Olá!
Hoje vou falar Oreshika: Tainted Bloodlines, jogo
desenvolvido para PS Vita pelo estúdio Alpha System e pelo Japan Studio da
Sony, e lançado em 2014 no Japão e em 2015 no Ocidente. Uma grande razão de
este canal existir ainda neste ano é o fato de eu ter ficado frustrado por não
ter dado tempo de falar desse jogo na sequência do ano passado; agora,
finalmente, chegou o momento.
Primeiro,
uma lição de história: Oreshika é a
sequência de um jogo muito querido de PS1 e que nunca foi localizado no
Ocidente. O termo “oreshika”, aliás,
é uma forma abreviada do título do jogo original, que, traduzido, quer dizer
algo como “siga além do que fui”, “conquiste mais do que eu conquistei”. É algo
como uma exortação a alguém para que abrace seu legado e alcance, com ele, mais
do que você mesmo pôde. Algo que um pai poderia falar para um filho, por
exemplo. Mas logo a gente volta a isso.
Na
prática, o jogo é um RPG de turnos em que o jogador controla um clã no Japão
feudal. Esse clã era o responsável por proteger artefatos divinos que foram
roubados, causando desastres naturais e o aparecimento de vários monstros. Para
tentar agradar os deuses e fazer cessar os desastres, um feiticeiro convence o
imperador a sacrificar o clã todo. Infelizmente, os deuses nada têm a ver com
os desastres; é tudo um plano do feiticeiro, chamado Abe no Seimei.
Os
deuses, porém, se compadecem da situação do clã e resolvem ressuscitá-lo.
Todavia, uma maldição permanece sobre o clã, permitindo que cada membro viva
apenas, em média, 2 anos. A magia dos deuses permite que cada membro do clã
cresça rapidamente, e eles também se oferecem para ser os pais de futuros
membros do clã, contanto que o clã faça por merecer essa honra.
Essa
história complexa se converte em termos mecânicos da seguinte forma: como líder
do clã, o jogador precisa organizar sua família de forma a executar ações
gloriosas, para que ele obtenha o favor dos deuses, podendo, assim, fazer sua
descendência ser cada vez mais poderosa, a ponto de finalmente vencer o
feiticeiro Seimei que, num primeiro momento, parece invulnerável. Essas ações
gloriosas são compostas por, basicamente, derrotar monstros e libertar deuses
que caíram do céu por conta da confusão da perda dos instrumentos divinos.
Esses deuses caídos se manifestam como chefes de labirintos. E, uma vez libertos,
podem ser candidatos a fazer parte da sua linhagem.
O
jogo é organizado em meses. Cada expedição a um labirinto toma pelo menos um
mês e, durante todo o tempo fora da sua base, há um relógio mostrando o passar
desse período. Lembre-se de que cada membro da sua família, na melhor das
hipóteses, vive 2 anos, sendo muito mais provável que ele viva menos,
especialmente se ele sofrer frequentes danos em batalha. Levando isso em
consideração, fica bem claro que a chave para entender Oreshika são os conceitos de gerenciamento de tempo e planejamento.
Assim,
quando um mês começa, é preciso pensar para qual labirinto se quer ir, se se
deve arriscar enfrentar um chefe, ou se talvez seja melhor apenas fortalecer os
membros mais jovens do clã, ou, ainda, qual integrante deve ficar na base
treinando aqueles que ainda são novos demais para sair em batalha. Uma vez nos
labirintos, há ainda diversos níveis de escolhas para fazer, por conta do
sistema de combate cheio de nuances.
Os
grupos de Oreshika são divididos em
dois tipos de membros: os comuns e os líderes. Isso vale tanto para monstros,
quanto para humanos, e até para o seu grupo. O que importa, na prática, é que o
líder de um grupo seja morto; quando ele é derrotado, a batalha acaba
instantaneamente, é ele quem guarda os itens e o dinheiro que você ganha ao
vencer, e é ele quem, ao morrer, oferece a maior quantidade de pontos de
devoção, que são os pontos usados tanto para os seus personagens passarem de
nível, quanto para você selecionar qual deus será o pai do próximo membro do
clã.
