Olá!
Hoje vou falar de GTA IV, jogo desenvolvido pela Rockstar
North e lançado para Xbox 360, PS3 e PC em 2008. Trata-se de um jogo que ocupa
um lugar polêmico dentro da sua franquia, mas que esconde também algumas
observações bem interessantes sobre o mundo que retrata.
GTA é uma série que praticamente
dispensa apresentações, provavelmente ficando atrás só de Mario em termos de reconhecimento. Porém, para fins de discussão
neste texto, eu vou referenciar bastante os outros jogos da série, e eu
recomendo assistir aos meus vídeos sobre a franquia, ou pelo menos o texto dedicado a
San Andreas, jogo imediatamente
anterior a GTA IV.
Eu
digo isso porque GTA IV vive um caso
sério de ser assombrado pelo fantasma do seu antecessor. Como San Andreas e os demais jogos da série
em 3D, GTA IV é um jogo de mundo
aberto, que se passa numa cidade com diversas referências à cultura americana,
e em que as mecânicas primordiais são roubar carros, dirigi-los e se envolver
em tiroteios diversos, geralmente personificando alguém fora da lei.
Porém,
até este momento, a série vivia um ritmo crescente daquilo que eu chamei de
expansão horizontal, com inúmeros minigames
e mecânicas simples sendo adicionadas ao modelo de mundo aberto proposto em GTA III, e que chegou a um número
bastante considerável em San Andreas.
Como eu disse antes, não se tratava de nada que demandasse habilidade ou
cuidado da parte do jogador, mas eram mecânicas que distraiam e tornavam a
experiência mais diversificada, permitindo que cada jogador pudesse investir
seu tempo naquilo que lhe interessasse mais.
GTA IV é o primeiro momento na série em
que há um encolhimento na estrutura do mundo aberto, pelo menos se a gente
excetuar os jogos feitos para portátil. Algumas das atividades extras
desaparecem, e algumas das mecânicas simplesmente somem, como as opções de
customização física, que acabam restritas a roupas. Eu não fiz uma conta exata,
ou algo assim, mas a impressão que eu tive é que a variedade de veículos também
é menor, e certamente o ambiente se torna mais uniforme, com o foco sendo
apenas na cidade de Liberty City, em vez da coleção de espaços que vemos em San Andreas.
Há
inúmeras hipóteses para explicar esse fenômeno, com a principal provavelmente
sendo o salto tecnológico demandado pela transição para HD, que intensifica o
trabalho necessário para criar cada parte de um jogo, e provavelmente exigiu
abandonar os itens prontos desde GTA III
e que eram mais ou menos reutilizados até San
Andreas.
Para
além disso, porém, é preciso destacar que houve um esforço para, digamos,
verticalizar as mecânicas incluídas em GTA
IV, o que as tornou muito mais complexas do que até então na série: dirigir
se tornou bem mais complicado, com os carros sendo muito mais lentos para te
obedecer, especialmente no tocante a frear; foi introduzido um sistema de cover no combate, em oposição ao algo
desajeitado combate simples anterior, o que tornou tudo mais estratégico em
termos de movimentação.
Você
pode ver essa verticalização até nos espaços em si: eles podem representar uma
cidade só, mas você percebe, ao explorar, as diferenças econômicas entre uma
ilha e outra, com a arquitetura, a iluminação, as lojas etc. sempre trabalhando
juntas para criar um espaço coerente com dinâmicas urbanísticas.
Além
do mais, houve também adições específicas ao modelo de mundo aberto, como táxis
que te levam de um ponto a outro no mapa; um celular e computadores que
permitem interagir com personagens e missões de forma mais rápida; missões
breves com personagens menores; e ainda um sistema de relacionamento que te
permite interagir com diversos NPCs, o que torna mais forte a relação do
protagonista com eles e pode oferecer alguns benefícios específicos.
Infelizmente, porém,
diversas dessas atividades são muito simples e repetitivas, o que não é um
problema em si quando a gente fala de GTA,
mas acaba se tornando complicado pelo fato de que diversos desses NPCs acabam
procurando o protagonista e o chamando para passeios que, caso sejam recusados,
geram efeitos negativos no relacionamento que você pode ter já investido
bastante para estabelecer. O jogador acaba sendo pressionado a desviar seus
planos constantemente por causa disso, o que acaba sendo frustrante. Certamente
seria necessário espaçar um pouco mais esses convites.
