segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

That Dragon, Cancer - Pensando sobre o jogo



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de That dragon, cancer, jogo desenvolvido pela Numinous Games e lançado agora em janeiro para PC e Ouya. Em termos estruturais, ele é um jogo muito simples e, no geral, desinteressante, mas que se destaca pela temática única na nossa indústria, pela honestidade com que a trata e que, em alguns trechos, faz com que a jogabilidade crie momentos de impacto.

A história de That dragon, cancer é uma recriação lúdica de um evento dos dois principais envolvidos na criação do jogo, um casal que perdeu o filho ainda bem pequeno por conta de um câncer. A experiência tenta, então, contar um pouco sobre os sentimentos vividos por um casal de pais vendo seu filho sendo lentamente vencido por uma doença terrível e implacável.

Graças à escolha de temática, o jogo já se destaca na história da nossa indústria, pois é muito difícil encontrar um tema tão negativo e que causa tamanha frustração e impotência, o que, claro, é o contrário dos sentimentos sobre os quais a história dos jogos se construiu.

Para tratar um tema tão pouco convencional nessa mídia, o jogo adota diversas interações, que são abandonadas com frequência em favor de outras, que talvez expressem a próxima cena de uma forma mais pungente. Isso reflete a própria estrutura da história, que é contada em capítulos bem distintos. Assim, embora o jogo prefira adotar uma mistura de mecânicas de jogos de exploração em primeira pessoa e point and click, não é estranho de repente passar para um quick time event, para um minigame de corrida, ou ainda para um trecho em 2D.

A quem está jogando, o game parece uma colagem, uma coleção de momentos, e talvez essa seja a sua pior escolha estética, e isso em vários níveis. Em termos de jogabilidade, isso significa uma multiplicidade de mecânicas, mas com nenhuma propriamente implementada de forma satisfatória. Não raro a movimentação fica arrastada demais ou os controles não são precisos o bastante.

É claro que um jogo como That dragon, cancer não se pretende um jogo de ponta no quesito jogabilidade, mas as limitações das mecânicas perturbam o jogador num nível tal que ele acaba saindo da experiência; ele nunca chega a ficar totalmente imerso, e isso é um problema quando o seu jogo procura passar um sentimento. Para isso, é necessária uma jogabilidade que funcione bem ou que simplesmente saiba se esconder e deixar o resto da experiência brilhar. Em That dragon, cancer, a jogabilidade é como uma pedra no sapato do jogador.

A ideia da coleção de momentos complica muita coisa também em termos de história, porque o jogo muitas vezes não dá o tempo necessário ao jogador para sentir o peso de cada cena apresentada. Muitas vezes, o jogo parece querer comunicar os bons momentos que uma criança com câncer pode viver e proporcionar aos seus pais, mas é tudo tão rápido e comunicado por situações que não expressam uma beleza genuína ao jogador.

Logo no primeiro capítulo, por exemplo, o jogo abre a possibilidade de o jogador brincar com o menino Joel, mas essas brincadeiras são quase que unilaterais, com o jogador clicando uma vez e a brincadeira se realizando sozinha. Uma risada ou outra pode dar uma satisfação momentânea ao jogador, mas isso acaba sendo muito pouco em comparação com o que os pais queriam expressar e com aquilo de que o jogo efetivamente precisava para funcionar.

Era necessário ter mais tempo em cada cena, e planejamento para que cada uma deixasse uma impressão suficiente no jogador, para que ele entendesse o conflito que o jogo gostaria de expressar, que é a luta entre o amor dos pais pelo filho e o sofrimento que a doença dele causa a todos.

E seria muito bom se fosse possível realizar isso, mas o fato é que só as cenas negativas têm o impacto necessário, e mesmo assim nem todas obtêm sucesso. Entretanto, para além das limitações que a jogabilidade impõe, esses momentos deixam ver uma honestidade no texto desenvolvido para cada um dos pais, que se dividem em como encaram a doença do filho, entram em conflito, e se angustiam ainda mais por se verem unidos na dor, mas, ao mesmo tempo, desunidos pela forma como lidam com ela. Alguns trechos muito pungentes acontecem nesses momentos.

