quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Oreshika: Tainted Bloodlines - Pensando sobre o jogo




Olá! Hoje vou falar Oreshika: Tainted Bloodlines, jogo desenvolvido para PS Vita pelo estúdio Alpha System e pelo Japan Studio da Sony, e lançado em 2014 no Japão e em 2015 no Ocidente. Uma grande razão de este canal existir ainda neste ano é o fato de eu ter ficado frustrado por não ter dado tempo de falar desse jogo na sequência do ano passado; agora, finalmente, chegou o momento.

Primeiro, uma lição de história: Oreshika é a sequência de um jogo muito querido de PS1 e que nunca foi localizado no Ocidente. O termo “oreshika”, aliás, é uma forma abreviada do título do jogo original, que, traduzido, quer dizer algo como “siga além do que fui”, “conquiste mais do que eu conquistei”. É algo como uma exortação a alguém para que abrace seu legado e alcance, com ele, mais do que você mesmo pôde. Algo que um pai poderia falar para um filho, por exemplo. Mas logo a gente volta a isso.

Na prática, o jogo é um RPG de turnos em que o jogador controla um clã no Japão feudal. Esse clã era o responsável por proteger artefatos divinos que foram roubados, causando desastres naturais e o aparecimento de vários monstros. Para tentar agradar os deuses e fazer cessar os desastres, um feiticeiro convence o imperador a sacrificar o clã todo. Infelizmente, os deuses nada têm a ver com os desastres; é tudo um plano do feiticeiro, chamado Abe no Seimei.

Os deuses, porém, se compadecem da situação do clã e resolvem ressuscitá-lo. Todavia, uma maldição permanece sobre o clã, permitindo que cada membro viva apenas, em média, 2 anos. A magia dos deuses permite que cada membro do clã cresça rapidamente, e eles também se oferecem para ser os pais de futuros membros do clã, contanto que o clã faça por merecer essa honra.

Essa história complexa se converte em termos mecânicos da seguinte forma: como líder do clã, o jogador precisa organizar sua família de forma a executar ações gloriosas, para que ele obtenha o favor dos deuses, podendo, assim, fazer sua descendência ser cada vez mais poderosa, a ponto de finalmente vencer o feiticeiro Seimei que, num primeiro momento, parece invulnerável. Essas ações gloriosas são compostas por, basicamente, derrotar monstros e libertar deuses que caíram do céu por conta da confusão da perda dos instrumentos divinos. Esses deuses caídos se manifestam como chefes de labirintos. E, uma vez libertos, podem ser candidatos a fazer parte da sua linhagem.

O jogo é organizado em meses. Cada expedição a um labirinto toma pelo menos um mês e, durante todo o tempo fora da sua base, há um relógio mostrando o passar desse período. Lembre-se de que cada membro da sua família, na melhor das hipóteses, vive 2 anos, sendo muito mais provável que ele viva menos, especialmente se ele sofrer frequentes danos em batalha. Levando isso em consideração, fica bem claro que a chave para entender Oreshika são os conceitos de gerenciamento de tempo e planejamento.

Assim, quando um mês começa, é preciso pensar para qual labirinto se quer ir, se se deve arriscar enfrentar um chefe, ou se talvez seja melhor apenas fortalecer os membros mais jovens do clã, ou, ainda, qual integrante deve ficar na base treinando aqueles que ainda são novos demais para sair em batalha. Uma vez nos labirintos, há ainda diversos níveis de escolhas para fazer, por conta do sistema de combate cheio de nuances.

Os grupos de Oreshika são divididos em dois tipos de membros: os comuns e os líderes. Isso vale tanto para monstros, quanto para humanos, e até para o seu grupo. O que importa, na prática, é que o líder de um grupo seja morto; quando ele é derrotado, a batalha acaba instantaneamente, é ele quem guarda os itens e o dinheiro que você ganha ao vencer, e é ele quem, ao morrer, oferece a maior quantidade de pontos de devoção, que são os pontos usados tanto para os seus personagens passarem de nível, quanto para você selecionar qual deus será o pai do próximo membro do clã.

