sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Teoria: Compromissos ao escolher um tema ou estética num jogo




Olá! Hoje é dia de mais um texto de teoria, agora discutindo um assunto que tem sido crescentemente relevante nos debates sobre jogos – no caso, a questão do peso ou compromisso que se faz ao adotar um tema ou uma estética socialmente relevante quando se constrói um jogo.

Eu acredito que o momento em que esse debate se tornou mais acentuado neste ano foi em março, quando The division 2 foi lançado. Porém, vez ou outra ele aparece, por exemplo quando houve reclamações sobre o uso de fósforo branco no novo Call of duty, cujo marketing afirmava se tratar de um jogo mais realista.

Num passado recente, a gente teve também muita discussão sobre a representação da cultura do interior americano em Far Cry 5, ou da nação boliviana em Ghost Recon: Wildlands. Indo um pouco mais para o passado, temos ainda reclamações sobre o tratamento da revolução francesa em Assassin’s Creed: Unity. E estes, claros, são apenas alguns exemplos.

A questão que está na base do debate, claro, é sobre a liberdade artística na representação: afinal, se um jogo vai falar da cultura armamentista e segregacionista americana, ele tem que fazer isso por um viés crítico? Se um estúdio faz um retrato considerado raso de um problema social real, ele merece críticas por isso, ou ele pode ser apenas considerado dentro do escopo a que ele se propôs, que era de fazer uma obra de entretenimento sem grandes pretensões?

Antes de entrar nas respostas a essas perguntas, eu gostaria de destacar que eu não joguei nenhum dos jogos que eu listei há pouco e, por isso, eu não vou entrar no mérito de como essa questão se aplica a eles. Quando eu quiser citar casos específicos, eu vou recorrer a jogos com os quais eu tenho familiaridade e, no geral, eu vou procurar tratar a questão mais em abstrato mesmo. Dito isso, vamos lá.

Em grande medida, as questões principais nesse debate podem servir como uma sequência ao meu texto sobre o peso crescente da centralidade das franquias na nossa indústria, porque lá eu já tratei da ambivalência de certas escolhas feitas durante a concepção de um jogo, que geram benefícios ao estúdio, mas que também demandam compromissos e determinam limitações.

Escolher um tema ou um cenário ou mesmo uma estética para um jogo é uma decisão que carrega um grande peso e que pode influenciar muito no seu desempenho e relevância. Existe uma expectativa de tipos de jogos e temas que o público quer ver correspondida e, claro, existe um limite de atenção que pode ser dada a jogos individuais no oceano de novos lançamentos que a atual indústria nos oferece. E, também, existe o desejo, por parte dos criadores, de tratar determinados temas e implementar certas estéticas que eles consideram interessantes e recompensadoras.

Uma escolha feliz nesse sentido tende a atrair a atenção do público e também expectativas – o que é mais importante neste caso. Assim, digamos que você escolhe um tema relevante para o seu jogo, por exemplo, a cultura armamentista, libertária e de fundo religioso do interior dos Estados Unidos, bem durante os primeiros efeitos de um governo supostamente pautado por essa cultura, e bem no momento em que as críticas e apologias a essa gestão se encontram no ápice.

Inevitavelmente o seu jogo será considerado altamente relevante, e instigará uma série de debates. O fato de os vilões do jogo serem representantes dessa cultura, por exemplo, gerará a expectativa de que quem jogar experimentará uma crítica a esses valores. Daí mesmo é que veio a crítica conservadora ao jogo antes mesmo de ele ter sido lançado. Porém, daí também veio a expectativa do outro lado do debate de que esse jogo poderia tratar essa questão de forma crítica.

O resultado disso tudo é que o jogo gozará de um imenso mindshare, ou seja, ele se manterá na mente da comunidade e como tema dos debates por um longo tempo, o que provavelmente gerará muito interesse pelo jogo, o qual será convertido em vendas. Mindshare hoje em dia é algo extremamente relevante, e por isso muitas vezes um jogo morre ou faz sucesso dependendo da qualidade do seu trailer, ou em que contexto ele é apresentado, ou quais são suas escolhas temáticas e estéticas.

