segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Grand Theft Auto IV - Pensando sobre o jogo




Olá! Hoje vou falar de GTA IV, jogo desenvolvido pela Rockstar North e lançado para Xbox 360, PS3 e PC em 2008. Trata-se de um jogo que ocupa um lugar polêmico dentro da sua franquia, mas que esconde também algumas observações bem interessantes sobre o mundo que retrata.

GTA é uma série que praticamente dispensa apresentações, provavelmente ficando atrás só de Mario em termos de reconhecimento. Porém, para fins de discussão neste texto, eu vou referenciar bastante os outros jogos da série, e eu recomendo assistir aos meus vídeos sobre a franquia, ou pelo menos o texto dedicado a San Andreas, jogo imediatamente anterior a GTA IV.

Eu digo isso porque GTA IV vive um caso sério de ser assombrado pelo fantasma do seu antecessor. Como San Andreas e os demais jogos da série em 3D, GTA IV é um jogo de mundo aberto, que se passa numa cidade com diversas referências à cultura americana, e em que as mecânicas primordiais são roubar carros, dirigi-los e se envolver em tiroteios diversos, geralmente personificando alguém fora da lei.

Porém, até este momento, a série vivia um ritmo crescente daquilo que eu chamei de expansão horizontal, com inúmeros minigames e mecânicas simples sendo adicionadas ao modelo de mundo aberto proposto em GTA III, e que chegou a um número bastante considerável em San Andreas. Como eu disse antes, não se tratava de nada que demandasse habilidade ou cuidado da parte do jogador, mas eram mecânicas que distraiam e tornavam a experiência mais diversificada, permitindo que cada jogador pudesse investir seu tempo naquilo que lhe interessasse mais.

GTA IV é o primeiro momento na série em que há um encolhimento na estrutura do mundo aberto, pelo menos se a gente excetuar os jogos feitos para portátil. Algumas das atividades extras desaparecem, e algumas das mecânicas simplesmente somem, como as opções de customização física, que acabam restritas a roupas. Eu não fiz uma conta exata, ou algo assim, mas a impressão que eu tive é que a variedade de veículos também é menor, e certamente o ambiente se torna mais uniforme, com o foco sendo apenas na cidade de Liberty City, em vez da coleção de espaços que vemos em San Andreas.

Há inúmeras hipóteses para explicar esse fenômeno, com a principal provavelmente sendo o salto tecnológico demandado pela transição para HD, que intensifica o trabalho necessário para criar cada parte de um jogo, e provavelmente exigiu abandonar os itens prontos desde GTA III e que eram mais ou menos reutilizados até San Andreas.

Para além disso, porém, é preciso destacar que houve um esforço para, digamos, verticalizar as mecânicas incluídas em GTA IV, o que as tornou muito mais complexas do que até então na série: dirigir se tornou bem mais complicado, com os carros sendo muito mais lentos para te obedecer, especialmente no tocante a frear; foi introduzido um sistema de cover no combate, em oposição ao algo desajeitado combate simples anterior, o que tornou tudo mais estratégico em termos de movimentação.

Você pode ver essa verticalização até nos espaços em si: eles podem representar uma cidade só, mas você percebe, ao explorar, as diferenças econômicas entre uma ilha e outra, com a arquitetura, a iluminação, as lojas etc. sempre trabalhando juntas para criar um espaço coerente com dinâmicas urbanísticas.

Além do mais, houve também adições específicas ao modelo de mundo aberto, como táxis que te levam de um ponto a outro no mapa; um celular e computadores que permitem interagir com personagens e missões de forma mais rápida; missões breves com personagens menores; e ainda um sistema de relacionamento que te permite interagir com diversos NPCs, o que torna mais forte a relação do protagonista com eles e pode oferecer alguns benefícios específicos.

Infelizmente, porém, diversas dessas atividades são muito simples e repetitivas, o que não é um problema em si quando a gente fala de GTA, mas acaba se tornando complicado pelo fato de que diversos desses NPCs acabam procurando o protagonista e o chamando para passeios que, caso sejam recusados, geram efeitos negativos no relacionamento que você pode ter já investido bastante para estabelecer. O jogador acaba sendo pressionado a desviar seus planos constantemente por causa disso, o que acaba sendo frustrante. Certamente seria necessário espaçar um pouco mais esses convites.