Há, porém, uma grande cena no jogo, que eu considero muito poderosa, e que me deu a pista do que ele poderia ser, mas só foi por breves momentos. Um dos capítulos do jogo coloca o pai, que é o que encara a doença da forma mais negativa e angustiada, cuidando do filho doente. Durante todo esse trecho, a criança chora e, por mais que o jogador e o pai tentem, ela não para de chorar. Aliás, as coisas que o jogador tenta fazem mais mal do que bem.

Assim, o jogador fica preso no quarto, com aquele som irritante da criança; ele pode se mover pelo quarto, mas se mover ou interagir com uma ou outra coisa não vão ajudar. É uma sensação de angústia e impotência genuínas que acaba sendo passada ao jogador de forma muito efetiva. É claro que a angústia de ter o filho entre a vida e a morte é algo totalmente distinto, mas o jogo é feito justamente para capturar a angústia da convivência com o câncer, e essa cena desperta exatamente esse sentimento.

Infelizmente, o jogo nunca vai conseguir replicar o alto nível que essa cena criou. E, pensando após finalizar as duas horas que compõem a experiência, eu não pude evitar o sentimento de que o jogo poderia ter sido mais livre e coeso mecanicamente, num estilo de The Stanley Parable ou Everybody’s Gone to the Rapture, que fornecesse uma base sólida de interação, mas com margem de manobra para muitos trechos diferentes.

Como foi realizado, That dragon, cancer é como uma experiência de liberação emocional para os pais que desenvolveram o jogo, e que funciona apenas com pais, porque um pai pode acessar suas memórias emocionais e preencher a frieza que as mecânicas superficiais criam. Enquanto um pai clica e vê uma criança no jogo se movendo num balanço sozinha, ele pode lembrar de quando levou seu filho ao balanço; quando o jogo mostra os pais conversando com o médico, ele pode lembrar de quando levou seu filho doente ao médico pela primeira vez, etc.

Nesse sentido, é algo como Journey faz, permitindo ao jogador colocar suas memórias e dar significado à experiência, mas Journey era muito mais bem-sucedido nisso por criar uma experiência mecanicamente sólida e extremamente vaga em termos de trama. That dragon, cancer trata de uma situação muito específica e que precisava da devida construção para criar a empatia necessária. Como está, é um jogo que depende demais das experiências pessoais do jogador.

E era isso que eu queria dizer sobre That dragon, cancer. É um jogo inovador em tema, e cheio de honestidade e boas intenções, mas que, apesar de construir cenas pungentes, tem muita dificuldade em comunicar verdadeiramente os sentimentos que queria.

Batman: Arkham Knight - Adendo sobre o DLC Season of Infamy



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou acabar o ciclo de vídeos sobre Batman: Arkham Knight, falando sobre o último DLC de história do jogo, chamado Season of Infamy, lançado um pouco antes do natal. Para mim, ele tem grande qualidade, representa um momento importante dentro do universo que a Rocksteady criou para o Batman, e oferece um tipo de experiência muito mais próxima ao que eu queria para a série.

Em termos gerais, Season of Infamy não é um pacote coeso de missões, como foram os outros DLCs da série até hoje. Na verdade, ele é um conjunto de missões em torno de quatro vilões específicos, e nenhum desses vilões demonstra conexões entre si, e, na verdade, apenas uma dela tem ligações com o que acontece na história de Arkham Knight, e ainda assim isso não é o centro. Ou seja, o DLC é só uma nova seleção de side quests para o jogo.

Entretanto, embora ele não se conecte harmonicamente ao jogo, esse DLC oferece, em sua maior parte, uma ligação muito poderosa com a série Arkham, e ela oferece discussões e conclusões acerca de assuntos que ficaram um tanto pendentes nos jogos anteriores.

Mas, vamos por partes. O DLC oferece missões relativas a quatro personagens: Chapeleiro Maluco, Killer Croc, Doutor Freeze e Ra’s Al Ghul. Em termos de qualidade, eu acho que as missões seguem a ordem que eu falei agora. A do Chapeleiro é a mais simples e, a rigor, repete muito dos padrões repetitivos de design que Arkham Knight adotou no geral, e me parece muito parecida com a missão do Chapeleiro em Arkham City: o Batman precisa resgatar alguém e, no meio do caminho, precisa lidar com jogos mentais psicodélicos.

