sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

The tomorrow children - Pensando sobre o jogo




Olá! Hoje eu vou fazer um exercício um pouco melancólico com vocês, que é tratar de um jogo que efetivamente não é mais jogável. Porém, eu acho que falar dele é algo importante, para manter a sua memória viva e assim, quem sabe, permitir que algumas das suas interessantes ideias se mantenham de alguma forma na comunidade.

O tema de hoje, como você nota pelo título, é o jogo The tomorrow children, desenvolvido pela Q-Games e pelo Japan Studio da Sony para PS4, e lançado em 2016. Ele era um jogo que foi vendido por um breve tempo e depois se tornou free to play. E, pouco mais de um ano depois do lançamento, os servidores foram fechados, efetivamente matando o jogo. 

The tomorrow children era um jogo que, em sua essência, procurava lutar contra aquela que talvez seja uma das bases mais antigas do mundo dos jogos: a competição. A gente sabe que, pelo menos desde o clássico Pong, a disputa pelo melhor resultado está na base do design de jogos. Mesmo os jogos single player, que não se baseiam em enfrentar um oponente real, simulam em sua estrutura algum tipo de antagonista que deve ser vencido. Além disso, temos também teorias antropológicas que entendem a origem dos jogos e esportes como uma forma simbólica e de baixo risco do que seriam combates reais.

The tomorrow children abandona esse paradigma para abraçar o da cooperação. O jogo assume a forma de um multiplayer em larga escala, em que dezenas de jogadores devem trabalhar juntos para reconstruir um mundo destruído por uma vaga ameaça chamada void. Cada jogador controla uma espécie de robô, programado para reconstruir e proteger cidades e resgatar pequenas bonecas russas que contêm os poucos humanos sobreviventes.

Na prática, os jogadores precisam se organizar para fazer múltiplas tarefas, sendo absolutamente impossível manter uma cidade sem pelo menos umas dez pessoas trabalhando juntas. As diversas atividades que compõem o gameplay do jogo podem ser divididas nas categorias de coleta e geração de recursos, construção de infraestrutura e defesa.

A maior parte do seu tempo no jogo, e também a área em que a maioria dos jogadores se aloca, é certamente a de coleta e geração de recursos. Isso pode ser feito nas cidades mesmo, como a produção de energia por meio de esteiras em que você corre, mas a principal atividade é a exploração de pequenas localidades cheia de materiais e que aparecem e desaparecem no mapa de tempos em tempos.

Um ônibus funciona como um circular, indo e vindo da cidade para as áreas de exploração. E ele faz o transporte dos materiais coletados para a cidade. Porém, vale dizer que só o transporte é automático. Alguém vai ter que colocar os recursos no ônibus, e alguém vai ter que movê-los do terminal até as áreas de armazenamento.

A extração em si é algo relativamente simples, com cada jogador utilizando instrumentos para coletar minério ou madeira que serão utilizados na cidade. Esses instrumentos são quebráveis e possuem diversos níveis de durabilidade. Quando uma nova área aparece, é sempre muito satisfatório ver os outros jogadores trabalhando, cada um coletando seu tipo de recursos, e outros mesmo gastando algum tempo para matar os eventuais inimigos que poderiam ameaçar o trabalho dos colegas. Ou mesmo levando fontes de luz para proteger os trabalhadores, já que a escuridão danifica o seu personagem.

E, como colocar recursos no ônibus leva tempo, muitos trabalhadores apenas arremessavam os itens extraídos e jogadores que acabavam de chegar, ou que não tinham ferramentas, faziam o carregamento do ônibus. Tudo isso visando otimizar a extração e o crescimento da cidade.

Do jeito que eu estou falando, você pode pensar que The tomorrow children é um jogo que funciona baseado no diálogo e em planos estratégicos, porém não há nenhum tipo de comunicação direta no jogo. Na melhor das hipóteses, você pode fazer gestos vagos como os que a gente pode fazer em Dark Souls. Isso quer dizer que o jogo espera que a organização seja espontânea, e isso certamente parece muito a se pedir.

Porém, o jogo funcionava lindamente nesse sentido, pelo menos no tocante à área de extração de recursos. Os jogadores sabiam muito bem como otimizar o trabalho e praticavam as melhores estratégias para que a cidade pudesse crescer o mais rápido possível. E, se você, por exemplo, não tivesse dinheiro para comprar uma ferramenta para extrair minério, você fazia o seu melhor no carregamento do ônibus, para enfim obter a ferramenta certa e passar a uma outra atividade. E aí outros viriam e assumiriam o seu lugar.

Nas cidades em si, as coisas funcionavam com um pouco menos de êxito. A defesa contra criaturas gigantes que atacavam de tempos em tempos funciona corretamente, e demanda que sempre haja jogadores prontos a proteger a cidade. E, quando eles conseguiam vencer um monstro com seus canhões, outros jogadores poderiam ir até o corpo do monstro e coletar nele materiais que, novamente, seriam usados na cidade.

