Olá!
Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de That dragon, cancer, jogo desenvolvido
pela Numinous Games e lançado agora em janeiro para PC e Ouya. Em termos
estruturais, ele é um jogo muito simples e, no geral, desinteressante, mas que
se destaca pela temática única na nossa indústria, pela honestidade com que a
trata e que, em alguns trechos, faz com que a jogabilidade crie momentos de
impacto.
A
história de That dragon, cancer é uma
recriação lúdica de um evento dos dois principais envolvidos na criação do
jogo, um casal que perdeu o filho ainda bem pequeno por conta de um câncer. A
experiência tenta, então, contar um pouco sobre os sentimentos vividos por um
casal de pais vendo seu filho sendo lentamente vencido por uma doença terrível
e implacável.
Graças
à escolha de temática, o jogo já se destaca na história da nossa indústria,
pois é muito difícil encontrar um tema tão negativo e que causa tamanha
frustração e impotência, o que, claro, é o contrário dos sentimentos sobre os
quais a história dos jogos se construiu.
Para
tratar um tema tão pouco convencional nessa mídia, o jogo adota diversas
interações, que são abandonadas com frequência em favor de outras, que talvez
expressem a próxima cena de uma forma mais pungente. Isso reflete a própria
estrutura da história, que é contada em capítulos bem distintos. Assim, embora
o jogo prefira adotar uma mistura de mecânicas de jogos de exploração em primeira
pessoa e point and click, não é
estranho de repente passar para um quick
time event, para um minigame de
corrida, ou ainda para um trecho em 2D.
A
quem está jogando, o game parece uma
colagem, uma coleção de momentos, e talvez essa seja a sua pior escolha
estética, e isso em vários níveis. Em termos de jogabilidade, isso significa
uma multiplicidade de mecânicas, mas com nenhuma propriamente implementada de
forma satisfatória. Não raro a movimentação fica arrastada demais ou os
controles não são precisos o bastante.
É claro que um jogo
como That dragon, cancer não se
pretende um jogo de ponta no quesito jogabilidade, mas as limitações das
mecânicas perturbam o jogador num nível tal que ele acaba saindo da experiência;
ele nunca chega a ficar totalmente imerso, e isso é um problema quando o seu
jogo procura passar um sentimento. Para isso, é necessária uma jogabilidade que
funcione bem ou que simplesmente saiba se esconder e deixar o resto da
experiência brilhar. Em That dragon,
cancer, a jogabilidade é como uma pedra no sapato do jogador.
A ideia da coleção de
momentos complica muita coisa também em termos de história, porque o jogo
muitas vezes não dá o tempo necessário ao jogador para sentir o peso de cada cena
apresentada. Muitas vezes, o jogo parece querer comunicar os bons momentos que
uma criança com câncer pode viver e proporcionar aos seus pais, mas é tudo tão
rápido e comunicado por situações que não expressam uma beleza genuína ao
jogador.
Logo no primeiro
capítulo, por exemplo, o jogo abre a possibilidade de o jogador brincar com o
menino Joel, mas essas brincadeiras são quase que unilaterais, com o jogador
clicando uma vez e a brincadeira se realizando sozinha. Uma risada ou outra
pode dar uma satisfação momentânea ao jogador, mas isso acaba sendo muito pouco
em comparação com o que os pais queriam expressar e com aquilo de que o jogo
efetivamente precisava para funcionar.
Era necessário ter mais
tempo em cada cena, e planejamento para que cada uma deixasse uma impressão
suficiente no jogador, para que ele entendesse o conflito que o jogo gostaria
de expressar, que é a luta entre o amor dos pais pelo filho e o sofrimento que
a doença dele causa a todos.
E seria muito bom se
fosse possível realizar isso, mas o fato é que só as cenas negativas têm o
impacto necessário, e mesmo assim nem todas obtêm sucesso. Entretanto, para
além das limitações que a jogabilidade impõe, esses momentos deixam ver uma
honestidade no texto desenvolvido para cada um dos pais, que se dividem em como
encaram a doença do filho, entram em conflito, e se angustiam ainda mais por se
verem unidos na dor, mas, ao mesmo tempo, desunidos pela forma como lidam com
ela. Alguns trechos muito pungentes acontecem nesses momentos.
Há, porém, uma grande
cena no jogo, que eu considero muito poderosa, e que me deu a pista do que ele
poderia ser, mas só foi por breves momentos. Um dos capítulos do jogo coloca o
pai, que é o que encara a doença da forma mais negativa e angustiada, cuidando
do filho doente. Durante todo esse trecho, a criança chora e, por mais que o
jogador e o pai tentem, ela não para de chorar. Aliás, as coisas que o jogador
tenta fazem mais mal do que bem.
Assim, o jogador fica
preso no quarto, com aquele som irritante da criança; ele pode se mover pelo
quarto, mas se mover ou interagir com uma ou outra coisa não vão ajudar. É uma
sensação de angústia e impotência genuínas que acaba sendo passada ao jogador
de forma muito efetiva. É claro que a angústia de ter o filho entre a vida e a
morte é algo totalmente distinto, mas o jogo é feito justamente para capturar a
angústia da convivência com o câncer, e essa cena desperta exatamente esse
sentimento.
Infelizmente, o jogo
nunca vai conseguir replicar o alto nível que essa cena criou. E, pensando após
finalizar as duas horas que compõem a experiência, eu não pude evitar o
sentimento de que o jogo poderia ter sido mais livre e coeso mecanicamente, num
estilo de The Stanley Parable ou Everybody’s Gone to the Rapture, que
fornecesse uma base sólida de interação, mas com margem de manobra para muitos
trechos diferentes.
Como foi realizado, That dragon, cancer é como uma
experiência de liberação emocional para os pais que desenvolveram o jogo, e que
funciona apenas com pais, porque um pai pode acessar suas memórias emocionais e
preencher a frieza que as mecânicas superficiais criam. Enquanto um pai clica e
vê uma criança no jogo se movendo num balanço sozinha, ele pode lembrar de
quando levou seu filho ao balanço; quando o jogo mostra os pais conversando com
o médico, ele pode lembrar de quando levou seu filho doente ao médico pela
primeira vez, etc.
Nesse sentido, é algo
como Journey faz, permitindo ao
jogador colocar suas memórias e dar significado à experiência, mas Journey era muito mais bem-sucedido
nisso por criar uma experiência mecanicamente sólida e extremamente vaga em
termos de trama. That dragon, cancer
trata de uma situação muito específica e que precisava da devida construção
para criar a empatia necessária. Como está, é um jogo que depende demais das
experiências pessoais do jogador.
E era isso que eu
queria dizer sobre That dragon, cancer.
É um jogo inovador em tema, e cheio de honestidade e boas intenções, mas que,
apesar de construir cenas pungentes, tem muita dificuldade em comunicar
verdadeiramente os sentimentos que queria.
Olá!
Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou acabar o ciclo de
vídeos sobre Batman: Arkham Knight,
falando sobre o último DLC de história do jogo, chamado Season of Infamy, lançado um pouco antes do natal. Para mim, ele
tem grande qualidade, representa um momento importante dentro do universo que a
Rocksteady criou para o Batman, e oferece um tipo de experiência muito mais
próxima ao que eu queria para a série.
Em
termos gerais, Season of Infamy não é
um pacote coeso de missões, como foram os outros DLCs da série até hoje. Na
verdade, ele é um conjunto de missões em torno de quatro vilões específicos, e
nenhum desses vilões demonstra conexões entre si, e, na verdade, apenas uma
dela tem ligações com o que acontece na história de Arkham Knight, e ainda assim isso não é o centro. Ou seja, o DLC é
só uma nova seleção de side quests
para o jogo.
Entretanto,
embora ele não se conecte harmonicamente ao jogo, esse DLC oferece, em sua
maior parte, uma ligação muito poderosa com a série Arkham, e ela oferece
discussões e conclusões acerca de assuntos que ficaram um tanto pendentes nos
jogos anteriores.
Mas,
vamos por partes. O DLC oferece missões relativas a quatro personagens: Chapeleiro
Maluco, Killer Croc, Doutor Freeze e Ra’s Al Ghul. Em termos de qualidade, eu
acho que as missões seguem a ordem que eu falei agora. A do Chapeleiro é a mais
simples e, a rigor, repete muito dos padrões repetitivos de design que Arkham Knight adotou no geral, e me parece muito parecida com a
missão do Chapeleiro em Arkham City:
o Batman precisa resgatar alguém e, no meio do caminho, precisa lidar com jogos
mentais psicodélicos.