Afora isso, além das
rádios, com sua boa seleção de músicas dos anos 2000, há também falsas
emissoras de TV, com programas satíricos voltados a rir de muitas das ideias e
práticas americanas. Na verdade, muito da sátira que se tornou algo esperado de
GTA acabou contido dentro das rádios
e da TV, o que certamente influenciou no tom geral do jogo, ou vice-versa, como
eu vou falar mais adiante.
O fato, então, é que GTA IV investiu muito mais no detalhismo
em cada uma de suas estruturas, em vez da expansão horizontal que era
característica da série. Os gráficos e as texturas permitem ver uma cidade
muito mais viva, e há inúmeros vídeos mostrando como as animações e reações dos
NPCs e do protagonista contemplam um vasto espectro, o que definitivamente desmente
a ideia de que o jogo é menos ambicioso do que os seus predecessores. Porém,
sua ambição se deu em outras direções, e isso certamente acaba gerando
insatisfação de fãs que estão acostumados a ver uma série remando sempre no
mesmo rumo.
Particularmente, como
alguns outros textos deste canal talvez denunciem, eu prefiro um espaço menor e
maior trabalho e familiaridade com menos mecânicas, então as mudanças de GTA IV foram bem-vindas. Mas, é
impossível negar que o fantasma de San
Andreas permanece em termos de coisas que se pode ou não fazer naquele
mundo.
Onde, porém, o legado
de San Andreas parece mais forte em GTA IV é na história. Isso, a princípio,
parece algo estranho de se dizer, já que, enquanto GTA IV, no geral, parece muito focado em um só tom, San Andreas era como uma coleção de top hits da Rockstar, com o devido
momento para a seriedade e para as maluquices, e apontando até para uma
mensagem maior ao final. Porém, a natureza da mensagem nos dois jogos me parece
semelhante, embora GTA IV abandone
veementemente o tom maluco que marcava tão fortemente o meio de San Andreas.
GTA
IV
conta a história de Niko Bellic, um emigrante do leste europeu que chega aos
Estados Unidos, seja fugindo de inimigos de sua terra natal, seja procurando o
sonho americano, seja buscando alguém responsável por uma experiência
traumática que teve durante a guerra de que participou.
Responsável por
recebê-lo na América está seu primo Roman, um otimista e escrachado mentiroso
que fez Niko acreditar que a vida lá era fácil. Ao chegar, porém, Niko encontra
mais problemas que soluções e, em vez de poder se afastar de sua vida de
violência, precisa voltar a fazer a única atividade para a qual ele tem algum
treinamento: a violência.
Este elemento que eu
acabei de mencionar – o fato de que Niko não quer mais saber de violência – é
um elemento que estava destinado a se chocar com a forma como uma grande parte
das pessoas joga GTA: criando caos,
matando NPCs, etc. Certamente essa dissonância não era planejada, e cria um
novo debate sobre até que ponto você pode esperar, como desenvolvedor, que um
jogador colabore com a experiência que você quer criar.
GTA
IV
ainda é sobre violência e sobre a trajetória de um homem violento. Porém,
trata-se de uma pessoa cuja ira é direcionada a certos objetivos e cujo uso da
violência é mais ou menos profissional, com uma ou outra explosão apenas em
momentos de tensão. Tal violência não combina com os rompantes aleatórios que
um jogador pode ter e que o jogo inegavelmente permite.
Nisso certamente entra
a experiência do jogador: eu não tenho o hábito desses rompantes, portanto o
Niko que eu controlava nunca saiu do papel que a Rockstar queria que ele
desempenhasse. Porém, isso não se aplica a todo jogador, e merece um longo
debate, seja sobre até que ponto limitar a experiência é válido para o
desenvolvedor, seja sobre se não é melhor colaborar com o jogo, enquanto
jogador, para tentar tirar o máximo dele em termos de experiência. Gostaria
bastante de saber a opinião de vocês sobre isso nos comentários.
De qualquer forma, a
trajetória de Niko acaba sendo uma representação da situação de imigrantes numa
nova sociedade, e é fácil notar certos significados ao percebermos o que há de
único na estrutura da história de GTA IV.
