quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Little red lie - Pensando sobre o jogo




Olá! Hoje vou falar de Little red lie, jogo desenvolvido por Will O’Neill e lançado em 2017 para PC, iOS, Android, PS4 e PS Vita. Eu já falei de um outro jogo desse desenvolvedor aqui no canal, chamado Actual sunlight, e que é uma obra que expressa profunda sinceridade e realismo em relação aos temas de que trata.

Little red lie é um jogo extremamente interessante, e é um daqueles clássicos exemplos de jogos indie que conseguem muito com pouco. À primeira vista, é um dos jogos mais simples possíveis, uma obra focada em narrativa, com algumas escolhas de diálogo e sem muita ambição em termos de inovação tecnológica. Porém, as escolhas temáticas do jogo se destacam e oferecem um tratamento inovador a um tema também inovador em jogos. E eu diria que não é só em jogos, mas é também um tema que apenas está começando a ser tratado em outras mídias, com questões que apenas estão começando a ser compreendidas pelas pessoas de hoje.

Essencialmente, Little red lie é sobre duas coisas: dinheiro e mentiras, e como essas duas coisas se relacionam na sua visão de mundo e de si mesmo, bem como na sua relação com as demais pessoas. Na prática, nós acompanhamos a trajetória de dois indivíduos em situações bastante distintas, e que, por isso, têm relações específicas com dinheiro e mentiras.

Nós começamos o jogo controlando Sarah Stone, uma jovem com mais de 30 anos, desempregada depois de muito se dedicar a uma empresa, e que, após ficar sem dinheiro nenhum, resolve voltar com o rabo entre as pernas para a casa dos pais para poder encontrar algum sustento e tentar levantar sua vida. A relação de Sarah com essas dívidas é difícil, visto que, como um indivíduo criado na classe média, ela achou que, se se comportasse como deveria, encontraria sucesso, porém não foi isso que a vida lhe reservou. E, por isso, é difícil admitir a qualquer um os problemas por que ela passa, especialmente para os pais, que sempre a consideraram a filha com quem não precisavam se preocupar, ao contrário de sua irmã, Melissa.

Eu acredito que a história da Sarah seja algo de extrema relevância não só para o mundo dos jogos, mas também para a nossa cultura hoje. O jogo certamente representa algumas especificidades americanas, como a vergonha de morar com os pais depois de terminar uma faculdade, mas existem muitos elementos que representam um cenário que vai bem além do daquele país.

A sensação de chegar ou passar dos 30 conquistando muito pouco na vida é algo bastante comum na minha geração, bem como o sentimento de raiva por não ver cumprida a promessa de recompensa por uma vida cheia de esforço. Muita gente da minha geração – e eu me incluo nisso – cresceu ouvindo que, fazendo o que se gosta, seria possível encontrar oportunidades para ser bem-sucedido, mas isso certamente não funciona no mundo real, seja trabalhando com prazer ou não, seja tendo talento ou não. A vida é muito mais complicada do que isso, e lidar com esse fato é um dos maiores desafios da minha geração.

Mas não só isso – o mundo inteiro está tendo que lidar com a questão de que as pessoas mais jovens não estão conseguindo acumular dinheiro suficiente para alcançar certas metas típicas da nossa sociedade, como estabilidade financeira, casa própria, economias para a velhice, etc. Isso pode parecer só um lado da nossa vida, mas, como Little red lie bem demonstra, essa instabilidade acaba afetando também a forma como a nossa economia funciona, como nossa autoestima é mantida, como nós lidamos com outras pessoas, se nós escolhemos ter filhos, etc. Trata-se de uma crise que afeta não só o presente, mas também todo o futuro da nossa sociedade, e de que pouco se fala, na verdade.

E o motivo para isso é provavelmente aquilo que o jogo escolheu como sua ferramenta básica: a mentira. Somos uma geração criada para ser bem-sucedida, com muito mais oportunidades do que os pais jamais tiveram, e com muitas dessas oportunidades advindas de sacrifícios muito grandes feitos por eles. Sendo assim, como podemos encarar essa situação? A resposta é que não podemos – por isso, mentimos.

Toda vez que o jogo permite ao jogador escolher uma fala para um dos protagonistas, surgem três opções que refletem exatamente o que eles estão pensando; porém, independentemente do que você escolher, a resposta será totalmente outra, pintando uma realidade completamente distinta, e escondendo muitos dos problemas internos por que passam nossos protagonistas. Assim são praticamente todas as interações do jogo.