A
do Croc já é mais interessante, porque há menos repetição. O Batman e o Asa
Noturna vão investigar um dirigível acidentado, que funcionava como prisão
alada, e descobrem que o Croc estava lá, mas escapou e sequestrou o chefe da
prisão. Essa missão foca mais exploração, uso de gadgets e, no final, ainda tem uma batalha que segue o padrão de
luta de Arkham Knight, com duplas em
vez de um combate direto.
Particularmente,
eu acho que essa batalha contra chefe foi ainda decepcionante, porque ela é
focada em combate puro e simples, em vez de lidar com as especificidades do
vilão, mas eu ainda acho que o saldo da missão é positivo, porque ele discute
um pouco sobre a mente do Croc, e sobre como ele agir como um monstro é tanto
um instinto dele, quanto uma reação à forma como as pessoas o veem. É uma ideia
interessante, já apresentada em outras mídias, mas tratada com correção no
jogo. Não é um encerramento para o personagem, mas é um capítulo intermediário
muito bom.
Note
que eu estou discutindo esse DLC muito mais em termos de história, mas é porque
esse é claramente o foco, com exceção da parte do Chapeleiro. De resto, o jogo
parece seguir uma estrutura mais roteirizada, com menos repetição e mais
contexto. Nas side quests do jogo
principal, geralmente o que se deve fazer é repetir uma série de vezes uma
mesma coisa, até que um confronto final apareça. Era o oposto da campanha
principal, que fazia o Batman alternar ações.
O
DLC Season of Infamy é como um
conjunto de missões no modelo da missão principal do jogo, mas diminuído em
escala. Em última instância, é como as side
quests do jogo principal deveriam ter sido, porque, se assim fosse, haveria
um sentimento mais claro de imersão no universo, com histórias menos mecânicas
e que efetivamente avançassem.
Isso
fica perfeitamente claro nas duas missões que ainda falta comentar. A do Doutor
Freeze tinha muito a provar, já que ele foi talvez o vilão mais desenvolvido na
série (com exceção, claro, do Coringa) e merecia um fechamento adequado. E foi
exatamente isso que o DLC deu a ele.
A
missão dele envolve devolver a mulher do doutor a ele, porque ela foi
sequestrada pela milícia quando ele disse não ter interesse em lutar contra o
Batman. Só esse movimento é muito interessante, porque mostra como o Doutor
Freeze é um personagem muito mais calculista do que os demais; ele só enfrenta
alguém se tiver algo importante em jogo.
Embora
essa missão comece de um jeito bem tradicional – aliás, ela lembra uma missão
de Arkham City –, ela muda
drasticamente na segunda metade, e se torna algo muito mais emotivo, que
trabalha o personagem do Doutor Freeze de um jeito muito interessante e, na
verdade, melhor do que eu jamais vi na série Arkham ou em qualquer outro lugar.
Para quem gosta do personagem, embora seja uma missão curta e com basicamente
três ou quatro etapas, é algo muito interessante, porque oferece caminhos pouco
ortodoxos ao personagem.
E,
se o lado pouco tradicional da série começa a aflorar na missão do Doutor
Freeze, ele alcança o seu ápice na missão que falta comentar, dedicada a Ra’s
Al Ghul. Se você não lembra de quão corajosos os escritores envolvidos na série
podem ser, basta lembrar de todos os personagens que morreram em Arkham City. Infelizmente, essa coragem não
estava presente na história de Arkham
Knight, que, na verdade, é a história mais covarde já contada na série, que
não se compromete com absolutamente nada.
A
missão do Ra’s Al Ghul muda isso. Tudo começa com o Batman investigando dois
corpos de membros da Liga dos Assassinos e que lutaram entre si até a morte. A
questão é que há uma dissidência na liga, que se dividiu entre os que querem
recuperar Ra’s Al Ghul mais uma vez, depois dos ferimentos graves sofridos em Arkham City, e os que acham melhor ele
finalmente morrer. O Batman basicamente acaba funcionando como um agente duplo
e precisa escolher como se posicionar nessa guerra.
A
palavra-chave nessa missão é escolha: o jogador tem o poder de escolher o
desfecho dessa história, o que é totalmente novo na série, que, para o bem e
para o mal, sempre foi muito scriptada.
É claro que isso não muda nada no jogo, ninguém vai te tratar diferente, essa
decisão não vai ser retomada ou algo assim. Ela é simplesmente uma chance de
você dar um toque seu ao Batman, dizer quem ele é para você, ou o que você
gostaria que ele fosse.
O
Batman é um personagem com 75 anos de história, e passou por muitos escritores,
roteiristas, ilustradores, game designers,
etc. Isso faz dele um personagem multifacetado, talvez como nenhum outro. Essa
pequena escolha no DLC faz com que você possa escolher de que Batman você gosta
mais, você constrói um pouco o Batman da série Arkham, e isso é um encerramento
que eu achei muito especial, e fico feliz por ter deixado essa missão por
último. Aliás, se você resolver jogar esse DLC, eu recomendo que também deixe a
missão do Ra’s por último.
É
difícil explicar ao certo exatamente o que as missões do Doutor Freeze e do
Ra’s Al Ghul significam para um jogador da série. Eu teria que comparar com
outro DLC, para um outro jogo: Season of
Infamy me lembra muito o DLC Citadel,
de Mass Effect 3. Em Citadel, o jogador tem um conjunto de
missões que basicamente servem como uma despedida para o jogador, um último
momento para dividir histórias com os personagens a quem tanto se apegou, mas
que, cedo ou tarde, terão que ir embora.
Season of Infamy é isto também: um
momento para amarrar as pontas soltas, para oferecer respeito aos personagens
interessantes da série. Por isso mesmo, é um momento especial, e que deixa o
jogador satisfeito e, ao mesmo tempo, completamente sem entender nada.
Eu
digo isso porque é muito difícil entender como o mesmo grupo de desenvolvedores
consegue fazer uma série de missões originais e interessantes em Season of Infamy e resolve fazer missões
com design completamente burocrático
no jogo principal. Mesmo os DLCs curtos lançados até agora, com exceção do da
Batgirl, eram pouquíssimo originais, conflitavam com a história, e, para
durarem mais, tinham picos de dificuldade muito estranhos à série.
Na
minha cabeça, o conjunto de Arkham Knight
vai ser uma das coisas mais difíceis de entender em termos da indústria de
jogos – é até por isso que eu resolvi fazer tantos vídeos sobre o jogo,
acompanhando um pouco as oscilações que todo esse processo viveu. De qualquer
forma, a resposta que fica é que Arkham
Knight foi um terceiro jogo infeliz, que tinha potencial e talento no seu
conceito e na sua equipe, mas que, por algum motivo, teve dificuldade em manter
uma constância no uso desses elementos.
Olá!
Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Undertale, jogo desenvolvido por Toby
Fox graças a uma campanha de Kickstarter bem-sucedida e lançado para PC em
2015. Ele é um jogo que tomou a comunidade de assalto, e fez muita gente se
apaixonar, e isso é porque ele é um caso muito único do momento que nós vivemos
na indústria.
No
mundo de Undertale, há humanos e
monstros, mas, por conta de uma guerra, os humanos baniram os monstros para o
subterrâneo e os prenderam com uma barreira. A história do jogo acompanha um
humano que cai acidentalmente num buraco e acaba no subterrâneo, onde ele
encontra vários monstros e têm a oportunidade de decidir como se relacionar com
eles.
O
grande elemento da jogabilidade de Undertale
que as pessoas costumam mencionar é justamente essa escolha de como lidar com
os monstros: você pode atacar e matá-los ou simplesmente lidar com eles,
conversando ou tentando convencê-los a não machucar o seu personagem. Mas,
antes de prosseguir, é preciso falar sobre como o jogo trabalha para que,
efetivamente, essas opções sejam significativas.
Em
termos de sistemas, Undertale
funciona como um RPG de turnos de 16-bits, mas, como vocês devem saber, jogos
desse gênero sempre funcionam sob a premissa de que é precisa matar muitos
monstros, porque isso é a condição para ganhar experiência e, como o sistema de
batalhas é em turno, a não ser que o seu personagem esteja num nível
gigantesco, é impossível vencer sem tomar nenhum golpe do adversário.