Afora isso, além das rádios, com sua boa seleção de músicas dos anos 2000, há também falsas emissoras de TV, com programas satíricos voltados a rir de muitas das ideias e práticas americanas. Na verdade, muito da sátira que se tornou algo esperado de GTA acabou contido dentro das rádios e da TV, o que certamente influenciou no tom geral do jogo, ou vice-versa, como eu vou falar mais adiante.

O fato, então, é que GTA IV investiu muito mais no detalhismo em cada uma de suas estruturas, em vez da expansão horizontal que era característica da série. Os gráficos e as texturas permitem ver uma cidade muito mais viva, e há inúmeros vídeos mostrando como as animações e reações dos NPCs e do protagonista contemplam um vasto espectro, o que definitivamente desmente a ideia de que o jogo é menos ambicioso do que os seus predecessores. Porém, sua ambição se deu em outras direções, e isso certamente acaba gerando insatisfação de fãs que estão acostumados a ver uma série remando sempre no mesmo rumo.

Particularmente, como alguns outros textos deste canal talvez denunciem, eu prefiro um espaço menor e maior trabalho e familiaridade com menos mecânicas, então as mudanças de GTA IV foram bem-vindas. Mas, é impossível negar que o fantasma de San Andreas permanece em termos de coisas que se pode ou não fazer naquele mundo.

Onde, porém, o legado de San Andreas parece mais forte em GTA IV é na história. Isso, a princípio, parece algo estranho de se dizer, já que, enquanto GTA IV, no geral, parece muito focado em um só tom, San Andreas era como uma coleção de top hits da Rockstar, com o devido momento para a seriedade e para as maluquices, e apontando até para uma mensagem maior ao final. Porém, a natureza da mensagem nos dois jogos me parece semelhante, embora GTA IV abandone veementemente o tom maluco que marcava tão fortemente o meio de San Andreas.

GTA IV conta a história de Niko Bellic, um emigrante do leste europeu que chega aos Estados Unidos, seja fugindo de inimigos de sua terra natal, seja procurando o sonho americano, seja buscando alguém responsável por uma experiência traumática que teve durante a guerra de que participou.

Responsável por recebê-lo na América está seu primo Roman, um otimista e escrachado mentiroso que fez Niko acreditar que a vida lá era fácil. Ao chegar, porém, Niko encontra mais problemas que soluções e, em vez de poder se afastar de sua vida de violência, precisa voltar a fazer a única atividade para a qual ele tem algum treinamento: a violência.

Este elemento que eu acabei de mencionar – o fato de que Niko não quer mais saber de violência – é um elemento que estava destinado a se chocar com a forma como uma grande parte das pessoas joga GTA: criando caos, matando NPCs, etc. Certamente essa dissonância não era planejada, e cria um novo debate sobre até que ponto você pode esperar, como desenvolvedor, que um jogador colabore com a experiência que você quer criar.

GTA IV ainda é sobre violência e sobre a trajetória de um homem violento. Porém, trata-se de uma pessoa cuja ira é direcionada a certos objetivos e cujo uso da violência é mais ou menos profissional, com uma ou outra explosão apenas em momentos de tensão. Tal violência não combina com os rompantes aleatórios que um jogador pode ter e que o jogo inegavelmente permite.

Nisso certamente entra a experiência do jogador: eu não tenho o hábito desses rompantes, portanto o Niko que eu controlava nunca saiu do papel que a Rockstar queria que ele desempenhasse. Porém, isso não se aplica a todo jogador, e merece um longo debate, seja sobre até que ponto limitar a experiência é válido para o desenvolvedor, seja sobre se não é melhor colaborar com o jogo, enquanto jogador, para tentar tirar o máximo dele em termos de experiência. Gostaria bastante de saber a opinião de vocês sobre isso nos comentários.

De qualquer forma, a trajetória de Niko acaba sendo uma representação da situação de imigrantes numa nova sociedade, e é fácil notar certos significados ao percebermos o que há de único na estrutura da história de GTA IV. Uma das primeiras coisas que fica claro sobre as missões de Niko é que elas não têm um objetivo direto que não seja ganhar a vida. Até o final do jogo, a única questão que o norteia é dinheiro para fazer sua vida e a do seu primo mais fáceis. Ou seja, só o que ele quer é subsistir e se inserir nessa sociedade.