Empresas, estúdios e criadores tendem a pensar muito em como obter mindshare, e isso muitas vezes é feito a partir da escolha de seu tema, baseando-se naquilo que é relevante no momento. Quando a indústria percebe uma tendência, a maioria de seus integrantes tende a agir rápido e adotá-la, o que muitas vezes dá a impressão de que temas, mecânicas e estéticas são adotadas e abandonadas em massa de tempos em tempos. Nós tivemos, por exemplo, no gênero do FPS, o domínio da Segunda Guerra, depois da guerra contemporânea, depois da guerra futurista etc.

Assim, voltando ao nosso exemplo, a escolha do tema da cultura americana não foi feita por acaso, e certamente foram considerados muitos critérios, como a diversidade e multiplicidade dos espaços representados; as ferramentas, como armas e fauna, que poderiam estar lá de forma verossímil; e os elementos culturais que poderiam ser articulados dentro daquele mundo para uma história e um mundo interessantes. Todos esses elementos certamente foram escolhidos pensando também em termos de repercussão com o público.

E, com isso, ao fazer escolhas estéticas e temáticas numa obra de arte, você se abre a todos os benefícios que essas escolhas trarão. No exemplo que eu usei, a gente certamente pode dizer que os Estados Unidos, por sua dominância cultural, criaram toda uma mitologia sobre seus moradores e sobre suas diversas regiões e, por isso, ambientar um jogo lá é algo que certamente atrairá a atenção do público. Isso cria benefícios para o jogo.

Porém, com essa escolha, há também compromissos. Ao deixar claro, no marketing do jogo, que há uma ligação entre armas, iconografia religiosa e cultura americana, o público espera uma interpretação desses elementos, seja ela positiva ou negativa. Ao tratar um elemento culturalmente relevante, você atrairá olhares, mas também expectativas de que você será capaz de se inserir no debate sobre esse elemento de forma sólida. Então, se a sua intenção é não tratar nada de forma contundente, talvez seja melhor adotar temáticas que não estejam tão em alta. Do contrário, as pessoas vão esperar, e com razão, que você se insira no debate.

Saindo da análise do marketing e indo para dentro dos jogos em si, um dos momentos em que essa questão ficou mais clara para mim foi com o jogo Bioshock Infinite. Trata-se, como todos sabem, de uma série que se pauta por lidar com temas sociais e, por isso mesmo, atraiu um público que queria ver esses assuntos comentados. Em Infinite, um elemento muito importante era a presença de uma sociedade racialmente dividida, com a opressão dos negros sendo um destaque.

Eu não vou entrar no mérito de como a revolução retratada no jogo é representada, porque eu já falei disso no meu vídeo sobre o jogo, mas eu queria focar na normalidade retratada lá, e não na exceção. Uma das melhores observações da análise do Matthewmatosis sobre o jogo é que, talvez por medo de tornar o jogo muito ofensivo ou até com uma classificação etária muito alta, a divisão racial de Columbia é retratada de forma tão sutil e quase inofensiva. Com isso a cidade parece, na verdade, bem melhor do que inúmeras outras cidades americanas da época em que se passa o jogo. O resultado é que a discussão dessa temática no jogo acaba esvaziada.

Como eu disse, trata-se de uma série interessada em discutir temas desse tipo, e que chama a atenção para essa questão durante o jogo de forma intencional, porém não executa um tratamento correto do tema. Com isso, tem-se uma escolha temática do jogo, em grande medida porque temas sociais ditos controversos são um dos apelos da série, e também um dos interesses do diretor do jogo, Ken Levine. Porém, o tratamento é raso e higienizado, o que torna a experiência incapaz de despertar o sentimento pretendido, que era de achar que, por trás da beleza da cidade de Columbia, havia uma exploração nefasta.

O resumo dessa ópera é que, ao escolher um tema relevante, é necessário ir até o fim na sua análise, ou pelo menos bem fundo; do contrário, quanto mais você intercala temas e estéticas na estrutura geral do jogo, mais ela vai sofrer por isso, e isso seja por expectativas do público, seja pela própria dependência que a estrutura do jogo terá em relação a esse tema.

