quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Cart life - Pensando sobre o jogo




Olá! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Cart Life, jogo desenvolvido por Richard Hofmeier, e lançado em 2010 para PC. Ele passou pela Steam há um tempo, mas agora ele é gratuito.

Cart Life tem um parente próximo de que eu gosto muito, que é Papers, Please: a própria estética visual já revela isso, com gráficos bem simples e uma escolha pelo cinza como predominante. Entretanto, enquanto Papers, please adota algumas outras cores, embora sempre de uma forma pouco vibrante, Cart Life assume 100% a estética em preto e branco.

Se a estética visual é simples, o mesmo vale para a proposta do jogo, pelo menos num primeiro momento: você pode escolher jogar com três personagens, Vinny, Melanie e Andrus, três vendedores de rua em busca de algumas pequenas conquistas num breve período de tempo, com todas envolvendo ganhar dinheiro com o seu negócio.

Entretanto, para executar esses objetivos, absolutamente nada é simples. No caso da Melanie, por exemplo, é preciso montar uma barraca para vender café e outras bebidas. Isso significa comprar o stand, equipá-lo com os instrumentos certos, comprar os ingredientes, pedir autorização da prefeitura para montar o negócio em certo bairro, estabelecer preços adequados, preparar cada produto, cobrar preços exatos e dar o troco eventual.

E, claro, além disso, é preciso lembrar que você controla uma pessoa, o que significa que ela se cansa, que o tempo dela é limitado, que ela precisa comer e que talvez ela tenha compromissos importantes e inadiáveis. Voltando ao exemplo da Melanie, ela precisa levar e buscar a filha na escola em horários definidos todos os dias, e o objetivo final dela é juntar 1000 dólares em uma semana para provar que pode manter um estilo de vida estável para continuar com a guarda da filha.

Outros desafios têm consequências menos imediatas e acontecem apenas na mente do jogador. O Vinny é viciado em cafeína, e alimentar esse vício nunca cria nenhum problema no jogo; pelo contrário: tomar café deixa o personagem mais rápido na sua movimentação pela cidade. Porém, o jogador sabe que tomar café não será bom para ele a longo prazo, o que estabelece uma sutil escolha moral sobre como o jogador e a pressão com que ele tem que lidar acabam levando a maus hábitos.

E pressão é o foco de Cart Life, representada, obviamente, pelo timer que torna tudo muito difícil para o jogador. Cada dia passa muito mais rápido do que seria ideal e, assim, o tempo para cumprir a missão geral voa e leva a uma agonia que perpassa toda a experiência, e que aponta as mil dificuldades em lidar com um pequeno comércio em um contexto que exige decisões rápidas.

Por exemplo, é possível achar fornecedores melhores do que o supermercado principal da cidade, mas isso exige explorar a cidade, e não há tempo para isso. Decidir quais preços funcionam melhor em cada vizinhança também é algo que acaba sendo feito conforme se joga, e se você percebe que a maioria dos clientes pagaria 4 dólares por um cappuccino, você se sente um idiota por ter cobrado 3 no dia anterior. Não que você não tenha lucrado com 3 dólares, mas o seu personagem realmente precisa de dinheiro rápido e pequenas margens de lucro não vão te levar a lugar algum.

Porém, você nunca sabe exatamente o quanto pode forçar em termos de preço sem sofrer rejeição dos seus clientes. Ou seja, você acaba jogando no escuro, porque você não tem tempo para estudar a questão, e cada dia mal planejado é um dia a menos para conseguir cumprir seu objetivo final, que pode ser simplesmente ter um teto na semana seguinte.

Os minigames envolvidos para servir cada produto são muito simples e fáceis de dominar. Às vezes pode ser apenas reproduzir uma frase simples em inglês. Porém, você pode ganhar gorjetas se superar o seu tempo padrão, o que induz o jogador a querer ir sempre mais rápido, resultando, obviamente, em maiores chances de erro. O mesmo vale para momentos em que seu personagem tem um compromisso qualquer e a fila de clientes é muito grande: você não quer perder o dinheiro, mas também não pode deixar de ir ao compromisso. O resultado é uma experiência cheia de pressão. E, claro, se você errar o pedido ou o troco, você perde o dinheiro, e talvez até o cliente.

