Olá! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Cart Life, jogo desenvolvido por Richard
Hofmeier, e lançado em 2010 para PC. Ele passou pela Steam há um tempo, mas
agora ele é gratuito.
Cart Life tem um parente próximo de que
eu gosto muito, que é Papers, Please:
a própria estética visual já revela isso, com gráficos bem simples e uma
escolha pelo cinza como predominante. Entretanto, enquanto Papers, please adota algumas outras cores, embora sempre de uma
forma pouco vibrante, Cart Life
assume 100% a estética em preto e branco.
Se
a estética visual é simples, o mesmo vale para a proposta do jogo, pelo menos
num primeiro momento: você pode escolher jogar com três personagens, Vinny,
Melanie e Andrus, três vendedores de rua em busca de algumas pequenas
conquistas num breve período de tempo, com todas envolvendo ganhar dinheiro com
o seu negócio.
Entretanto,
para executar esses objetivos, absolutamente nada é simples. No caso da
Melanie, por exemplo, é preciso montar uma barraca para vender café e outras
bebidas. Isso significa comprar o stand,
equipá-lo com os instrumentos certos, comprar os ingredientes, pedir
autorização da prefeitura para montar o negócio em certo bairro, estabelecer
preços adequados, preparar cada produto, cobrar preços exatos e dar o troco
eventual.
E,
claro, além disso, é preciso lembrar que você controla uma pessoa, o que
significa que ela se cansa, que o tempo dela é limitado, que ela precisa comer
e que talvez ela tenha compromissos importantes e inadiáveis. Voltando ao
exemplo da Melanie, ela precisa levar e buscar a filha na escola em horários
definidos todos os dias, e o objetivo final dela é juntar 1000 dólares em uma
semana para provar que pode manter um estilo de vida estável para continuar com
a guarda da filha.
Outros
desafios têm consequências menos imediatas e acontecem apenas na mente do
jogador. O Vinny é viciado em cafeína, e alimentar esse vício nunca cria nenhum
problema no jogo; pelo contrário: tomar café deixa o personagem mais rápido na
sua movimentação pela cidade. Porém, o jogador sabe que tomar café não será bom
para ele a longo prazo, o que estabelece uma sutil escolha moral sobre como o
jogador e a pressão com que ele tem que lidar acabam levando a maus hábitos.
E
pressão é o foco de Cart Life,
representada, obviamente, pelo timer
que torna tudo muito difícil para o jogador. Cada dia passa muito mais rápido
do que seria ideal e, assim, o tempo para cumprir a missão geral voa e leva a
uma agonia que perpassa toda a experiência, e que aponta as mil dificuldades em
lidar com um pequeno comércio em um contexto que exige decisões rápidas.
Por
exemplo, é possível achar fornecedores melhores do que o supermercado principal
da cidade, mas isso exige explorar a cidade, e não há tempo para isso. Decidir
quais preços funcionam melhor em cada vizinhança também é algo que acaba sendo
feito conforme se joga, e se você percebe que a maioria dos clientes pagaria 4
dólares por um cappuccino, você se sente um idiota por ter cobrado 3 no dia
anterior. Não que você não tenha lucrado com 3 dólares, mas o seu personagem realmente
precisa de dinheiro rápido e pequenas margens de lucro não vão te levar a lugar
algum.
Porém, você nunca sabe
exatamente o quanto pode forçar em termos de preço sem sofrer rejeição dos seus
clientes. Ou seja, você acaba jogando no escuro, porque você não tem tempo para
estudar a questão, e cada dia mal planejado é um dia a menos para conseguir
cumprir seu objetivo final, que pode ser simplesmente ter um teto na semana
seguinte.
Os
minigames envolvidos para servir cada
produto são muito simples e fáceis de dominar. Às vezes pode ser apenas
reproduzir uma frase simples em inglês. Porém, você pode ganhar gorjetas se
superar o seu tempo padrão, o que induz o jogador a querer ir sempre mais rápido,
resultando, obviamente, em maiores chances de erro. O mesmo vale para momentos
em que seu personagem tem um compromisso qualquer e a fila de clientes é muito
grande: você não quer perder o dinheiro, mas também não pode deixar de ir ao
compromisso. O resultado é uma experiência cheia de pressão. E, claro, se você
errar o pedido ou o troco, você perde o dinheiro, e talvez até o cliente.
