Olá!
Hoje eu vou fazer um exercício
um pouco melancólico com vocês, que é tratar de um jogo que efetivamente não é
mais jogável. Porém, eu acho que falar dele é algo importante, para manter a
sua memória viva e assim, quem sabe, permitir que algumas das suas
interessantes ideias se mantenham de alguma forma na comunidade.
O
tema de hoje, como você nota pelo título, é o jogo The tomorrow children, desenvolvido pela Q-Games e pelo Japan
Studio da Sony para PS4, e lançado em 2016. Ele era um jogo que foi vendido por
um breve tempo e depois se tornou free to
play. E, pouco mais de um ano depois do lançamento, os servidores foram
fechados, efetivamente matando o jogo.
The tomorrow children era um jogo que,
em sua essência, procurava lutar contra aquela que talvez seja uma das bases
mais antigas do mundo dos jogos: a competição. A gente sabe que, pelo menos
desde o clássico Pong, a disputa pelo
melhor resultado está na base do design
de jogos. Mesmo os jogos single player,
que não se baseiam em enfrentar um oponente real, simulam em sua estrutura
algum tipo de antagonista que deve ser vencido. Além disso, temos também teorias
antropológicas que entendem a origem dos jogos e esportes como uma forma
simbólica e de baixo risco do que seriam combates reais.
The tomorrow children abandona esse
paradigma para abraçar o da cooperação. O jogo assume a forma de um multiplayer
em larga escala, em que dezenas de jogadores devem trabalhar juntos para
reconstruir um mundo destruído por uma vaga ameaça chamada void. Cada jogador controla uma espécie de robô, programado para
reconstruir e proteger cidades e resgatar pequenas bonecas russas que contêm os
poucos humanos sobreviventes.
Na
prática, os jogadores precisam se organizar para fazer múltiplas tarefas, sendo
absolutamente impossível manter uma cidade sem pelo menos umas dez pessoas
trabalhando juntas. As diversas atividades que compõem o gameplay do jogo podem ser divididas nas categorias de coleta e
geração de recursos, construção de infraestrutura e defesa.
A
maior parte do seu tempo no jogo, e também a área em que a maioria dos
jogadores se aloca, é certamente a de coleta e geração de recursos. Isso pode
ser feito nas cidades mesmo, como a produção de energia por meio de esteiras em
que você corre, mas a principal atividade é a exploração de pequenas
localidades cheia de materiais e que aparecem e desaparecem no mapa de tempos
em tempos.
Um
ônibus funciona como um circular, indo e vindo da cidade para as áreas de
exploração. E ele faz o transporte dos materiais coletados para a cidade.
Porém, vale dizer que só o transporte é automático. Alguém vai ter que colocar
os recursos no ônibus, e alguém vai ter que movê-los do terminal até as áreas
de armazenamento.
A
extração em si é algo relativamente simples, com cada jogador utilizando
instrumentos para coletar minério ou madeira que serão utilizados na cidade.
Esses instrumentos são quebráveis e possuem diversos níveis de durabilidade.
Quando uma nova área aparece, é sempre muito satisfatório ver os outros
jogadores trabalhando, cada um coletando seu tipo de recursos, e outros mesmo
gastando algum tempo para matar os eventuais inimigos que poderiam ameaçar o
trabalho dos colegas. Ou mesmo levando fontes de luz para proteger os
trabalhadores, já que a escuridão danifica o seu personagem.
E,
como colocar recursos no ônibus leva tempo, muitos trabalhadores apenas
arremessavam os itens extraídos e jogadores que acabavam de chegar, ou que não
tinham ferramentas, faziam o carregamento do ônibus. Tudo isso visando otimizar
a extração e o crescimento da cidade.
Do
jeito que eu estou falando, você pode pensar que The tomorrow children é um jogo que funciona baseado no diálogo e
em planos estratégicos, porém não há nenhum tipo de comunicação direta no jogo.
Na melhor das hipóteses, você pode fazer gestos vagos como os que a gente pode
fazer em Dark Souls. Isso quer dizer
que o jogo espera que a organização seja espontânea, e isso certamente parece
muito a se pedir.
Porém,
o jogo funcionava lindamente nesse sentido, pelo menos no tocante à área de
extração de recursos. Os jogadores sabiam muito bem como otimizar o trabalho e
praticavam as melhores estratégias para que a cidade pudesse crescer o mais
rápido possível. E, se você, por exemplo, não tivesse dinheiro para comprar uma
ferramenta para extrair minério, você fazia o seu melhor no carregamento do
ônibus, para enfim obter a ferramenta certa e passar a uma outra atividade. E
aí outros viriam e assumiriam o seu lugar.
Nas
cidades em si, as coisas funcionavam com um pouco menos de êxito. A defesa
contra criaturas gigantes que atacavam de tempos em tempos funciona
corretamente, e demanda que sempre haja jogadores prontos a proteger a cidade.
E, quando eles conseguiam vencer um monstro com seus canhões, outros jogadores
poderiam ir até o corpo do monstro e coletar nele materiais que, novamente,
seriam usados na cidade.