Considerando toda essa estrutura, Cart Life é um jogo voltado a passar ao jogador a tensão de quem tem pouco dinheiro: sem um fundo de apoio, você precisa agir em velocidade máxima, incentivando vícios e atitudes pouco saudáveis, sem oportunidade para tomar decisões a longo prazo ou mesmo planejar alguns dias com alguma antecedência. Você tem que se concentrar em viver uma semana de cada vez, e há tão pouca margem de manobra que acaba sendo difícil adotar estratégias diferentes, explorar a cidade, as opções de preços e de produtos, etc.

Com isso, Cart Life acaba sendo mais um daqueles jogos que adotam o que eu chamei em outro texto de ludoironia: o significado profundo dele está em lidar com a sua incapacidade de cumprir os resultados que ele demanda de você ou, caso você consiga cumpri-los, o foco está nos sacrifícios e tensões envolvidos no processo, mas não de uma forma que gere recompensa ao jogador.

Cart Life é um jogo sobre limitações: limitação de tempo, limitação de capacidade, limitação monetária, e até limitação do seu poder de agir mesmo nas melhores condições. O mecanismo que escolhe qual transeunte vai parar e comprar alguma coisa é aleatório, o que faz com que o jogo crie múltiplas situações de esperança e frustração a cada vez que uma pessoa passa pelo seu comércio e simplesmente continua andando, sem comprar nada.

Essa sensação é algo muito interessante e que até hoje eu não tinha visto replicada em nenhum lugar. Aqueles de vocês que já pensaram em abrir um negócio talvez já tenham passado pela situação de fazer mil planos, se preparar, estudar, fazer todo o possível, e aí simplesmente o mercado não ligar, você não conseguir os clientes necessários, e isso destrói você por dentro aos poucos. Aqui mesmo no Youtube a gente vê muito isso: pessoas que se esforçam tanto para crescer e produzem grande conteúdo, mas que não chegam onde os criadores tinham sonhado, apesar de toda a energia gasta.

Em Cart Life, cada pessoa que passa sem comprar nada é uma pequena facada no seu espírito, e o jogador vê o seu tempo tão precioso passar e a sua renda ainda tão distante da meta necessária para manter a sua vida, que não tem absolutamente nada de supérfluo. É um jogo que oferece uma nova perspectiva sobre a realidade do dia a dia do comércio, com os pés no chão e uma lente microscópica sobre uma das bases da nossa sociedade: o pequeno comerciante.

Nossa indústria, em grande parte, sofre de uma insensibilização a essas pequenas histórias. Papers, Please, que aliás saiu depois de Cart Life, é outro que se dedica aos desafios de uma pessoa tentando sobreviver na sociedade, mas a realidade opressiva e ditatorial do jogo ainda é um pouco distante da nossa, enquanto Cart Life bebe diretamente do modo de produção capitalista.

Mais distante ainda do homem comum são jogos de gerenciamento, como Sim City ou The Sims. Em Sim City, um quarteirão comercial inteirinho falha e nada atinge o prefeito diretamente, não há um reflexo imediato na sua experiência, nem se sabe quantas pessoas foram afetadas por essa ocorrência. Já em The Sims, há uma confiança profunda na ideologia do capital, de que estudar e trabalhar no que o sistema requisita de você leva inevitavelmente ao sucesso.

Cart Life mostra uma realidade próxima dos mais pobres, que talvez não tenham o tempo ou a chance de trabalhar naquilo que o sistema demanda. E mesmo quando, com muito esforço, conseguem alcançar os requisitos necessários, talvez seja tarde ou mesmo inútil e, mesmo com os melhores produtos e preços, passam-se duas horas e ninguém para na sua banquinha para comprar nada.

Para finalizar, eu preciso dizer que, em grande medida, Cart Life é um jogo bem inacabado. Há uma profusão de bugs que não foram, nem serão consertados, e alguns deles acrescentam um nível de frustração extra a um jogo que já procura ser frustrante. Entretanto, eu acredito que, apesar disso, ainda é uma experiência muito marcante, uma das mais profundas críticas ao nosso sistema hoje, e que certamente merece ser mais conhecida e apreciada.

E era isso que eu queria dizer sobre Cart Life. Até a próxima análise!

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