A questão de procurar o traidor da sua tropa é um ponto importante, mas pouquíssimas das missões feitas claramente se ligam a esse objetivo, e o fato de que o jogo não acaba uma vez que essa busca é resolvida indica que não se tratava disso, mas sim da relação do Niko com a cidade, com aquilo que ela espera dele, mas não só dele, e sim de todo imigrante.

Um tema bastante importante em GTA IV é, como você vê na história do Niko, o impulso do imigrante por se inserir na nova sociedade. Mas, isso se expande para além do protagonista. Uma das coisas mais interessantes desse jogo é como praticamente todos os personagens que fornecem missões e trabalham à margem da lei são, eles também, imigrantes, ou se definem como algo que não americanos: russos, jamaicanos, hispânicos, irlandeses, judeus.

Mesmo aqueles que têm raízes mais claramente americanas têm o mesmo objetivo de se inserir na sociedade – como pequenos mafiosos italianos que seguem sendo rejeitados pelos gângsters antigos, ou negros em ascensão social que sentem que precisam passar por cima de todos para conseguir reconhecimento e, enfim, mudar algo. Em última instância, a América de GTA IV é um local que propagandeia uma abertura cultural e econômica, mas, na prática, sistematicamente fecha suas portas a todos.

Mais interessante ainda, as duas figuras de autoridade que aparecem no jogo, um capitão da polícia e o chefe de um serviço secreto não especificado, preferem usar a mão de obra imigrante para agir ilegalmente, como se a situação precária em que esses indivíduos vivem fosse perfeita para ser abusada sem repercussão pelas estruturas mais típicas daquele mundo.

Tudo isso cria um mundo de disputa constante entre imigrantes que usam imigrantes para atingir outros imigrantes, e no qual os esforços necessários geralmente não levam a nada muito produtivo. No final do jogo, é muito difícil indicar algo que o protagonista tenha ganhado. Aliás, ele mesmo não parece ver nada de útil que tenha resultado das suas ações. Além do mais, diversas missões simplesmente acabam em fracasso, morte de algum companheiro ou repercussões que certamente não valiam o esforço empreendido.

Com isso, a trajetória de Niko é, antes de tudo, de desapontamento e perda. Algumas escolhas podem ser feitas ao longo do jogo, mas o resultado de todas acaba tendo um lado fortemente negativo. E isso soa excepcionalmente estranho quando a gente compara a trajetória de Niko com a de CJ em San Andreas, na qual há uma confiança intrínseca no valor de proteger a própria comunidade apesar dos grilhões estruturais que a própria sociedade coloca.

É como se a Rockstar tivesse procurado alguém que estivesse em situação mais precária que o jovem negro da periferia e encontrasse o imigrante, aquele para quem não há como proteger a própria comunidade, visto que ele fugiu dela, e cuja única saída é buscar construir algo em um lugar que não é seu e pelo qual você terá que disputar, numa batalha cujo resultado muito provavelmente carrega mais negativos do que qualquer um gostaria de admitir.

É provavelmente por isto que o tom satírico do jogo acabou algo esvaziado e jogado para escanteio nas rádios e emissoras de TV: a vida de Niko é muito focada na própria sobrevivência, naquilo que ele deixou para trás e ainda o marca, e nas perdas constantes do hoje. É um jogo certamente muito melancólico e amargo.

Se a série GTA, então, se configurou como uma sátira do sonho americano, é bastante coerente que o tom satírico suma no momento em que se coloca sob o holofote alguém para quem o sonho americano efetivamente não existe. Com isso, GTA IV acaba sendo um jogo não tão bem recebido pela comunidade, que esperava certo tom e experiência, mas que é coerente com o que propõe e faz uma análise impiedosa da situação do imigrante, um assunto que, aliás, só se tornou mais relevante de lá para cá.

E era isso que eu queria dizer sobre GTA IV. É algo como um estranho no ninho da série, mas que segue com cuidado a demanda por uma mensagem socialmente relevante, que começou com San Andreas. Até a próxima análise!

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