Ou
seja, o gênero em que Undertale se
baseia tem no combate algo absolutamente fundamental, porque ninguém poderia
matar o último chefe de um Final Fantasy
sem vencer alguns inimigos antes e ganhar experiência; se alguém tentasse fazer
isso, seria imediatamente derrotado. Como, então, fazer um jogo em que se
pudesse não matar ninguém e ainda assim, em pleno nível 1, chegar até o último
chefe?
A
solução do jogo foi transformar o combate em uma mistura de RPG com shoot’em up. Na prática, o jogo ainda
funciona à base de turno, em que cada personagem tem a sua vez e escolhe uma
ação, seja atacar, fugir, usar item, ou tentar falar algo. Entretanto, no
momento em que o turno passa a ser do monstro, o protagonista é representado
por um coração que se movimenta num pequeno quadrado e precisa evitar os
objetos e projéteis que são lançados ali. Se ele conseguir evitar tudo, ele se
livra de 100% do dano.
Graças
a isso, se o jogador quiser, não é preciso derrotar ninguém em batalha, porque
a experiência é opcional. Se ele for habilidoso nas opções de conversação e no
desvio de projéteis, ele poderá ir do começo ao fim do jogo com nível 1. A
única concessão que o jogo faz é dar dinheiro ao jogador quando ele convence um
inimigo a se render, para que seja possível comprar itens para melhorar a
resistência e recuperar a vida do protagonista, já que algumas batalhas no fim
do jogo demandam muita habilidade e resistência. Com isso, Undertale remove a barreira técnica para a execução do seu
conceito, mas resta ainda uma barreira muito importante, e muito subestimada
por certos jogadores, que eu chamo de barreira ideológica.
Jogos eletrônicos
existem há quase quarenta anos e, desde então, sempre foram baseados, em sua
maioria, na ideia de confronto, de embate, o que frequentemente escalou para a
ideia de violência. Por isso, a imensa maioria dos jogos hoje é baseada em
algum tipo de combate, e isso molda a nossa percepção de forma bastante forte,
o que faz com que a ideia de um jogo sem uma condição de vitória seja
considerado um não jogo ou algo assim.
Nesse
contexto, Undertale tem a difícil
missão de mostrar como não é preciso haver combate para que um jogo seja
divertido e recompensador e, no geral, ele é bem-sucedido, pelo menos na medida
em que é possível convencer alguém investido no consumo de uma mídia baseada
fortemente num mesmo aspecto. Seria o mesmo que convencer um expectador
tradicional de novelas a acompanhar uma trama sem romance e sem mocinho e
vilão. Ou seja, há limites na audiência para quem está disposto à mudança.
Considerando
tudo isso, eu acho que Undertale se
vale das melhores ferramentas possíveis para cumprir a sua missão, embora eu
ainda melhoraria uma coisa ou outra, se pudesse. O grande trunfo de Undertale é se basear fortemente na
série Mother, de que eu falei um
pouco aqui no canal, e que é baseada num universo que, embora ainda tenha um
combate relativamente arraigado, consegue desviar significativamente a atenção
do jogador para os seus personagens.
O
segredo da série Mother é fazer com
que os personagens sejam estranhos e divertidos, como se todo mundo lá fosse um
pouco louco, um pouco fora da medida, e isso cria um senso de humor muito
próprio à série, e que Undertale
claramente busca replicar. Os primeiros adversários que eu encontrei e suas
ações divertidas me lembraram imediatamente de quando encontrei o primeiro hippie inimigo no primeiro Mother. É divertido, e traz um pouco o
jogador para perto do inimigo, faz com que ele não o trate puramente como um
adversário, mas como alguém com alguma personalidade.
Undertale busca isso com todos os
personagens e, no geral, é bem-sucedido. Todos que habitam aquele mundo têm
seus trejeitos, seus dramas e seus pontos-chave em termos de personalidade.
Especialmente os personagens principais da história têm bastante tempo para
construção de seus personagens, o que faz com que você se apegue a eles e
relute muito em matá-los.
Acho
que isso fica claro nos dois primeiros chefes do jogo, que criam esse
sentimento por caminhos diferentes. O primeiro é um dos personagens mais gentis
que já existiram no mundo dos jogos, alguém cujo carinho e atenção tocam o
jogador de verdade, a ponto de você não querer magoar esse monstro. Graças a
isso, quando acontece de ele estar no seu caminho, você se restringe e não quer
partir direto para o ataque. Com isso, o jogador acaba percebendo que é
possível receber muita satisfação ao terminar um combate e saber que aquele
personagem querido sobreviveu.
Já
o segundo chefe não é baseado nesse tipo de emoção, mais sim no humor. Ele é
muito engraçado na sua falta de jeito e, por causa disso, o jogador nunca o
leva a sério, e acaba achando que é até cruel atacar um personagem que
provavelmente não tem aptidão para absolutamente nada mesmo. Com isso, mais uma
vez o jogo desperta no jogador o impulso de evitar o confronto.
Com
isso e outros inimigos no início do jogo, o jogador já está treinado na opção
de não lutar e, assim, ele pode praticar esse pacifismo sem tanto
estranhamento, inclusive contra inimigos que parecem muito mais ameaçadores. E,
para quem acha que não atacar torna o jogo trivial, é preciso deixar claro que
convencer um inimigo demanda algumas rodadas, o que, se você não tiver ótimos
reflexos, vai ser uma situação bastante tensa.
Aliás,
essa tensão é fundamental para fazer o jogador sentir o desespero que o
protagonista deve sentir em certos momentos. Ser atacado e não poder revidar é
difícil, especialmente quando não se pode fugir simplesmente. E, quando um
inimigo simplesmente se recusa a conversar ou não te deixa poupá-lo de alguma
outra forma, a angústia em busca de soluções é real, e faz o jogador olhar para
o botão de ataque quase como um alcóolatra que tenta se libertar olha para uma
garrafa de bebida depois de um dia difícil.
Graças
a tudo isso, o mundo de Undertale é
extremamente simpático e marcante, o que faz o jogador querer preservá-lo ao
máximo e, ao mesmo tempo, ele não perde tanto assim assumindo uma postura
pacifista, porque o jogo tem a sua diversão e recompensa de outras formas.
Mas,
é claro, existe a opção de combate. E o jogador pode passar toda a sua
experiência só matando todos que encontra naquele mundo, o que vai variar
bastante a experiência e o próprio final do jogo. O interessante é que essa
opção não foi feita para ser agradável ao jogador. Para ganhar nível e
conseguir o final específico voltado a combate, o jogador precisa lidar com
encontros aleatórios que vão ficando cada vez mais raros, o que faz o jogador
perder muito tempo, e também com os chefes, que acabam alternando entre
personagens muito queridos sendo trucidados sem merecer e outros personagens
com padrões de ataque tão insanos que se torna frustrante continuar.
A
isso se soma também o fato de que o sistema de combate é muito raso. Só existe
um tipo de ataque possível, as customizações de itens são raríssimas e, no
geral, ficar se expondo a combate o tempo todo trivializa o sistema que, numa
experiência pacifista, é usado com uma parcimônia capaz de fazer cada variação
de combate parecer muito mais nova e divertida. Esse aspecto geralmente é
criticado por jogadores que ficaram desagradados com Undertale.
Eu
não digo que esses jogadores estejam errados, mas é que a intenção de Undertale é justamente esta: fazer o
combate ser desagradável, enquanto o diálogo é enriquecedor. Existe um universo
de diferença entre matar um personagem assim que você o vê ou deixá-lo vivo, se
tornar amigo dele e ouvir as suas piadas durante todo o resto da experiência. O
mundo do jogo se torna totalmente outro.
Fazer
uma das opções de jogabilidade ser rasa, entediante e incapaz de dar satisfação
ao jogador é uma aposta arriscadíssima, mas isto é justamente uma das coisas
mais interessantes em Undertale em
relação à nossa indústria: ele não tem medo de se colocar politicamente, de
dizer que um jogo incentivar combate em oposição a uma construção de personagem
é algo eticamente irresponsável, porque é uma filosofia de guerra mais do que
de paz, é algo pouco civilizado.