A do Croc já é mais interessante, porque há menos repetição. O Batman e o Asa Noturna vão investigar um dirigível acidentado, que funcionava como prisão alada, e descobrem que o Croc estava lá, mas escapou e sequestrou o chefe da prisão. Essa missão foca mais exploração, uso de gadgets e, no final, ainda tem uma batalha que segue o padrão de luta de Arkham Knight, com duplas em vez de um combate direto.

Particularmente, eu acho que essa batalha contra chefe foi ainda decepcionante, porque ela é focada em combate puro e simples, em vez de lidar com as especificidades do vilão, mas eu ainda acho que o saldo da missão é positivo, porque ele discute um pouco sobre a mente do Croc, e sobre como ele agir como um monstro é tanto um instinto dele, quanto uma reação à forma como as pessoas o veem. É uma ideia interessante, já apresentada em outras mídias, mas tratada com correção no jogo. Não é um encerramento para o personagem, mas é um capítulo intermediário muito bom.

Note que eu estou discutindo esse DLC muito mais em termos de história, mas é porque esse é claramente o foco, com exceção da parte do Chapeleiro. De resto, o jogo parece seguir uma estrutura mais roteirizada, com menos repetição e mais contexto. Nas side quests do jogo principal, geralmente o que se deve fazer é repetir uma série de vezes uma mesma coisa, até que um confronto final apareça. Era o oposto da campanha principal, que fazia o Batman alternar ações.

O DLC Season of Infamy é como um conjunto de missões no modelo da missão principal do jogo, mas diminuído em escala. Em última instância, é como as side quests do jogo principal deveriam ter sido, porque, se assim fosse, haveria um sentimento mais claro de imersão no universo, com histórias menos mecânicas e que efetivamente avançassem.

Isso fica perfeitamente claro nas duas missões que ainda falta comentar. A do Doutor Freeze tinha muito a provar, já que ele foi talvez o vilão mais desenvolvido na série (com exceção, claro, do Coringa) e merecia um fechamento adequado. E foi exatamente isso que o DLC deu a ele.

A missão dele envolve devolver a mulher do doutor a ele, porque ela foi sequestrada pela milícia quando ele disse não ter interesse em lutar contra o Batman. Só esse movimento é muito interessante, porque mostra como o Doutor Freeze é um personagem muito mais calculista do que os demais; ele só enfrenta alguém se tiver algo importante em jogo.

Embora essa missão comece de um jeito bem tradicional – aliás, ela lembra uma missão de Arkham City –, ela muda drasticamente na segunda metade, e se torna algo muito mais emotivo, que trabalha o personagem do Doutor Freeze de um jeito muito interessante e, na verdade, melhor do que eu jamais vi na série Arkham ou em qualquer outro lugar. Para quem gosta do personagem, embora seja uma missão curta e com basicamente três ou quatro etapas, é algo muito interessante, porque oferece caminhos pouco ortodoxos ao personagem.

E, se o lado pouco tradicional da série começa a aflorar na missão do Doutor Freeze, ele alcança o seu ápice na missão que falta comentar, dedicada a Ra’s Al Ghul. Se você não lembra de quão corajosos os escritores envolvidos na série podem ser, basta lembrar de todos os personagens que morreram em Arkham City. Infelizmente, essa coragem não estava presente na história de Arkham Knight, que, na verdade, é a história mais covarde já contada na série, que não se compromete com absolutamente nada.

A missão do Ra’s Al Ghul muda isso. Tudo começa com o Batman investigando dois corpos de membros da Liga dos Assassinos e que lutaram entre si até a morte. A questão é que há uma dissidência na liga, que se dividiu entre os que querem recuperar Ra’s Al Ghul mais uma vez, depois dos ferimentos graves sofridos em Arkham City, e os que acham melhor ele finalmente morrer. O Batman basicamente acaba funcionando como um agente duplo e precisa escolher como se posicionar nessa guerra.

A palavra-chave nessa missão é escolha: o jogador tem o poder de escolher o desfecho dessa história, o que é totalmente novo na série, que, para o bem e para o mal, sempre foi muito scriptada. É claro que isso não muda nada no jogo, ninguém vai te tratar diferente, essa decisão não vai ser retomada ou algo assim. Ela é simplesmente uma chance de você dar um toque seu ao Batman, dizer quem ele é para você, ou o que você gostaria que ele fosse.