Porém, matar os inimigos normais vai te propiciar mais pontos de devoção e, com isso, você precisa fazer uma escolha: você foca seus ataques no líder e obtém os itens rápido, sacrificando a experiência extra, ou luta por mais tempo, arriscando receber mais ataques? Além do mais, se o líder se achar sozinho, existe uma chance grande de ele simplesmente fugir, o que pode fazer você perder a maior parte dos pontos, além dos itens e do dinheiro.

Com isso, a famosa acusação que os jogos em turno recebem de ter um combate simplificado, em que só se aperta um botão para vencer, simplesmente não encontra nenhuma validade em Oreshika, porque cada pequena batalha precisa ser pensada para maximizar seus ganhos e minimizar seus riscos. Lembre-se: algumas batalhas malsucedidas são a diferença entre um membro do clã morrendo dois ou três meses antes do esperado.

Falando em membros do clã, o número de fatores a considerar na gestão da sua party é meio assustador a princípio. O jogo conta com 8 classes básicas, cada uma com diferentes habilidades, especialmente no tocante a que tipo de inimigos podem ser atacados. Um arqueiro, por exemplo, pode atacar qualquer inimigo, mas só um por vez. Um espadachim pode atacar apenas um inimigo também, mas apenas inimigos que estejam na linha de frente; ele, porém, causa bastante dano. Já um dançarino pode atacar qualquer uma das duas fileiras inimigas, mas o dano dos seus ataques geralmente é baixo.

No princípio do jogo, a estratégia mais óbvia é escolher o membro mais forte do clã e fazer uma linhagem a partir dele: você escolhe o deus com os atributos mais altos que sua devoção puder alcançar, e tem o máximo de filhos que puder com esse membro mais forte. Porém, o jogo logo deixa essa tática defasada ao introduzir habilidades chamadas de “artes secretas”, que são desenvolvidas quando um personagem alcança determinados atributos e que só podem ser passadas de pai para filho, ou seja, tanto pai quanto filho precisam ter a mesma classe. Assim, o jogo direciona o jogador a manter três ou quatro pequenas descendências dentro do clã.

E, apesar de tudo que eu falei provavelmente estar misturado na sua cabeça de uma forma confusa, já que são tantos fatores a considerar em cada momento desse jogo, ele é estranhamente unificado dentro de um mesmo conceito: o de legado. Tudo em Oreshika serve para te passar o sentimento das dificuldades e dores de fazer escolhas que vão repercutir nas gerações adiante e dos desafios de fazer progresso real quando as suas capacidades são mais ou menos resetadas de tempos em tempos.

Na prática, o jogo é centrado em pouquíssimos objetivos principais: você precisa enfrentar o feiticeiro Seimei de tempos em tempos, até que finalmente você chega à batalha final. Ele tem seus próprios objetivos também, não só o de sacanear o seu clã, e as múltiplas batalhas com ele fazem algum sentido, pois você o vai enfraquecendo aos poucos.

Entre uma batalha com o Seimei e outra, você precisa se manter e, principalmente, se fortificar. É essencial que cada geração do clã seja mais forte que a anterior, porém isso não é simples. Deuses têm atributos radicalmente distintos, especialmente no começo, o que te deixa muito inseguro na hora de escolher qual o melhor caminho para determinado personagem na hora de gerar um filho.

Os chefes também são fortemente voltados para algo que eu chamaria de gimmicks, ou seja, eles são radicalmente baseados em alguma tática específica, demandando táticas também específicas para serem vencidos com facilidade, o que pode ser um desastre para um certo personagem, enquanto pode ser tranquilo para outros. Mas, você só vai ficar sabendo qual a melhor escolha depois de ter feito a sua e, como eu disse, erros nesse jogo têm repercussão sobre a vida dos seus personagens, e isso imediatamente gera repercussões no seu clã e, claro, no seu progresso no jogo como um todo.