Porém,
matar os inimigos normais vai te propiciar mais pontos de devoção e, com isso,
você precisa fazer uma escolha: você foca seus ataques no líder e obtém os
itens rápido, sacrificando a experiência extra, ou luta por mais tempo,
arriscando receber mais ataques? Além do mais, se o líder se achar sozinho,
existe uma chance grande de ele simplesmente fugir, o que pode fazer você
perder a maior parte dos pontos, além dos itens e do dinheiro.
Com
isso, a famosa acusação que os jogos em turno recebem de ter um combate
simplificado, em que só se aperta um botão para vencer, simplesmente não
encontra nenhuma validade em Oreshika,
porque cada pequena batalha precisa ser pensada para maximizar seus ganhos e
minimizar seus riscos. Lembre-se: algumas batalhas malsucedidas são a diferença
entre um membro do clã morrendo dois ou três meses antes do esperado.
Falando
em membros do clã, o número de fatores a considerar na gestão da sua party é meio assustador a princípio. O
jogo conta com 8 classes básicas, cada uma com diferentes habilidades,
especialmente no tocante a que tipo de inimigos podem ser atacados. Um
arqueiro, por exemplo, pode atacar qualquer inimigo, mas só um por vez. Um
espadachim pode atacar apenas um inimigo também, mas apenas inimigos que
estejam na linha de frente; ele, porém, causa bastante dano. Já um dançarino
pode atacar qualquer uma das duas fileiras inimigas, mas o dano dos seus
ataques geralmente é baixo.
No
princípio do jogo, a estratégia mais óbvia é escolher o membro mais forte do
clã e fazer uma linhagem a partir dele: você escolhe o deus com os atributos
mais altos que sua devoção puder alcançar, e tem o máximo de filhos que puder
com esse membro mais forte. Porém, o jogo logo deixa essa tática defasada ao
introduzir habilidades chamadas de “artes secretas”, que são desenvolvidas
quando um personagem alcança determinados atributos e que só podem ser passadas
de pai para filho, ou seja, tanto pai quanto filho precisam ter a mesma classe.
Assim, o jogo direciona o jogador a manter três ou quatro pequenas
descendências dentro do clã.
E,
apesar de tudo que eu falei provavelmente estar misturado na sua cabeça de uma
forma confusa, já que são tantos fatores a considerar em cada momento desse
jogo, ele é estranhamente unificado dentro de um mesmo conceito: o de legado.
Tudo em Oreshika serve para te passar
o sentimento das dificuldades e dores de fazer escolhas que vão repercutir nas
gerações adiante e dos desafios de fazer progresso real quando as suas
capacidades são mais ou menos resetadas de tempos em tempos.
Na
prática, o jogo é centrado em pouquíssimos objetivos principais: você precisa
enfrentar o feiticeiro Seimei de tempos em tempos, até que finalmente você chega
à batalha final. Ele tem seus próprios objetivos também, não só o de sacanear o
seu clã, e as múltiplas batalhas com ele fazem algum sentido, pois você o vai
enfraquecendo aos poucos.
Entre
uma batalha com o Seimei e outra, você precisa se manter e, principalmente, se
fortificar. É essencial que cada geração do clã seja mais forte que a anterior,
porém isso não é simples. Deuses têm atributos radicalmente distintos,
especialmente no começo, o que te deixa muito inseguro na hora de escolher qual
o melhor caminho para determinado personagem na hora de gerar um filho.
Os chefes também são
fortemente voltados para algo que eu chamaria de gimmicks, ou seja, eles são radicalmente baseados em alguma tática
específica, demandando táticas também específicas para serem vencidos com
facilidade, o que pode ser um desastre para um certo personagem, enquanto pode
ser tranquilo para outros. Mas, você só vai ficar sabendo qual a melhor escolha
depois de ter feito a sua e, como eu disse, erros nesse jogo têm repercussão
sobre a vida dos seus personagens, e isso imediatamente gera repercussões no
seu clã e, claro, no seu progresso no jogo como um todo.