O Batman é um personagem com 75 anos de história, e passou por muitos escritores, roteiristas, ilustradores, game designers, etc. Isso faz dele um personagem multifacetado, talvez como nenhum outro. Essa pequena escolha no DLC faz com que você possa escolher de que Batman você gosta mais, você constrói um pouco o Batman da série Arkham, e isso é um encerramento que eu achei muito especial, e fico feliz por ter deixado essa missão por último. Aliás, se você resolver jogar esse DLC, eu recomendo que também deixe a missão do Ra’s por último.

É difícil explicar ao certo exatamente o que as missões do Doutor Freeze e do Ra’s Al Ghul significam para um jogador da série. Eu teria que comparar com outro DLC, para um outro jogo: Season of Infamy me lembra muito o DLC Citadel, de Mass Effect 3. Em Citadel, o jogador tem um conjunto de missões que basicamente servem como uma despedida para o jogador, um último momento para dividir histórias com os personagens a quem tanto se apegou, mas que, cedo ou tarde, terão que ir embora.

Season of Infamy é isto também: um momento para amarrar as pontas soltas, para oferecer respeito aos personagens interessantes da série. Por isso mesmo, é um momento especial, e que deixa o jogador satisfeito e, ao mesmo tempo, completamente sem entender nada.

Eu digo isso porque é muito difícil entender como o mesmo grupo de desenvolvedores consegue fazer uma série de missões originais e interessantes em Season of Infamy e resolve fazer missões com design completamente burocrático no jogo principal. Mesmo os DLCs curtos lançados até agora, com exceção do da Batgirl, eram pouquíssimo originais, conflitavam com a história, e, para durarem mais, tinham picos de dificuldade muito estranhos à série.


Na minha cabeça, o conjunto de Arkham Knight vai ser uma das coisas mais difíceis de entender em termos da indústria de jogos – é até por isso que eu resolvi fazer tantos vídeos sobre o jogo, acompanhando um pouco as oscilações que todo esse processo viveu. De qualquer forma, a resposta que fica é que Arkham Knight foi um terceiro jogo infeliz, que tinha potencial e talento no seu conceito e na sua equipe, mas que, por algum motivo, teve dificuldade em manter uma constância no uso desses elementos.

Undertale - Pensando sobre o jogo



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Undertale, jogo desenvolvido por Toby Fox graças a uma campanha de Kickstarter bem-sucedida e lançado para PC em 2015. Ele é um jogo que tomou a comunidade de assalto, e fez muita gente se apaixonar, e isso é porque ele é um caso muito único do momento que nós vivemos na indústria.

No mundo de Undertale, há humanos e monstros, mas, por conta de uma guerra, os humanos baniram os monstros para o subterrâneo e os prenderam com uma barreira. A história do jogo acompanha um humano que cai acidentalmente num buraco e acaba no subterrâneo, onde ele encontra vários monstros e têm a oportunidade de decidir como se relacionar com eles.

O grande elemento da jogabilidade de Undertale que as pessoas costumam mencionar é justamente essa escolha de como lidar com os monstros: você pode atacar e matá-los ou simplesmente lidar com eles, conversando ou tentando convencê-los a não machucar o seu personagem. Mas, antes de prosseguir, é preciso falar sobre como o jogo trabalha para que, efetivamente, essas opções sejam significativas.

Em termos de sistemas, Undertale funciona como um RPG de turnos de 16-bits, mas, como vocês devem saber, jogos desse gênero sempre funcionam sob a premissa de que é precisa matar muitos monstros, porque isso é a condição para ganhar experiência e, como o sistema de batalhas é em turno, a não ser que o seu personagem esteja num nível gigantesco, é impossível vencer sem tomar nenhum golpe do adversário.

Ou seja, o gênero em que Undertale se baseia tem no combate algo absolutamente fundamental, porque ninguém poderia matar o último chefe de um Final Fantasy sem vencer alguns inimigos antes e ganhar experiência; se alguém tentasse fazer isso, seria imediatamente derrotado. Como, então, fazer um jogo em que se pudesse não matar ninguém e ainda assim, em pleno nível 1, chegar até o último chefe?

A solução do jogo foi transformar o combate em uma mistura de RPG com shoot’em up. Na prática, o jogo ainda funciona à base de turno, em que cada personagem tem a sua vez e escolhe uma ação, seja atacar, fugir, usar item, ou tentar falar algo. Entretanto, no momento em que o turno passa a ser do monstro, o protagonista é representado por um coração que se movimenta num pequeno quadrado e precisa evitar os objetos e projéteis que são lançados ali. Se ele conseguir evitar tudo, ele se livra de 100% do dano.