Porém, alguns jogadores mal-intencionados também poderiam usar os canhões para destruir construções da cidade, e diversos certamente o fizeram. O mesmo vale para a parte de construção: enquanto muitos jogadores foram conscientes o bastante para sempre pensar na forma de fazer a cidade funcionar melhor e evoluir, alguns acabavam por usar recursos importantes em construções desnecessárias, ou então saíam destruindo construções essenciais.

E o jogo tem um sistema para reportar e prender jogadores nocivos à comunidade, porém a minha experiência é de que esses meios são relativamente leves demais, e também requerem que diversos jogadores reprovem os transgressores, o que pode ser difícil de acontecer caso a cidade seja pequena, com todos trabalhando na extração, ou então no meio da madrugada, quando a maioria dos jogadores está dormindo.

A associação à iconografia soviética e o uso de termos como “proletariado” e “camarada” fazem pensar que o jogo mirava fortemente num ideário socialista, o que certamente é algo bastante inovador, até onde me consta. Jogos que trazem cenários ou temas soviéticos costumam não ser diferentes daqueles que se passam num país capitalista, e discutem muito pouco questões sociais do cenário onde decidiram localizar sua história. Um jogo como Mother Russia bleeds, por exemplo, apresenta similaridades extremas com Streets of rage e Final fight não apenas em sua jogabilidade, mas também na sua própria estrutura narrativa.

Porém, eu acho que The tomorrow children, embora tenha mirado no socialismo, acabou acertando o anarquismo. O jogo certamente não conta com uma organização de poder, confiando na organização espontânea dos jogadores para chegar aos principais objetivos. E, com isso, qualquer mecânica que não seja aquela estritamente ligada à sobrevivência acaba prejudicada, pois o jogo não conta com regras minimamente capazes de serem colocadas em prática, como a questão dos jogadores mal-intencionados demonstrava.

Independentemente disso, o que o anarquismo e o socialismo têm em comum, pelo menos nas suas teorias, é uma confiança extrema na capacidade colaborativa da humanidade, e o jogo certamente expressa essa mesma crença em sua própria estrutura, para o bem ou para o mal. Afinal, esse problema de controle de transgressores nada mais é do que uma falha gerada pela confiança de que ou haveria pouquíssimos jogadores dispostos a fazer mal às cidades, ou haveria sempre alguém de olho para punir efetivamente esses indivíduos.

E essa confiança na cooperação em oposição à disputa é o que torna The tomorrow children realmente especial enquanto experiência. Eu não sou um grande fã de jogos multiplayer, especialmente por causa da hostilidade que muitas vezes está presente neles, e a experiência de colaborar com um grupo que eu não conhecia pelo simples motivo de atingir um objetivo comum foi algo muito especial e que fez com que o jogo fosse muito marcante.

Talvez a minha descrição do jogo tenha feito o jogo parecer algo limitado e tedioso; afinal, não há um inimigo à vista. Porém, eu acredito que essa característica é bem comum em jogos de gestão, como SimCity, em que, depois de tornar a cidade funcional, o jogo se torna um pouco mais lento e repetivo. É um tipo de jogo que demanda objetivos autoimpostos mais do que determinados pelo designer.

A diferença de The tomorrow children é que o ponto de vista está no cidadão, e não no gestor, o que é certamente algo revolucionário, porque, se há um problema em jogos de gestão, é o fato de que é muito fácil ignorar que, naquele mundo, se está lidando com seres humanos, e aí só se acaba focando no objetivo final ou nos números crescentes, seja de cidadãos numa cidade, seja de renda.

O que o jogo esperava dos jogadores é que, depois que uma cidade crescesse até ficar sustentável, a maioria dos jogadores migrasse para outras cidades, que também precisariam de ajuda. Assim, seria possível testar diversos projetos de cidade, desempenhar diferentes funções e se organizar com diferentes jogadores, o que certamente é algo que parece interessante.

Eu não sou um analista capacitado a dizer por que The tomorrow children não deu certo comercialmente. Algumas pessoas atribuem esse fato a essa estrutura simplificada do gameplay; outras apontam problemas na própria gestão do modelo free to play, que demanda muita propaganda, atualizações constantes – enfim, espaço na mídia e mindshare de que o jogo nunca dispôs.

Como um crítico amador de jogos, o que eu posso dizer é que a própria estrutura de The tomorrow children é algo revolucionário e interessantíssimo, que propõe paradigmas radicalmente diferentes na nossa indústria e que pode servir de exemplo na criação de experiências que busquem se afastar da disputa, para abraçar a confiança na cooperação e no prazer de buscar um objetivo pelo simples motivo de que seria interessante e satisfatório ver esse objetivo alcançado.

E era isso que eu queria dizer sobre The tomorrow children. Até a próxima análise!

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