Assim, um clã derrotado por um chefe no mês de abril pode não estar em condições de enfrentar o Seimei em maio, o único mês em que ele vai estar disponível naquele ano. Com isso, você perdeu o objetivo do ano. Sua equipe era forte, mas estava abalada. Talvez em maio do ano seguinte, ela esteja composta apenas por membros mais jovens e fracos, o que vai dificultar a luta. Talvez seja melhor esperar dois anos inteiros. Momentos como esse fazem de Oreshika um jogo extremamente punitivo e te fazem pensar realmente como planejamento e sorte influenciam quando a gente tem um objetivo a longo prazo a cumprir.

Este é um bom momento para falar que Oreshika não apresenta opções de dificuldade, mas sim opções de tempo de jogo. Ele te pergunta, basicamente, quanto tempo você quer gastar para zerar e aí adequa as recompensas de acordo. Eu dei uma olhada em cada opção e aquela que me parece a básica é justamente a chamada “fanática”, com o jogo prevendo uma playthrough de 100 horas. Eu acredito que passei dessa estimativa.

E, apesar desse tempo todo, o jogo nunca chegou a ser trivial para mim. Primeiro, os gráficos, que lembram pinturas japonesas, são muito bonitos e frequentemente impressionam. Segundo, embora os labirintos sejam poucos, e não muito memoráveis, por terem layout randomizado, os inimigos são bem diversos e com padrões específicos. E terceiro, como eu disse, o jogo é composto por ameaças constantes de perda de progresso, o que deixa tudo muito tenso, mesmo que você já esteja tão familiarizado com ele.

Porém, quando as coisas saem como deveriam e você contempla uma vitória, é difícil não ficar muito feliz e olhar para trás, enxergando com satisfação todo o esforço necessário para chegar onde se chegou. A gente lembra das gerações envolvidas nas batalhas, nos personagens que fizeram a diferença, e às vezes até nas últimas palavras de cada um deles antes de morrer. Você abre a árvore genealógica do seu clã e contempla toda a longa jornada nessas mais de 100 horas e lembra das dificuldades e percalços.

Nesse sentido, eu acredito que Oreshika oferece uma reflexão e uma lição que são inestimáveis hoje em dia. Eu acho que uma coisa que o mundo teve que perceber recentemente é como a história é algo complicado de se prever, e que muitas vezes a gente quebra a cara por acreditar que se anda sempre para frente e como é fácil dar um salto para trás se estivermos desatentos e não trabalharmos para que nossas conquistas sejam, antes de mais nada, duradouras.

Oreshika replica exatamente essa experiência: embora seu objetivo seja sempre tão claro desde o começo do jogo, e que dificilmente se altere até o final, a claridade desses objetivos não necessariamente contribui para alcançá-los, e a trajetória até eles pode ser muito longa, tortuosa e cheia de fracassos no meio do caminho. Algumas gerações se perdem no processo por decisões estúpidas da geração seguinte ou mesmo por um acaso.

Há muito tempo a civilização humana busca por alguns valores essenciais, como paz, bem-estar, respeito ao próximo, sustentabilidade, cooperação. São coisas muito simples, mas não é simples colocá-las em prática. É um trajeto cheio de desafios, e de fracassos também. E não é porque você conseguiu que os outros também vão conseguir. E não é porque temos instituições que garantem certas conquistas que estamos a salvo de regressões.

Oreshika é um jogo que mimetiza à perfeição esse processo, as lutas constantes, as ameaças repentinas, as regressões dolorosas. Mas, também, é um jogo que demonstra profunda reverência pelo esforço dos já mortos e sincera esperança naqueles que virão. Em grande medida, é um dos jogos mais fundamentais para entender a experiência humana em sociedade.

E era isso que eu queria dizer sobre Oreshika: Tainted Bloodlines. Até a próxima análise!

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