É
claro que, tendo um ponto de vista político tão explícito em suas mecânicas, Undertale convida o jogador a concordar
com ele ou não; é impossível passar indiferente à mensagem. É como uma evolução
de algo já presente num outro excelente jogo indie, Papers, Please,
que fazia o jogador se sentir mal com a satisfação de bloquear a entrada de
pessoas no seu país, o que poderia ter várias repercussões negativas para essas
pessoas. Mas, Papers, Please colocava
essa questão mais ao jogador, enquanto absolvia o personagem, que estava preso
a um sistema cruel.
Undertale quer que o jogador entre em
seu mundo, encarne em seu personagem e seja amigo dos monstros, que sinta como
é bom conhecer as pessoas, lidar com elas, aprender a achar aquilo que faz
delas algo especial. No fundo, com o tempo certo, as palavras certas e uma
intenção genuína, todo mundo pode estabelecer um diálogo.
Nessa
visão, o combate é ruim porque combater, por si só, é ruim. A mensagem do jogo
é claramente que, se você quer matar criaturas mesmo sem precisar, há algo
errado com você. Mas, a existência da opção e o risco de ela ser vista como
mecanicamente limitada é algo brilhante, porque jogos que buscam a criação e o
diálogo nem sempre colocam o assassinato diretamente em suas mecânicas.
Imagine, por exemplo, um The Sims em
que um personagem pudesse pegar um bastão de beisebol e espancar outro sim até a morte, como se faz num GTA. Por algum motivo, todos em The Sims são pacifistas, com um outro
xingamento ou estapeamento aqui e ali.
Undertale não tem medo de ser um jogo
fortemente autoral e com uma mensagem muito forte. Concordando ou não com ele,
é impossível para mim não respeitá-lo por isso e admirar que possa existir um
jogo na indústria que claramente demonstra opiniões e as recria em termos de
mecânicas. Vivemos num bom momento para jogar video game.
Olá!
Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou fazer apenas um breve
adendo sobre Batman: Arkham Knight,
agora focando no mais novo DLC de história, chamado GCPD Lockdown. Ele se passa um pouco depois do final verdadeiro do
jogo, e aquilo em que eu vou focar neste vídeo é justamente a relação dele com
o final, então, é claro, este vídeo terá spoilers
imensos sobre o final. Fique à vontade para fechar o vídeo se você quiser
evitá-los. De qualquer forma, eu agradeço por você ter clicado no vídeo.
GCPD Lockdown é mais um dos DLCs curtos
de história que a Rocksteady tem lançado para Arkham Knight. Isso quer dizer que, em vez de estar próximo do
modelo narrativo do último DLC de história, que foi o voltado para a Batgirl,
esse é focado apenas em contar uma curta história, sem muita profundidade.
Ainda assim, esse curto episódio ainda foi capaz de atentar contra a história
principal.
Mas,
logo a gente chega isso. A proposta do DLC é contar a história da tentativa de
fuga do Pinguim de dentro da delegacia de polícia de Gotham. Para isso, ele
conta com a ajuda de uma série de capangas que invadem o prédio. Entretanto, o
Asa Noturna descobre o plano deles e vai lá impedi-los.
Na
prática, esse episódio é formado por apenas dois trechos de combates com vários
inimigos, um segmento de predador e uma parte final de combate aberto
novamente. Ou seja, é algo bem insipiente. Entretanto, eu acho que vale
destacar o bom trabalho de construção do Asa Noturna, que é bem caracterizado
como um garoto com grande senso de humor, e que fica tirando sarro de todos os
inimigos, principalmente do Pinguim. É uma grande divergência do padrão
silencioso do Batman, e que o DLC conseguiu realizar bem.
Em
termos de gameplay, porém, ele não se
diferencia muito do Batman, e só tem um tipo especial de golpe, que é bater com
os bastões no chão para dar uma breve atordoada nos inimigos, mas não é nada de
especial. Além disso, claro, ele é menos resistente.
Com
tudo isso, então, o DLC acaba sendo criativo na elaboração do personagem, mas
bastante tradicional quando o assunto é a jogabilidade mesmo. Outros DLCs, como
o da Arlequina e da Batgirl, conseguiram entregar mais do que isso. Contudo,
esse nem é o maior incômodo.
Para
mim, o principal problema desse DLC é que ele aponta um buraco imenso no final
do jogo principal, e que, na verdade, já tinha sido apontado por algumas
pessoas que discutiram o final de Arkham
Knight. Como quem fez 100% do jogo sabe, para conseguir o final verdadeiro
do jogo, o jogador precisa prender todos os vilões que perambulam por Gotham, o
que significa finalizar todas as side
quests do jogo.
Só
então o Bruce Wayne se sentiria livre para sumir do mapa. Entretanto, quem
conhece qualquer mídia relacionada ao Batman sabe que os vilões são
particularmente habilidosos quando o assunto é escapar. Aliás, nenhum vilão
teria o espaço que tem no cânone do Batman se algum deles ficasse na cadeia
depois de preso. Todos vivem escapando.
Sendo
assim, algumas pessoas se perguntaram: se o Batman sabe que toda hora os
criminosos vão escapar, como ele pode abandonar seu papel? Ele sabe que a luta
dele é infinita, já que ele nunca mata, e nenhum dos vilões é controlável de
outra forma. Só existem duas respostas para isso: ou ele não liga mais, ou ele
confia nos seus parceiros. Seja lá qual for a resposta, ela contradiz
imediatamente a necessidade de prender absolutamente todos para conseguir o
final, porque fazer isso não resolver nada e, portanto, não traz o sentimento
de encerramento que o final busca.
A
prova disso é o DLC do Asa Noturna, que se passa depois do fim do jogo, e
mostra como o Pinguim teria escapado tranquilamente, caso o Asa Noturna, que
sequer protege Gotham, não tivesse aparecido lá. O ciclo de tentativas de fuga
e prisões não se rompe mesmo depois do fim da história.
Alguém
poderia dizer que o Batman confiava nos seus parceiros e, por isso, ele se
sentiu confiante para sumir. Entretanto, isso entra em conflito com a falta de
confiança que o Batman deposita neles durante toda a história do jogo
principal, além de que, caso essa confiança realmente existisse, ela seria
equivocada, já que o DLC da Arlequina mostra como ela pôde vencer o Asa Noturna
e um monte de policiais facilmente, e ainda ajudar a Hera Venenosa a fugir.
Graças
a isso tudo, o DLC do Asa Noturna acaba deixando aparentes vários buracos do
final do jogo principal, e mostra como alguns DLCs muitas vezes não são
pensados para acrescentar algo à história, mas são feitos apenas para inchar o
jogo de conteúdo que sequer respeita o material original. Esse DLC é um grande
passo para trás se a gente compará-lo aos bons momentos do DLC da Batgirl,
mesmo que a caracterização do Asa Noturna tenha sido boa.
Olá!
Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou fazer um vídeo de
teoria que acumula uma série de reflexões que eu venho desenvolvendo há muito
tempo, e que talvez não seja diretamente sobre jogos em sua estrutura, e sim
sobre a comunidade que discute e reflete sobre jogos. Enfim, depois de muito
pensar sobre isso, e até discutir comigo mesmo sobre se valia a pena ou não
fazer um vídeo sobre isso um dia, uma discussão recente que está rondando a
internet nesta semana acabou me levando a tratar desse assunto.
Na
semana passada, o site Polygon
publicou um trecho do primeiro capítulo do livro WTF is wrong with video games, do jornalista e crítico de jogos
Phil Owen, e que basicamente afirmava que jogos têm arte, mas não são arte,
porque a lógica dos video games
atrapalha a coerência dos jogos e minimiza o controle que o artista pode ter
sobre a experiência. Assim, em termos visuais e de história, um jogo pode ser
arte, mas a jogabilidade sempre desestabilizaria a estrutura, o que arruinaria
o jogo como arte.
Enfim,
esse texto gerou muita controvérsia, com resposta diversas e pessoas
argumentando que o crítico não entendia os jogos, que colocava regras
excessivamente redutoras, que não importava discutir se jogos são arte ou não,
etc. Se você tiver algum interesse em conhecer o texto, dê uma olhada na
descrição deste vídeo e o link para
ele vai estar lá. O único problema é que ele está em inglês.
De
qualquer forma, este vídeo não é sobre esse texto, mas sobre um fenômeno muito
maior que ele representa, e que eu vejo se repetindo na comunidade desde que eu
passei a acompanhá-la em detalhe. E eu resolvi chamar esse fenômeno de “dificuldades
em discutir jogos como arte”, que é o título deste vídeo, como você já
percebeu.