Assim,
um clã derrotado por um chefe no mês de abril pode não estar em condições de
enfrentar o Seimei em maio, o único mês em que ele vai estar disponível naquele
ano. Com isso, você perdeu o objetivo do ano. Sua equipe era forte, mas estava
abalada. Talvez em maio do ano seguinte, ela esteja composta apenas por membros
mais jovens e fracos, o que vai dificultar a luta. Talvez seja melhor esperar
dois anos inteiros. Momentos como esse fazem de Oreshika um jogo extremamente punitivo e te fazem pensar realmente
como planejamento e sorte influenciam quando a gente tem um objetivo a longo
prazo a cumprir.
Este
é um bom momento para falar que Oreshika
não apresenta opções de dificuldade, mas sim opções de tempo de jogo. Ele te
pergunta, basicamente, quanto tempo você quer gastar para zerar e aí adequa as
recompensas de acordo. Eu dei uma olhada em cada opção e aquela que me parece a
básica é justamente a chamada “fanática”, com o jogo prevendo uma playthrough de 100 horas. Eu acredito
que passei dessa estimativa.
E,
apesar desse tempo todo, o jogo nunca chegou a ser trivial para mim. Primeiro,
os gráficos, que lembram pinturas japonesas, são muito bonitos e frequentemente
impressionam. Segundo, embora os labirintos sejam poucos, e não muito
memoráveis, por terem layout
randomizado, os inimigos são bem diversos e com padrões específicos. E
terceiro, como eu disse, o jogo é composto por ameaças constantes de perda de
progresso, o que deixa tudo muito tenso, mesmo que você já esteja tão
familiarizado com ele.
Porém,
quando as coisas saem como deveriam e você contempla uma vitória, é difícil não
ficar muito feliz e olhar para trás, enxergando com satisfação todo o esforço
necessário para chegar onde se chegou. A gente lembra das gerações envolvidas
nas batalhas, nos personagens que fizeram a diferença, e às vezes até nas
últimas palavras de cada um deles antes de morrer. Você abre a árvore
genealógica do seu clã e contempla toda a longa jornada nessas mais de 100
horas e lembra das dificuldades e percalços.
Nesse
sentido, eu acredito que Oreshika
oferece uma reflexão e uma lição que são inestimáveis hoje em dia. Eu acho que
uma coisa que o mundo teve que perceber recentemente é como a história é algo
complicado de se prever, e que muitas vezes a gente quebra a cara por acreditar
que se anda sempre para frente e como é fácil dar um salto para trás se
estivermos desatentos e não trabalharmos para que nossas conquistas sejam,
antes de mais nada, duradouras.
Oreshika replica exatamente essa
experiência: embora seu objetivo seja sempre tão claro desde o começo do jogo,
e que dificilmente se altere até o final, a claridade desses objetivos não
necessariamente contribui para alcançá-los, e a trajetória até eles pode ser
muito longa, tortuosa e cheia de fracassos no meio do caminho. Algumas gerações
se perdem no processo por decisões estúpidas da geração seguinte ou mesmo por
um acaso.
Há
muito tempo a civilização humana busca por alguns valores essenciais, como paz,
bem-estar, respeito ao próximo, sustentabilidade, cooperação. São coisas muito
simples, mas não é simples colocá-las em prática. É um trajeto cheio de
desafios, e de fracassos também. E não é porque você conseguiu que os outros
também vão conseguir. E não é porque temos instituições que garantem certas
conquistas que estamos a salvo de regressões.
Oreshika é um jogo que mimetiza à
perfeição esse processo, as lutas constantes, as ameaças repentinas, as
regressões dolorosas. Mas, também, é um jogo que demonstra profunda reverência
pelo esforço dos já mortos e sincera esperança naqueles que virão. Em grande
medida, é um dos jogos mais fundamentais para entender a experiência humana em
sociedade.
E
era isso que eu queria dizer sobre Oreshika:
Tainted Bloodlines. Até a próxima análise!
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