Considerando
toda essa estrutura, Cart Life é um
jogo voltado a passar ao jogador a tensão de quem tem pouco dinheiro: sem um
fundo de apoio, você precisa agir em velocidade máxima, incentivando vícios e
atitudes pouco saudáveis, sem oportunidade para tomar decisões a longo prazo ou
mesmo planejar alguns dias com alguma antecedência. Você tem que se concentrar
em viver uma semana de cada vez, e há tão pouca margem de manobra que acaba
sendo difícil adotar estratégias diferentes, explorar a cidade, as opções de
preços e de produtos, etc.
Com
isso, Cart Life acaba sendo mais um
daqueles jogos que adotam o que eu chamei em outro texto de ludoironia: o
significado profundo dele está em lidar com a sua incapacidade de cumprir os
resultados que ele demanda de você ou, caso você consiga cumpri-los, o foco
está nos sacrifícios e tensões envolvidos no processo, mas não de uma forma que
gere recompensa ao jogador.
Cart Life é um jogo sobre limitações:
limitação de tempo, limitação de capacidade, limitação monetária, e até
limitação do seu poder de agir mesmo nas melhores condições. O mecanismo que
escolhe qual transeunte vai parar e comprar alguma coisa é aleatório, o que faz
com que o jogo crie múltiplas situações de esperança e frustração a cada vez
que uma pessoa passa pelo seu comércio e simplesmente continua andando, sem
comprar nada.
Essa
sensação é algo muito interessante e que até hoje eu não tinha visto replicada
em nenhum lugar. Aqueles de vocês que já pensaram em abrir um negócio talvez já
tenham passado pela situação de fazer mil planos, se preparar, estudar, fazer
todo o possível, e aí simplesmente o mercado não ligar, você não conseguir os
clientes necessários, e isso destrói você por dentro aos poucos. Aqui mesmo no
Youtube a gente vê muito isso: pessoas que se esforçam tanto para crescer e
produzem grande conteúdo, mas que não chegam onde os criadores tinham sonhado,
apesar de toda a energia gasta.
Em
Cart Life, cada pessoa que passa sem
comprar nada é uma pequena facada no seu espírito, e o jogador vê o seu tempo
tão precioso passar e a sua renda ainda tão distante da meta necessária para
manter a sua vida, que não tem absolutamente nada de supérfluo. É um jogo que
oferece uma nova perspectiva sobre a realidade do dia a dia do comércio, com os
pés no chão e uma lente microscópica sobre uma das bases da nossa sociedade: o
pequeno comerciante.
Nossa
indústria, em grande parte, sofre de uma insensibilização a essas pequenas
histórias. Papers, Please, que aliás
saiu depois de Cart Life, é outro que
se dedica aos desafios de uma pessoa tentando sobreviver na sociedade, mas a
realidade opressiva e ditatorial do jogo ainda é um pouco distante da nossa,
enquanto Cart Life bebe diretamente
do modo de produção capitalista.
Mais distante ainda do
homem comum são jogos de gerenciamento, como Sim City ou The Sims. Em Sim City, um quarteirão comercial
inteirinho falha e nada atinge o prefeito diretamente, não há um reflexo imediato
na sua experiência, nem se sabe quantas pessoas foram afetadas por essa
ocorrência. Já em The Sims, há uma
confiança profunda na ideologia do capital, de que estudar e trabalhar no que o
sistema requisita de você leva inevitavelmente ao sucesso.
Cart
Life
mostra uma realidade próxima dos mais pobres, que talvez não tenham o tempo ou
a chance de trabalhar naquilo que o sistema demanda. E mesmo quando, com muito
esforço, conseguem alcançar os requisitos necessários, talvez seja tarde ou
mesmo inútil e, mesmo com os melhores produtos e preços, passam-se duas horas e
ninguém para na sua banquinha para comprar nada.
Para finalizar, eu
preciso dizer que, em grande medida, Cart
Life é um jogo bem inacabado. Há uma profusão de bugs que não foram, nem serão consertados, e alguns deles
acrescentam um nível de frustração extra a um jogo que já procura ser
frustrante. Entretanto, eu acredito que, apesar disso, ainda é uma experiência
muito marcante, uma das mais profundas críticas ao nosso sistema hoje, e que
certamente merece ser mais conhecida e apreciada.
E era isso que eu
queria dizer sobre Cart Life. Até a
próxima análise!
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