Antes
de começar a lidar com esse tema, eu queria avisar que eu vou fazer uma análise
rápida da cobertura de jogos, tentando não mencionar indivíduos, e sim
tendências que eu considero importantes. Eu confio nas pessoas que regularmente
frequentam este canal, mas, se você eventualmente caiu aqui e não sabe o que
esperar, saiba que eu não estou tentando ofender o seu gosto ou a sua pessoa;
tudo isso é só uma reflexão, e que eu vou levar do início ao fim de forma
civilizada.
Um
último aviso: eu já falei sobre o assunto sobre jogos serem obras de arte aqui
mesmo neste canal, e você pode ver a minha opinião em detalhe no vídeo que eu
vou indicar na descrição. Neste vídeo, eu não vou entrar nesse mérito, mas eu
queria já deixar minha posição clara para ter todos os pressupostos já
explícitos.
A
primeira coisa que a gente precisa tirar do caminho nessa discussão é o mérito
de discutir se jogos são arte ou não. Muita gente coloca essa discussão de
lado, afirmando que isso só advém de um desejo de validar os jogos para um
público externo, e que o conceito de arte é amplo demais para ganharmos
qualquer coisa com esse debate.
Eu
não compartilho dessa visão. Na verdade, eu acho que essa discussão tem uma
finalidade dentro da comunidade, porque, na verdade, uma parcela imensa da
população que joga não leva os jogos a sério, não os trata com a dignidade que
eles merecem. Eu não vou entrar no mérito de por que isso acontece, mas eu
acredito que é um fato.
Um
exemplo que eu nunca deixo de lembrar é o do Podcast do Uol Jogos, chamado Playground, em que eles frequentemente
se referem a games como joguinhos, e
isso vem de pessoas que efetivamente trabalham com jogos. Eu não consigo
imaginar uma pessoa que trabalha com cinema chamar qualquer obra de “filminho”,
ou algum fã de romances chamar um deles de livrinho.
Eu
não acho que nós precisemos provar nada a ninguém de fora da comunidade, mas
provavelmente muito do preconceito que nós sofremos ao longo da história
permeou a visão de muita gente e leva a essa visão de que jogos são uma coisa
menor, menos digna, e eu acho que um primeiro passo para mudar isso seria uma
discussão sobre como jogos são arte. Não para ganhar um status externo, mas para que os próprios fãs passem a respeitar
mais aquilo que eles consomem.
É
claro que, nesse processo, as grandes forças motoras são as pessoas
responsáveis pela cobertura de jogos, porque a exposição dessas pessoas é que
dita um pouco os termos com que os debates se dão. Uma das grandes teorias
sobre a comunicação humana diz que nós nos expressamos levando em consideração
a forma como outros se expressaram antes de nós; a forma como nós vemos as
pessoas discutirem um assunto molda o nosso raciocínio na hora de pensar sobre
esse assunto, e é por isso que a gente constrói formatos de discussão.
Quando
eu fui começar este canal, eu estudei um pouco como o Zangado fazia os vídeos
dele, e pode ter certeza de que ele começou estudando outras pessoas, pegou
emprestado os critérios de análise que ele usa, etc. É um processo tradicional
da comunicação humana, e vale para tudo, na verdade, inclusive para o
desenvolvimento de jogos, e não só para o comentário sobre eles.
Sendo
assim, o papel de quem discute jogos como arte hoje em dia é essencial para
introduzir uma discussão riquíssima e que tem um papel social importantíssimo
na comunidade. Entretanto, muitas das pessoas que se dedicam a isso se mostram
completamente despreparadas, cometem uma infinidade de erros conceituais e, ao
final, fazem a questão toda parecer sem mérito algum.
Tomando
o texto que apareceu no Polygon como exemplo, o autor se perde completamente na
ideia de que a arte tem que ser absolutamente planejada, e que fazer com que
tudo importe significa eliminar uma série de práticas que são voltadas para
despertar certos sentimentos no jogador. Para ele, aquilo que está relacionado
estritamente à jogabilidade não tem uma lógica adequada, e não casa
corretamente com a história que se está tentando contar.
O
que ele falha totalmente em perceber é que, embora uma barreira de inimigos ou
de infectados, em The last of us,
tenha uma função de envolver o jogador mecanicamente, e aja, em termos
estritamente narrativos, como um obstáculo para o prosseguimento da história,
essa barreira também funciona como uma forma de introduzir o mundo ao jogador,
de fazê-lo sentir a adrenalina e o terror de ser perseguido e de estar em
número menor do que os inimigos, e com meios escassos para lidar com eles. O centro da mecânica é
o sentimento que ela imprime, exatamente como a história; é isso que faz delas
algo unificado. Quando o jogador precisa levar uma escada até a Ellie ou
ajudá-la a atravessar a água, ele está passando por um momento banal da
história, mas, em termos de mecânica, o jogo está incutindo o sentimento de
vínculo entre o jogador e ela. E isso porque o jogo não permite que você a
deixe para trás. Durante o texto, o
autor diz que um filme – e, por extensão, uma obra de arte – quer comunicar
algo a quem a consome. Entretanto, isso é incorreto, ou correto apenas com uma
importantíssima ressalva. Uma obra de arte não quer simplesmente comunicar;
aliás, se a gente pensasse assim, a arte praticamente não existiria, porque, na
maioria dos casos, escrever um tratado sociológico ou filosófico seria muito
mais claro e, por consequência, efetivo na tarefa de comunicar. Uma obra de arte
consegue despertar um efeito que vai além da mensagem em si; ele é mais
relacionado a um sentimento que é despertado em quem consome. Por isso, toda
obra de arte fornece uma experiência estética, o que é algo que pode conter uma
mensagem, mas não se limita a ela. Não à toa, algumas artes sequer têm uma
estrutura narrativa ou verbal, mas ainda conseguem despertar efeito, sem
necessariamente se limitarem a uma mensagem. Num jogo como The last of us, a história e a
jogabilidade estão trabalhando juntas, embora, em alguns momentos, elas pareçam
estar no caminho uma da outra. Tudo trabalha para criar uma certa atmosfera,
uma certo sentimento, uma certa experiência. Ou seja, uma noção falha
do que seria uma obra de arte coloca todo o texto do autor a perder. E eu só
citei um dos problemas relacionados a essa definição dele, eu poderia ir bem
mais longe, falando de como a verossimilhança parece tão afetada em jogos como
nas antigas tragédias gregas, que se obrigavam a certas limitações e, assim,
fugiam do conceito de naturalidade que a gente prega hoje, e mesmo assim mantêm
seu status de obras de arte. Eu também poderia falar
de obras de arte que contam explicitamente com a liberdade do consumidor, como
livros que permitem que o leitor siga uma ordem totalmente diferente de
capítulos do que a estabelecida tradicionalmente, ou mesmo peças de teatro que
chamam o espectador para participarem, o que efetivamente garante que nenhuma
peça será igual a outra. Isso deixa claro que a ideia de obra de arte
fortemente controlada sequer existe como absoluto hoje. Enfim, tudo isso
demonstra um fortíssimo desconhecimento das produções contemporâneas de arte, e
que destrói qualquer possibilidade de o texto ser levado a sério como um
comentário sobre arte, especialmente quando ele quer imprimir a ideia de que
algo é ou não arte sem nem fazer ideia do que seja arte em primeiro lugar. O mesmo vale para um
argumento que eu ouvi na época em que fiz meu outro vídeo sobre o assunto: que
jogos não poderiam ser obras de arte porque estavam inseridos no mercado e
visavam ao lucro. Na verdade, inúmeros artistas reconhecidos produziram visando
ao lucro, e isso nunca lhes tirou o status
de artista. Enfim, a tendência que
me parece clara é que uma grande parcela de textos e vídeos discutindo jogos
como formas de arte normalmente não está preparada para essa discussão, e
geralmente acaba desembocando em problemas conceituais que acabam não dizendo
quase nada de relevante sobre jogos ou sobre arte em geral. É o problema contrário
do texto do crítico de cinema Roger Ebbert, que escreve um texto inteiro sobre
como três jogos não são obras de arte baseado apenas num vídeo deles, mas sem
jogar um minuto sequer. Ele pode ter a teoria estética, mas não tem o contato
verdadeiro com a obra. Discutir obras de arte
é uma prática com bibliografia de quase 2500 anos, o que significa que há muito