A princípio, pode parecer uma mecânica que esgota seu poder significativo rapidamente, mas é justamente o contrário: é a onipresença das mentiras que acaba deixando claro o quanto a situação é angustiante para a Sarah, e nós acompanhamos essa angústia pelo ponto de vista da Sarah, mentindo quase contra a nossa vontade, de uma forma automática, sem nem saber bem por quê.

Como eu disse no começo, o jogo consegue muito com pouco, com uma mecânica extremamente simples e que figura como um excelente e emblemático caso de ludoironia, um conceito maluco que eu criei e de que falei em outro texto. O jogo, basicamente, usa o pressuposto de que o jogador poderia escolher o que falar no jogo, apenas para mostrar que é impossível, que existe um bloqueio num nível do sujeito que simplesmente o leva lentamente a um buraco sempre mais fundo. A barreira da mentira não é só uma proteção contra os julgamentos e ameaças de fora, mas também contra a autoavaliação e a perspectiva de abertura. Quem mente sempre, acaba mentindo também para si mesmo.

E isso fica ainda mais claro no segundo protagonista do jogo, chamado Arthur Fox. Ele é, para todos os efeitos, o oposto da Sarah no mundo social. Um homem de meia idade, rico, poderoso e que sente incrível prazer em usar o poder de que dispõe. Por um lado, esse personagem não é exatamente inovador ou tão relevante quanto a Sarah, porém o tratamento dele ainda se revela muito bem executado. As mentiras do Arthur raramente são para os outros. Como um palestrante motivacional, ele tem, sim, que mentir sobre as perspectivas de sucesso para pessoas que ele sabe que provavelmente não conseguirão o que querem.

A mentira mais profunda do Arthur, porém, é achar que ele é um ser humano decente mesmo considerando todas as outras pessoas como inferiores a ele. Completamente possuído pela ideia de que ter dinheiro é ser mais que os outros, ele vê todos como objetos, como instrumentos da sua vontade. Por isso, enganá-los não é um problema; agredi-los não é um problema; abusar deles não é um problema. O escudo que o dinheiro proporciona a pessoas como essas precisa de uma contraparte subjetiva, um escudo que funciona para justificar seus atos, para absolvê-lo de tudo que fazem. É por isso que a mentira para ele é igualmente compulsiva.

O jogo, porém, deixa bem claro que esses personagens sabem que estão mentindo, mesmo quando estão mentindo para si mesmos: no diálogo, os trechos mentirosos aparecem sempre em vermelho, o que é a dica de que muitas das neuroses desses personagens advêm justamente do fato de que, por mais que tentem, as suas mentiras só os protegem até certo ponto. No fim das contas, eles precisam lidar com o fato de que, no fundo, sabem que estão mentindo.

Com isso, a experiência de Little red lie acaba sendo incrivelmente significativa e relevante para as pessoas da minha geração e um caso quase inacreditável da eficiência de pouquíssimos recursos para contar uma história profunda, e que demonstra a sinceridade, clareza e autocrítica que eu passei a esperar do Will O’Neill. Dinheiro é uma coisa com a qual a gente raramente precisa se preocupar em jogos e, quando é preciso se preocupar, costuma ser dentro de um paradigma que demanda apenas gestão inteligente para o sucesso.

O que Little red lie apresenta é uma situação em que você incorpora um personagem que tem muito pouco controle sobre a própria vida e sobre a possibilidade de ganhar dinheiro e mudar os próprios rumos. Como Actual sunlight, é um jogo sobre falta de perspectiva – o que é o contrário do que os jogos costumam nos ensinar; afinal, a cada dia mais eles assumem mais a bandeira de dar mais e mais poder e liberdade ao jogador, o que não deixa de ser irônico, considerando o mundo em que vivemos, com a gente se deparando sempre com novos bloqueios, e enxergando quão falsas eram as promessas de liberdade que nos guiaram quando crescíamos.

E era isso que eu queria dizer sobre Little red lie. Certamente é um jogo inescapável para tentarmos entender nossa experiência hoje e talvez achar algum caminho para escaparmos de um beco sem saída antes que seja tarde. Até a próxima análise!

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