Graças a isso, se o jogador quiser, não é preciso derrotar ninguém em batalha, porque a experiência é opcional. Se ele for habilidoso nas opções de conversação e no desvio de projéteis, ele poderá ir do começo ao fim do jogo com nível 1. A única concessão que o jogo faz é dar dinheiro ao jogador quando ele convence um inimigo a se render, para que seja possível comprar itens para melhorar a resistência e recuperar a vida do protagonista, já que algumas batalhas no fim do jogo demandam muita habilidade e resistência. Com isso, Undertale remove a barreira técnica para a execução do seu conceito, mas resta ainda uma barreira muito importante, e muito subestimada por certos jogadores, que eu chamo de barreira ideológica.

Jogos eletrônicos existem há quase quarenta anos e, desde então, sempre foram baseados, em sua maioria, na ideia de confronto, de embate, o que frequentemente escalou para a ideia de violência. Por isso, a imensa maioria dos jogos hoje é baseada em algum tipo de combate, e isso molda a nossa percepção de forma bastante forte, o que faz com que a ideia de um jogo sem uma condição de vitória seja considerado um não jogo ou algo assim.

Nesse contexto, Undertale tem a difícil missão de mostrar como não é preciso haver combate para que um jogo seja divertido e recompensador e, no geral, ele é bem-sucedido, pelo menos na medida em que é possível convencer alguém investido no consumo de uma mídia baseada fortemente num mesmo aspecto. Seria o mesmo que convencer um expectador tradicional de novelas a acompanhar uma trama sem romance e sem mocinho e vilão. Ou seja, há limites na audiência para quem está disposto à mudança.

Considerando tudo isso, eu acho que Undertale se vale das melhores ferramentas possíveis para cumprir a sua missão, embora eu ainda melhoraria uma coisa ou outra, se pudesse. O grande trunfo de Undertale é se basear fortemente na série Mother, de que eu falei um pouco aqui no canal, e que é baseada num universo que, embora ainda tenha um combate relativamente arraigado, consegue desviar significativamente a atenção do jogador para os seus personagens.

O segredo da série Mother é fazer com que os personagens sejam estranhos e divertidos, como se todo mundo lá fosse um pouco louco, um pouco fora da medida, e isso cria um senso de humor muito próprio à série, e que Undertale claramente busca replicar. Os primeiros adversários que eu encontrei e suas ações divertidas me lembraram imediatamente de quando encontrei o primeiro hippie inimigo no primeiro Mother. É divertido, e traz um pouco o jogador para perto do inimigo, faz com que ele não o trate puramente como um adversário, mas como alguém com alguma personalidade.

Undertale busca isso com todos os personagens e, no geral, é bem-sucedido. Todos que habitam aquele mundo têm seus trejeitos, seus dramas e seus pontos-chave em termos de personalidade. Especialmente os personagens principais da história têm bastante tempo para construção de seus personagens, o que faz com que você se apegue a eles e relute muito em matá-los.

Acho que isso fica claro nos dois primeiros chefes do jogo, que criam esse sentimento por caminhos diferentes. O primeiro é um dos personagens mais gentis que já existiram no mundo dos jogos, alguém cujo carinho e atenção tocam o jogador de verdade, a ponto de você não querer magoar esse monstro. Graças a isso, quando acontece de ele estar no seu caminho, você se restringe e não quer partir direto para o ataque. Com isso, o jogador acaba percebendo que é possível receber muita satisfação ao terminar um combate e saber que aquele personagem querido sobreviveu.

Já o segundo chefe não é baseado nesse tipo de emoção, mais sim no humor. Ele é muito engraçado na sua falta de jeito e, por causa disso, o jogador nunca o leva a sério, e acaba achando que é até cruel atacar um personagem que provavelmente não tem aptidão para absolutamente nada mesmo. Com isso, mais uma vez o jogo desperta no jogador o impulso de evitar o confronto.

Com isso e outros inimigos no início do jogo, o jogador já está treinado na opção de não lutar e, assim, ele pode praticar esse pacifismo sem tanto estranhamento, inclusive contra inimigos que parecem muito mais ameaçadores. E, para quem acha que não atacar torna o jogo trivial, é preciso deixar claro que convencer um inimigo demanda algumas rodadas, o que, se você não tiver ótimos reflexos, vai ser uma situação bastante tensa.