a ser dito, e também muitas armadilhas para cair. Por isso, a primeira
dificuldade para estabelecer essa crítica de arte voltada para jogos é
justamente a quantidade de impropriedades ditas pelas pessoas que tentam
estabelecer esse debate. É claro que há pessoas que sabem o suficiente para
evitar incorrer nesses erros, e eu espero que elas ganhem cada vez mais voz,
mas não há garantia nenhuma disso. O fato é que esse ponto
de vista de arte é essencialmente um nicho na nossa comunidade, e isso em
grande parte porque ele é um tanto incompatível com o discurso predominante da
cobertura de jogos como nós a conhecemos hoje, que é o que eu chamo de “guia de
compras”. Um guia de compras
tradicional nada mais é do que um meio de comunicação que dá sugestões sobre o
que é bom comprar ou não. Ou seja, ele vê um jogo, antes de tudo, como um
produto, que é preciso avaliar em oposição a outros produtos, buscando
benefícios, problemas de desempenho, inovações, etc. Eu posso estar errado
ao afirmar isso, mas eu acredito que a prevalência dessa forma de cobertura de
jogos vem do período após a grande crise da indústria, na época do Atari. Um
grande problema da indústria da época é que jogos de qualidade duvidosa estavam
sendo lançados e jogadores insatisfeitos acabaram deixando de comprar, o que
levou a um problema financeiro grave. A solução para isso foi
o nascimento de veículos que analisavam os jogos e indicavam os melhores, além
de uma empresa como a Nintendo criar um selo de qualidade para garantir aos
compradores que o jogo de fato funcionava. Some a isso também o fato de que foi
nessa época em especial que o marketing
das empresas de jogos decidiu que games
deveriam ser voltados para crianças e você tem uma população com menos
dinheiro, que precisa analisar antes de fazer qualquer compra. Graças a essa história,
a cobertura de jogos cresceu em volta de análises que levavam extremamente em
conta alguns critérios que são completamente alheios a um ponto de vista
artístico sobre jogos – o que, aliás, faz bastante sentido, já que a ideia de
que jogos podem ser arte é posterior a esse período. Essa origem criou esse
ponto de vista tão específico com que as nossas análises são escritas ou
gravadas. Se um dia esse modelo fosse transplantado para outras formas de arte,
o choque seria imenso, porque ninguém prefere ler um livro só porque ele é mais
grosso do que outro, ou comprar um CD em vez de outro só porque um tem mais
canções. Não é nem um pouco comum ler um comentário sobre um filme, falando
para um leitor esperar uma promoção para comprar o DVD, ou coisa parecida.
Entretanto, é o que se faz com jogos. Em última instância,
isso criou uma dinâmica engraçada, em que jogos são muito mais vistos como
produtos do que como obras de arte ou mesmo entretenimento. Um dos vídeos de
que eu mais gosto aqui no Youtube mostra uma propaganda de jogo e uma de carro
e é assustador como elas são parecidas. Quando acontece de um jogo ser
discutido dentro de uma franquia, eu sinto um estranhamento ao ver um jogo ser
analisado, com uma lista de novas features,
como uma nova versão de um iPhone, por exemplo. O resultado disso é que
a imensa maioria das discussões sobre jogos são limitadas aos seguintes temas:
análise de performance, DLC,
microtransações, pré-venda, duração do jogo, existência ou não de modo single player ou multiplayer, relação preço x conteúdo, etc. Fala-se muito mais
sobre se os gráficos de um jogo são competitivos em relação a jogos parecidos
do que se a escolha estética foi adequada; uma história ser curta ou não é
muito mais assunto do que se ela é de fato boa. Graças a essa mentalidade, são
raros os espaços para discutir jogos em profundidade, até porque isso demanda
muito mais tempo e reflexão do que um youtuber ou um redator qualquer tem para
escrever antes do lançamento do jogo. Não é à toa que alguns
dos melhores e mais inteligentes textos e vídeos que a cobertura de jogos têm a
oferecer são voltados para jogos antigos: é porque houve tempo para se
familiarizar com o jogo, pensar sobre ele, ver como ele se sustenta. Hoje em
dia ninguém fala sobre a relação custo x benefício de Chrono Trigger, ou sobre se Castlevania:
Symphony of the Night é datado por ser 2D. As pessoas hoje podem
simplesmente falar sobre esses jogos, e é isso que torna a conversa mais rica,
porque nós podemos falar da arte. É claro que eu não
estou querendo dizer que falar dos jogos como produto é algo errado. Na
verdade, jogos são arte e são produtos, e devem ser tratados das duas formas.
Aliás, é justamente isso que nós, como jogadores, esperamos: que jogos sejam
tratados com cuidado e esmero pelos desenvolvedores, e não como um produto
qualquer, voltado para tirar o máximo de lucro. Nós esperamos um balanceamento
entre as duas coisas, e é muito engraçado que a própria mídia que cobre os
jogos não faça o mesmo. Talvez não haja
realmente interesse numa crítica sob o ponto de vista da arte, e eu esteja
apenas dando uma importância demasiada à forma como a nossa crítica é feita
hoje. Mas, para mim, como eu disse, quando o público só conhece uma forma de
discutir jogos, é só assim que ele discutirá. A partir de um momento muito
específico, criou-se uma crítica de jogos com finalidades bem claras. Esse
momento passou, mas ela permaneceu, e acabou determinando todos os jogadores e
comentadores que vieram depois. E, quando um jogador
eventualmente alcança um tipo diferente de discurso, muito do que ele encontra
são opiniões não embasadas, que acabam deturpando o que é uma discussão
verdadeira sobre arte. Essas são duas dificuldades que trabalham juntas e
sabotam as oportunidades de discussão de arte sobre jogos e é triste vê-las
permanecer por tanto tempo. Eu acompanho jogos em detalhe há uns 3 anos e eu
vejo essas tendências se repetindo constantemente.
Olá!
Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje é dia de encerrar um ciclo
muito importante para mim. Para quem não conhece muito a história desse canal,
eu sou um fã quase incondicional do primeiro Bioshock. Para mim, ele é um jogo excelente, e com uma profundidade
na concepção do seu mundo e dos seus personagens que quase nenhum jogo até hoje
conseguiu fazer. Por conta disso, ele é um dos meus jogos preferidos, e
provavelmente é uma das melhores coisas que foram produzidas na geração
passada.
Graças
a esse carinho que eu tenho pelo jogo, eu analisei no canal todos os jogos da
franquia, e eu fiquei feliz com a continuação modesta de Bioshock 2, que fez todo o possível para retomar o mundo de Rapture
e ainda adicionar elementos que pareciam pertencer a ele.
Entretanto,
quando Bioshock Infinite foi lançado,
eu fiquei extremamente decepcionado, porque o jogo tem problemas sérios no seu
enredo e na construção do seu mundo, de forma que a coisa mais legal da série
para mim acabou indo por água abaixo. Muita gente discordou de mim na época,
mas, conforme o tempo vem passando, eu tenho visto mais e mais análises que
veem problemas no jogo, tanto os que eu já tinha apontado, como outros que
passaram despercebidos por mim.
Hoje
em dia, a desenvolvedora do primeiro Bioshock
e de Infinite, a Irrational Games,
nem existe mais, mas, antes de ser fechada, ela lançou dois DLCs de história
que, de alguma forma, procuram amarrar a trama dos dois jogos que ela
desenvolveu. Esses DLCs se chamam Burial
at Sea, ou enterro no mar, e é deles que eu vou falar neste vídeo.
Antes
de começar propriamente, eu quero avisar que haverá uma enxurrada de spoilers no vídeo, porque os DLCs já são
meio antigos, o último saiu há um ano e meio, e, como eles são focados na
história, é impossível tratar deles sem comentar a trama. O mesmo vale para as
histórias de Bioshock e Bioshock Infinite: eu vou mencionar spoilers conforme for necessário. Então,
se você não quiser saber nada sobre a história desses jogos, fique à vontade
para fechar o vídeo. Dito isso, vamos lá.
Burial at Sea se passa em Rapture, a
cidade que é palco dos dois primeiros Bioshock.
Lá existe também um Booker DeWitt, o protagonista de Bioshock Infinite, e ele trabalha como detetive particular. Num
certo dia, aparece ninguém menos do que Elizabeth, perfeitamente adequada ao
visual dos anos 50 de Rapture, e não como a garota do começo do século XX de
Columbia, que nós conhecemos em Infinite.