Porém,
alguns jogadores mal-intencionados também poderiam usar os canhões para
destruir construções da cidade, e diversos certamente o fizeram. O mesmo vale
para a parte de construção: enquanto muitos jogadores foram conscientes o
bastante para sempre pensar na forma de fazer a cidade funcionar melhor e
evoluir, alguns acabavam por usar recursos importantes em construções
desnecessárias, ou então saíam destruindo construções essenciais.
E
o jogo tem um sistema para reportar e prender jogadores nocivos à comunidade,
porém a minha experiência é de que esses meios são relativamente leves demais,
e também requerem que diversos jogadores reprovem os transgressores, o que pode
ser difícil de acontecer caso a cidade seja pequena, com todos trabalhando na
extração, ou então no meio da madrugada, quando a maioria dos jogadores está
dormindo.
A
associação à iconografia soviética e o uso de termos como “proletariado” e
“camarada” fazem pensar que o jogo mirava fortemente num ideário socialista, o
que certamente é algo bastante inovador, até onde me consta. Jogos que trazem
cenários ou temas soviéticos costumam não ser diferentes daqueles que se passam
num país capitalista, e discutem muito pouco questões sociais do cenário onde
decidiram localizar sua história. Um jogo como Mother Russia bleeds, por exemplo, apresenta similaridades extremas
com Streets of rage e Final fight não apenas em sua
jogabilidade, mas também na sua própria estrutura narrativa.
Porém,
eu acho que The tomorrow children,
embora tenha mirado no socialismo, acabou acertando o anarquismo. O jogo
certamente não conta com uma organização de poder, confiando na organização
espontânea dos jogadores para chegar aos principais objetivos. E, com isso,
qualquer mecânica que não seja aquela estritamente ligada à sobrevivência acaba
prejudicada, pois o jogo não conta com regras minimamente capazes de serem
colocadas em prática, como a questão dos jogadores mal-intencionados
demonstrava.
Independentemente
disso, o que o anarquismo e o socialismo têm em comum, pelo menos nas suas
teorias, é uma confiança extrema na capacidade colaborativa da humanidade, e o
jogo certamente expressa essa mesma crença em sua própria estrutura, para o bem
ou para o mal. Afinal, esse problema de controle de transgressores nada mais é
do que uma falha gerada pela confiança de que ou haveria pouquíssimos jogadores
dispostos a fazer mal às cidades, ou haveria sempre alguém de olho para punir
efetivamente esses indivíduos.
E
essa confiança na cooperação em oposição à disputa é o que torna The tomorrow children realmente especial
enquanto experiência. Eu não sou um grande fã de jogos multiplayer, especialmente por causa da hostilidade que muitas
vezes está presente neles, e a experiência de colaborar com um grupo que eu não
conhecia pelo simples motivo de atingir um objetivo comum foi algo muito
especial e que fez com que o jogo fosse muito marcante.
Talvez
a minha descrição do jogo tenha feito o jogo parecer algo limitado e tedioso;
afinal, não há um inimigo à vista. Porém, eu acredito que essa característica é
bem comum em jogos de gestão, como SimCity,
em que, depois de tornar a cidade funcional, o jogo se torna um pouco mais
lento e repetivo. É um tipo de jogo que demanda objetivos autoimpostos mais do
que determinados pelo designer.
A diferença de The tomorrow children é que o ponto de
vista está no cidadão, e não no gestor, o que é certamente algo revolucionário,
porque, se há um problema em jogos de gestão, é o fato de que é muito fácil
ignorar que, naquele mundo, se está lidando com seres humanos, e aí só se acaba
focando no objetivo final ou nos números crescentes, seja de cidadãos numa
cidade, seja de renda.
O que o jogo esperava
dos jogadores é que, depois que uma cidade crescesse até ficar sustentável, a
maioria dos jogadores migrasse para outras cidades, que também precisariam de
ajuda. Assim, seria possível testar diversos projetos de cidade, desempenhar
diferentes funções e se organizar com diferentes jogadores, o que certamente é
algo que parece interessante.
Eu não sou um analista
capacitado a dizer por que The tomorrow
children não deu certo comercialmente. Algumas pessoas atribuem esse fato a
essa estrutura simplificada do gameplay;
outras apontam problemas na própria gestão do modelo free to play, que demanda muita propaganda, atualizações constantes
– enfim, espaço na mídia e mindshare
de que o jogo nunca dispôs.
Como um crítico amador
de jogos, o que eu posso dizer é que a própria estrutura de The tomorrow children é algo
revolucionário e interessantíssimo, que propõe paradigmas radicalmente
diferentes na nossa indústria e que pode servir de exemplo na criação de
experiências que busquem se afastar da disputa, para abraçar a confiança na
cooperação e no prazer de buscar um objetivo pelo simples motivo de que seria
interessante e satisfatório ver esse objetivo alcançado.
E era isso que eu
queria dizer sobre The tomorrow children.
Até a próxima análise!
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