostam?
O
cerne das respostas para as perguntas que eu fiz no começo é justamente a
adequação. Cada escolha realizada na composição de uma obra é um compromisso
que precisa ser honrado pelas demais escolhas que compõem a obra como um todo.
Isso inclui fatores internos, da estrutura da obra, e também externos, como a
relevância dos temas e a expectativa do público.
O estúdio pode conceber
a obra que quiser, e há liberdade artística dessa forma; porém, se o que se
espera é uma obra interessante e uma recepção positiva, é necessário que cada
decisão seja pensada de forma articulada, e as escolhas sejam pautadas por
aquilo que o resto da obra quer realizar. Um tema relevante precisa de
tratamento relevante; um tema profundo precisa de tratamento profundo; uma
estética realista normalmente precisa de temas realistas. Do contrário, só o
que temos são contradições.
E era isso que eu
queria dizer sobre o compromisso na escolha de temas e estéticas em jogos. Até
a próxima análise!
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