Uma das primeiras coisas que fica claro sobre as missões de Niko é que elas não
têm um objetivo direto que não seja ganhar a vida. Até o final do jogo, a única
questão que o norteia é dinheiro para fazer sua vida e a do seu primo mais
fáceis. Ou seja, só o que ele quer é subsistir e se inserir nessa sociedade.
A questão de procurar o
traidor da sua tropa é um ponto importante, mas pouquíssimas das missões feitas
claramente se ligam a esse objetivo, e o fato de que o jogo não acaba uma vez
que essa busca é resolvida indica que não se tratava disso, mas sim da relação
do Niko com a cidade, com aquilo que ela espera dele, mas não só dele, e sim de
todo imigrante.
Um tema bastante
importante em GTA IV é, como você vê
na história do Niko, o impulso do imigrante por se inserir na nova sociedade.
Mas, isso se expande para além do protagonista. Uma das coisas mais
interessantes desse jogo é como praticamente todos os personagens que fornecem
missões e trabalham à margem da lei são, eles também, imigrantes, ou se definem
como algo que não americanos: russos, jamaicanos, hispânicos, irlandeses,
judeus.
Mesmo aqueles que têm
raízes mais claramente americanas têm o mesmo objetivo de se inserir na
sociedade – como pequenos mafiosos italianos que seguem sendo rejeitados pelos
gângsters antigos, ou negros em ascensão social que sentem que precisam passar
por cima de todos para conseguir reconhecimento e, enfim, mudar algo. Em última
instância, a América de GTA IV é um
local que propagandeia uma abertura cultural e econômica, mas, na prática,
sistematicamente fecha suas portas a todos.
Mais interessante
ainda, as duas figuras de autoridade que aparecem no jogo, um capitão da
polícia e o chefe de um serviço secreto não especificado, preferem usar a mão
de obra imigrante para agir ilegalmente, como se a situação precária em que
esses indivíduos vivem fosse perfeita para ser abusada sem repercussão pelas
estruturas mais típicas daquele mundo.
Tudo isso cria um mundo
de disputa constante entre imigrantes que usam imigrantes para atingir outros
imigrantes, e no qual os esforços necessários geralmente não levam a nada muito
produtivo. No final do jogo, é muito difícil indicar algo que o protagonista
tenha ganhado. Aliás, ele mesmo não parece ver nada de útil que tenha resultado
das suas ações. Além do mais, diversas missões simplesmente acabam em fracasso,
morte de algum companheiro ou repercussões que certamente não valiam o esforço
empreendido.
Com isso, a trajetória
de Niko é, antes de tudo, de desapontamento e perda. Algumas escolhas podem ser
feitas ao longo do jogo, mas o resultado de todas acaba tendo um lado
fortemente negativo. E isso soa excepcionalmente estranho quando a gente
compara a trajetória de Niko com a de CJ em San
Andreas, na qual há uma confiança intrínseca no valor de proteger a própria
comunidade apesar dos grilhões estruturais que a própria sociedade coloca.
É como se a Rockstar
tivesse procurado alguém que estivesse em situação mais precária que o jovem
negro da periferia e encontrasse o imigrante, aquele para quem não há como
proteger a própria comunidade, visto que ele fugiu dela, e cuja única saída é
buscar construir algo em um lugar que não é seu e pelo qual você terá que
disputar, numa batalha cujo resultado muito provavelmente carrega mais
negativos do que qualquer um gostaria de admitir.
É provavelmente por
isto que o tom satírico do jogo acabou algo esvaziado e jogado para escanteio
nas rádios e emissoras de TV: a vida de Niko é muito focada na própria
sobrevivência, naquilo que ele deixou para trás e ainda o marca, e nas perdas
constantes do hoje. É um jogo certamente muito melancólico e amargo.
Se a série GTA, então, se configurou como uma
sátira do sonho americano, é bastante coerente que o tom satírico suma no
momento em que se coloca sob o holofote alguém para quem o sonho americano
efetivamente não existe. Com isso, GTA IV
acaba sendo um jogo não tão bem recebido pela comunidade, que esperava certo
tom e experiência, mas que é coerente com o que propõe e faz uma análise
impiedosa da situação do imigrante, um assunto que, aliás, só se tornou mais relevante
de lá para cá.
E era isso que eu
queria dizer sobre GTA IV. É algo
como um estranho no ninho da série, mas que segue com cuidado a demanda por uma
mensagem socialmente relevante, que começou com San Andreas. Até a próxima análise!
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