Outro exemplo que sempre vem à minha cabeça quando eu trato dessa questão é a série Assassin’s Creed, a qual me frustra desde seu início. Um dos grandes apelos dessa franquia é o seu realismo. Eu entendo 100% que isso pode ser questionado com alguns elementos, como o fato de que você controla um personagem que mata dezenas, se não centenas, de inimigos, e que pula de edifícios com dezenas de metros de altura e não se machuca. Porém, eu acredito firmemente que o realismo faz parte das preocupações principais da série, e que os elementos que eu citei agora são, em grande medida, concessões feitas ao gameplay do jogo.

O motivo para essa minha convicção é o esforço real e de marketing em entender os costumes das épocas retratadas em cada jogo, de reproduzir edifícios reais, e até de criar uma moldura narrativa que permita contextualizar a morte do personagem principal quantas vezes fosse necessário. Até a ordem dos assassinos é baseada numa organização real.

O primeiro Assassin’s Creed certamente carregava essa preocupação com maior compromisso, passando-se em época próxima da em que a ordem real existiu, adotando métodos de assassinato também mais realistas, envolvendo muito mais stealth e dando prioridade a se esconder na multidão. As construções também eram menores, então os saltos malucos faziam mais sentido, e o parkour, enquanto técnica de movimentação, criava condições para fazer do ato de fugir algo divertido sem parecer absurdo.

Dezenas de jogos foram lançados com o nome Assassin’s Creed, muita coisa mudou, mas, pelos jogos que eu joguei, a preocupação em mostrar a época próxima do que era, fazer você interagir com personagens reais e reproduzir edifícios reais continuam sendo prioridades para a série. Eu não joguei, mas sei que Assassin’s Creed: Origins tem um modo dito educacional, voltado para quem quer conhecer as construções e os cenários do jogo, o que é um depoimento do quanto a Ubisoft se orgulha do realismo com que replica o mundo.

Porém, apesar de reproduzir o esqueleto da história como ninguém, Assassin’s Creed, pelo menos até o III, tem uma dificuldade séria com os órgãos e os músculos da história, ou seja, os eventos e desenvolvimentos humanos, os quais são sempre movidos por conspirações, o que é sempre uma explicação barata e simplista para as grandes tendências e eventos que pautaram a história real. Se a gente olhar em retrospecto, com a consciência do quanto conspirações ridículas têm pautado o debate sobre questões tão sérias como aquecimento global, vacinas, educação infantil, cultura, economia e até o formato do nosso planeta, uma série com tanto realismo retratar conspirações acaba sendo um defeito sempre mais gritante e até irresponsável.

As partes do jogo ficam misturadas como água e óleo. A escolha estética e temática, de realismo e historicismo, precisa ter suporte também na história do jogo, ou então a experiência perde a força que deveria. A escolha do jogo por conspirações talvez tenha sido feita por acreditarem que era o melhor, considerando quantas narrativas são simplistas em jogos. Porém, nenhum desses jogos com narrativas simplistas tem as pretensões realistas de Assassin’s Creed. Elas são bem particulares dessa série.

Será que uma série de FPS ultra-realista poderia deixar o jogador entrar num jato, levantar voo, pular dele em pleno ar, dar um tiro no piloto do jato inimigo, entrar no jato inimigo e seguir pilotando normalmente, baseando-se apenas no fato de que esse é um célebre momento de Battlefield e as pessoas gostam?

O cerne das respostas para as perguntas que eu fiz no começo é justamente a adequação. Cada escolha realizada na composição de uma obra é um compromisso que precisa ser honrado pelas demais escolhas que compõem a obra como um todo. Isso inclui fatores internos, da estrutura da obra, e também externos, como a relevância dos temas e a expectativa do público.

O estúdio pode conceber a obra que quiser, e há liberdade artística dessa forma; porém, se o que se espera é uma obra interessante e uma recepção positiva, é necessário que cada decisão seja pensada de forma articulada, e as escolhas sejam pautadas por aquilo que o resto da obra quer realizar. Um tema relevante precisa de tratamento relevante; um tema profundo precisa de tratamento profundo; uma estética realista normalmente precisa de temas realistas. Do contrário, só o que temos são contradições.

E era isso que eu queria dizer sobre o compromisso na escolha de temas e estéticas em jogos. Até a próxima análise!

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