A
Elizabeth contrata os serviços do Booker para encontrar uma menina chamada
Sally, que teria desaparecido e sido dada como morta. Ela é muito importante
para o Booker e, por isso, ele aceita a missão, apesar de ter certa
desconfiança da Elizabeth e enxergar os perigos da jornada.
O
primeiro episódio de Burial at Sea
tem um clima fortemente inspirado pelo cinema noir, que predominou na metade do século XX e que deixou marcas até
hoje, como você vê em diversas obras da nossa cultura. No geral, o DLC cumpre
uma série de clichês do gênero, como focar numa investigação particular, ter um
detetive durão, embora seja meio desprezado pela sociedade, contar com uma
missão dada por uma mulher misteriosa e inteligente, etc.
É
uma escolha estética bem interessante, que casa com o estilo de Rapture e ainda
oferece uma coisa diferente, pois, se, por um lado, a cidade ainda está
funcionando normalmente, por outro, o clima sombrio do cinema noir confere um certo pessimismo visual
ao que está sendo retratado lá.
Para
um fã do primeiro Bioshock, o maior
charme desse DLC é visitar Rapture sob um outro prisma, agora no seu ápice, em
vez da Rapture decadente em que a ação do primeiro jogo se passa. Eu
particularmente não me interesso muito por isso, porque eu acho que tudo que
precisava aparecer sobre os personagens clássicos de Bioshock já estava presente no jogo, mas eu entendo esse retorno e
acho que não se perde nada com isso.
O
que realmente chama a atenção nesse DLC é que a dinâmica entre Booker e
Elizabeth é tão boa quanto era em Bioshock
Infinite e que, no fundo, parece que essa dinâmica era tudo que a
Irrational Games soube entregar corretamente no jogo e nessa DLC. Novamente, a
história dos dois coloca Rapture como um pano de fundo simples em vez de
explorar mais a cidade e, no geral, os personagens conhecidos que aparecem soam
mais como fan service do que como uma
oportunidade nova de explorá-los.
Em
grande medida, Burial at Sea soa como
uma revisita a Rapture sob a ótica de Bioshock
Infinite – o que faz sentido, já que a história é um DLC de Infinite. Entretanto, o resultado disso
é uma dissociação forte entre o que a equipe da Irrational era em 2007 e o que
ela era em 2013. Em Bioshock, o
protagonista não era o Jack, que o jogador controlava; o protagonista era a
cidade de Rapture, sua dinâmica única, seus personagens fortes e suas mensagens
críticas sobre ideologia.
É
claro que o Jack tem uma função e uma importância na história, mas só como um
capítulo final de um romance, as cenas finais de um filme épico, e o que torna
esse filme épico é justamente toda a história e os personagens que apareceram
nele, e não só as cenas finais. Bioshock
é um dos jogos em que o contexto importa mais.
Em
Burial at Sea, esse contexto
praticamente inexiste. Como aconteceu com Columbia na segunda metade de Infinite, Rapture vira um simples
cenário – e com isso o poder da mensagem se esvai e os grandes personagens mal
são tocados, e o foco fica inteiro na dinâmica dos protagonistas, que, como eu
disse, não é ruim, mas parece que o cenário fica intercambiável.
E
esse aspecto intercambiável se mostra quando alguns elementos de Infinite aparecem no DLC, mesmo que
nunca tenham aparecido em Rapture. O Booker tem um escudo e um gancho, e os plasmids são os mesmos de Columbia. Além
disso, existe uma batalha contra um Big Daddy no final do primeiro episódio, e
ela é bem mais fácil do que as tradicionais batalhas do primeiro Bioshock.
É
claro que essas reclamações minhas podem ser desconsideradas se a gente lembrar
da ideia de “constantes e variáveis”, que marcava Infinite. Ou seja, essas diferenças em relação ao primeiro Bioshock se explicariam porque a
dimensão em que se passa o DLC não é a mesma da dimensão em que se passa o
primeiro jogo. Mas, sendo assim, eu tenho grande dificuldade em entender qual é
o valor de voltar para Rapture se não vão ser respeitadas as regras daquele
mundo. No final, só fica maior aquele sentimento de que os cenários são
intercambiáveis.
Sendo
assim, Burial at Sea não respeita nem
um pouco aquilo que fez de Bioshock
uma experiência realmente memorável, sendo muito mais próximo do estilo que a
segunda metade de Infinite adotou,
tanto em termos de história quanto de jogabilidade. Por isso, eu vou olhar um
pouco mais sob esse ponto de vista.
A
dinâmica entre Elizabeth e Booker continua muito boa, funcionando tanto nos
diálogos quanto na jogabilidade, com a possibilidade de ela jogar itens de
recuperação e munição para o Booker, além de um trecho em que ela ajuda o Booker
a se infiltrar em certas lojas. Existe uma diferença na relação dos dois quando
a gente compara com a história do jogo principal, com a Elizabeth sendo um
pouco menos amigável com o Booker no DLC.
E
essa diferença é devidamente explicada no final do primeiro episódio. Na
verdade, toda a história de buscar a menina Sally foi uma armadilha planejada
pela Elizabeth para matar o Booker, ou, na verdade, Comstock, que, naquela
realidade, tinha fugido de Columbia para esquecer o fato de que tinha matado a
Elizabeth bebê.
E
esse final é bem interessante, e será retomado no episódio 2, de que eu já
falo: a questão é que isso muda muito a visão da Elizabeth como personagem.
Durante toda a história principal de Bioshock
Infinite, ela é retratada como uma moça inocente, que lentamente vai
ganhando maturidade, e que, apesar de cometer assassinatos na trama, nunca
perde aquela aura de justiça, de quem age com violência para deter um mal
maior.
A
Elizabeth de Burial at Sea é
completamente distinta. Ela elabora um intricado plano apenas para se vingar do
Comstock, que provavelmente já tinha sofrido muito, a ponto de fugir da sua
cidade dos sonhos e se abrigar em outra dimensão apenas para esquecer. Mas, não
é só isso: ela matou o homem que só queria salvar uma menina indefesa.
Essa
é uma Elizabeth vingadora, que quer ver sangue, e que não se importa com as
consequências. Ou pelo menos, é o que parecia. De qualquer forma, é um novo
caminho para a personagem mais carismática do jogo, o que é algo muito
arriscado e interessante para acontecer na série. Graças a isso, a melhor parte
do jogo e do DLC, que são os dois protagonistas, acaba se tornando ainda
melhor.
Mas,
essa aparente de mudança da Elizabeth estará no centro do segundo episódio de Burial at Sea. Aliás, na verdade, esse
episódio é uma tentativa de consertar uma infinidade de coisas que a equipe
sentiu que precisavam ser consertadas, e isso com razão ou não. Por causa desse
impulso de alterar e consertar, esse segundo DLC é sempre surpreendente, para o
bem e para o mal.
A
primeira coisa que o DLC altera (e que, para mim, é um crime) é o final do
primeiro Bioshock. Logo no início, o
jogo faz uma recapitulação da história do primeiro jogo e assume como canônico um
dos dois finais do jogo. Isso destruiu todo o senso de escolha que permeava o
primeiro Bioshock.
O
senso de escolha de Bioshock já foi
muito criticado, geralmente porque o jogo supostamente deixa óbvia qual é a
escolha correta a tomar, mas o fato é que eu já vi gente assumindo como óbvias
as duas escolhas opostas do jogo, como sendo algo que o jogo guia o jogador a
fazer. Sendo assim, para mim, apesar de um tanto simplificado, o sistema de
escolha funcionava e fornecia finais que faziam sentido com a ideologia adotada
pelo jogador. Não só isso: um dos finais é muito emocionante, e parte dessa
emoção vem do fato de que foi o jogador quem o construiu.
Burial at Sea abole o poder de escolha
do jogador como se nunca tivesse existido, o que significa, em grande medida,
alterar significativamente a estrutura de Bioshock,
e não para melhor. Mas isso é só uma primeira mudança.
O
episódio 2 começa com a Elizabeth acordando em Rapture ao lado do corpo do
Booker, e vendo a Sally sendo sequestrada pelo grupo do Atlas, que é o grande
vilão do primeiro Bioshock. Para
conseguir salvar a menina, ela faz um acordo: ela se encarregaria de levar o
exército de Atlas de volta a Rapture, e ele soltaria a garota. Ele aceita, já
que não tem nada a perder no processo.
A
mudança que se passou é que a Elizabeth não aguentou viver com a culpa de ter
deixado a Sally indefesa, após matar o Booker que tentava salvá-la. E ela não
salvou a Sally porque morreu antes de conseguir escapar de um Big Daddy. Essa é
a parte mais obscura da história, mas me parece que outra versão da Elizabeth,
de outra realidade, recebeu as memórias dela e decidiu salvá-la. Mas, como uma
Elizabeth já tinha morrido naquela dimensão, o preço a pagar para voltar seria
perder todos os poderes especiais dela. Mesmo assim, ela aceita.
Isso
marca um retorno interessante à essência antiga da personagem, o que é tão rico
quanto ter se desviado dela. Como ela é uma garota que viveu isolada do mundo
por tanto tempo, a Elizabeth tem certa dificuldade em entender as nuances do
convívio humano. A lição que ela aprendeu ali foi que a vingança sempre gera
outras vítimas, que estão envolvidas apenas indiretamente, mas que são
afetadas. E, por isso, ela precisa se redimir.
Entretanto,
ela não é uma grande combatente, como o Booker, então todas as mecânicas do DLC
serão alteradas para dar destaque ao stealth.
Isso não é completamente estranho à franquia, já que o primeiro Bioshock permitia certos approachs voltados a stealth, com invisibilidade, plasmids que voltavam um inimigo contra
o outro, etc. Em Burial at Sea2, o jogo se concentra nesse aspecto, e
os resultados são bem positivos, pelo menos até certo ponto.
Quando
se fala em stealth em primeira pessoa
com poderes, é difícil não pensar, hoje em dia, em Dishonored, que saiu um ano e meio antes de Burial at Sea e executa stealth
de uma forma muito melhor. Mas, independente disso, o DLC ainda funciona bem,
os inimigos são poucos e permitem que o jogador planeje bem suas ações, e as
ferramentas são variadas o suficiente para que a experiência seja satisfatória.
Você pode usar plasmids como
armadilhas, usar canos de ventilação para se movimentar, usar dardos
tranquilizantes para abater inimigos ou dardos barulhentos para distraí-los,
etc.
Na
verdade, esse stealth foi bom o
bastante para eu achar que Infinite
poderia ser inteiramente voltado a stealth
e ser um jogo muito bom, com jogabilidade superior ao que se encontra no jogo
principal. Seria algo como um The last of
us em primeira pessoa.
Durante
esse DLC, a Elizabeth precisa interagir com uma série de personagens clássicos
de Bioshock, e também reencontra
algumas figuras conhecidas de Infinite
e, graças a essa interação, há uma tentativa de ligar os dois jogos de uma
forma mais clara. Graças a uma fenda usada pela Elizabeth, os cientistas de
Rapture e Columbia se comunicam e por isso a questão de como plasmids aparecem em Infinite estaria explicada.
Mas,
a principal mudança no universo de Columbia acontece em relação a um assunto
que eu critiquei bastante no meu vídeo sobre Infinite e está relacionada à líder dos revoltosos, a Daisy. No
jogo principal, ela lidera o grupo de negros de Columbia numa batalha pelo fim
da opressão que a cidade impunha a eles, entretanto, sem nenhuma explicação,
ela resolve tentar matar uma criança branca para que nenhum branco restasse na
cidade. Para salvar a criança, a Elizabeth a mata.
Isso
não era nem um pouco necessário na história do jogo e só servia para dar uma
estranha e reacionária visão de que, num conflito armado, todos os lados são
iguais, quando há muitas nuances a serem consideradas. O fato é que o jogo
demonizava os revoltosos com as mesmas cores que demonizava os opressores. Isso
era um problema sério da ideologia de Infinite.
Em
Burial at Sea, entretanto, uma cena
nova aparece, em que os irmãos Lutece, que têm conhecimento de várias realidade
e tempos, afirmam à Daisy, que, se ela ameaçar a criança e for morta pela
Elizabeth, a revolução terá sucesso. Por causa disso, ela aceita fingir que
mataria a criança. Tudo não passa de uma encenação organizada pelos Lutece para
que a Elizabeth amadurecesse.
É
muito difícil entrar no mérito do que motivou essa mudança tão radical na
trama. Pode ser uma autocrítica do roteirista, pode ser por causa das poucas
críticas que levantaram esse problema, ou pode até ser porque estava tudo
planejado desde o início. Eu tenho a minha opinião e eu não acho que uma virada
dessa foi planejada na época do lançamento do jogo, mas isso é especulação e
permanecerá como tal até o dia em que o Ken Levine vier a público e disser a
verdade.
O
que realmente importa é que, em grande medida, isso conserta o problema
ideológico de Infinite, e o torna um
jogo melhor por causa disso. Se Burial at
Sea não atentasse tanto contra a estrutura do primeiro Bioshock, seria ótimo tê-lo como um epílogo a Infinite, pois há realmente uma preocupação em evoluir os
personagens do jogo.
E,
além de redimir um dos personagens mais importantes do jogo, essa cena com a
Daisy também serve como prelúdio para o que acontecerá no final de Burial at Sea. Durante todo o episódio
2, a Elizabeth não consegue entender sua decisão de voltar e perder os poderes,
já que ela provavelmente nunca sairia de Rapture sem eles. Ela não sabe o que
ela pôde ver no futuro e que a fez tomar essa decisão.
Ao
final do jogo, fica claro que ela viu que, apesar do Atlas ser um vigarista e
traí-la, como a Elizabeth sabia que aconteceria, nada importava, porque toda a
ação do episódio 2 encaminha a trama do primeiro Bioshock, que, em última instância, termina com o Atlas morto e,
segundo a nova visão que o DLC propõe, com a menina Sally sendo resgatada e
criada pelo Jack.
Graças
a isso, o ciclo da Elizabeth também se completa, com ela morrendo em Rapture
nas mãos do Atlas, mas tendo que lutar para sobreviver e superar as
adversidades, não para sair viva de lá, mas para ver seu único erro consertado,
que foi ter impedido o Booker de salvar a Sally.
Esse
final parece o maior esforço possível da parte do Ken Levine para encerrar todo
o ciclo de Bioshock, sem deixar
margens de reaproveitamento para que outro estúdio retome e mude a sua visão
daqueles universos. A história da Elizabeth foi retratada de uma ponta à outra,
e Rapture foi mostrada do auge ao fim, especialmente se a gente considera
também Bioshock 2.
O
que importa, entretanto, é que esse final deixa bem claras as diferenças entre Bioshock e Infinite, que ficam ainda mais evidentes pelo fato de que Burial at Sea se passa em Rapture: o DLC
não busca uma conclusão para Columbia ou para Rapture, e também não busca
discutir múltiplas dimensões; ele buscar contar a história de uma personagem, a
Elizabeth. Ele se debruça em contar como ela seguiu sua vida após a perda do
Booker e como ela se resolveu enquanto indivíduo.
Graças
a isso, resolve-se aquela crise de identidade que eu mencionei na minha análise
de Infinite, porque o jogo não sabia
se queria tratar da cidade ou da existência de múltiplas dimensões. Na verdade,
o que une o jogo todo, e o DLC também, é a história da Elizabeth, e o resto é
pano de fundo; tudo só ganha destaque na medida em que serve para a personagem
dela se desenvolver.
E
essa é a maior diferença entre Infinite
e Bioshock: Bioshock é um jogo sobre ideias e práticas sociais, é um jogo sobre
como se relacionar com o outro, sobre como enxergar o mundo e as suas
prioridades pessoais; Infinite é
sobre uma personagem que tem uma personalidade instigante e uma vida memorável.
Vendo esses dois jogos
dessa forma, é incrivelmente curioso como eles fazem parte de uma mesma série
e, pensando bem, talvez fosse melhor que eles não fizessem, porque, em grande
medida, a retomada de elementos de Bioshock
soma como um peso à história que Infinite
quer contar, e aí aparecem as incongruências de que eu falei. E, para consertar
e finalizar a história da Elizabeth, a Irrational distorce a estrutura de Bioshock.
Se tem uma lição que
pode ser tirada vendo toda a trajetória da série Bioshock é que não é necessário que tudo seja uma franquia, e que
essa pressão da nossa indústria gera produtos desconjuntados e problemáticos,
como é Bioshock Infinite.