Aliás, essa tensão é fundamental para fazer o jogador sentir o desespero que o protagonista deve sentir em certos momentos. Ser atacado e não poder revidar é difícil, especialmente quando não se pode fugir simplesmente. E, quando um inimigo simplesmente se recusa a conversar ou não te deixa poupá-lo de alguma outra forma, a angústia em busca de soluções é real, e faz o jogador olhar para o botão de ataque quase como um alcóolatra que tenta se libertar olha para uma garrafa de bebida depois de um dia difícil.

Graças a tudo isso, o mundo de Undertale é extremamente simpático e marcante, o que faz o jogador querer preservá-lo ao máximo e, ao mesmo tempo, ele não perde tanto assim assumindo uma postura pacifista, porque o jogo tem a sua diversão e recompensa de outras formas.

Mas, é claro, existe a opção de combate. E o jogador pode passar toda a sua experiência só matando todos que encontra naquele mundo, o que vai variar bastante a experiência e o próprio final do jogo. O interessante é que essa opção não foi feita para ser agradável ao jogador. Para ganhar nível e conseguir o final específico voltado a combate, o jogador precisa lidar com encontros aleatórios que vão ficando cada vez mais raros, o que faz o jogador perder muito tempo, e também com os chefes, que acabam alternando entre personagens muito queridos sendo trucidados sem merecer e outros personagens com padrões de ataque tão insanos que se torna frustrante continuar.

A isso se soma também o fato de que o sistema de combate é muito raso. Só existe um tipo de ataque possível, as customizações de itens são raríssimas e, no geral, ficar se expondo a combate o tempo todo trivializa o sistema que, numa experiência pacifista, é usado com uma parcimônia capaz de fazer cada variação de combate parecer muito mais nova e divertida. Esse aspecto geralmente é criticado por jogadores que ficaram desagradados com Undertale.

Eu não digo que esses jogadores estejam errados, mas é que a intenção de Undertale é justamente esta: fazer o combate ser desagradável, enquanto o diálogo é enriquecedor. Existe um universo de diferença entre matar um personagem assim que você o vê ou deixá-lo vivo, se tornar amigo dele e ouvir as suas piadas durante todo o resto da experiência. O mundo do jogo se torna totalmente outro.

Fazer uma das opções de jogabilidade ser rasa, entediante e incapaz de dar satisfação ao jogador é uma aposta arriscadíssima, mas isto é justamente uma das coisas mais interessantes em Undertale em relação à nossa indústria: ele não tem medo de se colocar politicamente, de dizer que um jogo incentivar combate em oposição a uma construção de personagem é algo eticamente irresponsável, porque é uma filosofia de guerra mais do que de paz, é algo pouco civilizado.

É claro que, tendo um ponto de vista político tão explícito em suas mecânicas, Undertale convida o jogador a concordar com ele ou não; é impossível passar indiferente à mensagem. É como uma evolução de algo já presente num outro excelente jogo indie, Papers, Please, que fazia o jogador se sentir mal com a satisfação de bloquear a entrada de pessoas no seu país, o que poderia ter várias repercussões negativas para essas pessoas. Mas, Papers, Please colocava essa questão mais ao jogador, enquanto absolvia o personagem, que estava preso a um sistema cruel.

Undertale quer que o jogador entre em seu mundo, encarne em seu personagem e seja amigo dos monstros, que sinta como é bom conhecer as pessoas, lidar com elas, aprender a achar aquilo que faz delas algo especial. No fundo, com o tempo certo, as palavras certas e uma intenção genuína, todo mundo pode estabelecer um diálogo.

Nessa visão, o combate é ruim porque combater, por si só, é ruim. A mensagem do jogo é claramente que, se você quer matar criaturas mesmo sem precisar, há algo errado com você. Mas, a existência da opção e o risco de ela ser vista como mecanicamente limitada é algo brilhante, porque jogos que buscam a criação e o diálogo nem sempre colocam o assassinato diretamente em suas mecânicas. Imagine, por exemplo, um The Sims em que um personagem pudesse pegar um bastão de beisebol e espancar outro sim até a morte, como se faz num GTA. Por algum motivo, todos em The Sims são pacifistas, com um outro xingamento ou estapeamento aqui e ali.


Undertale não tem medo de ser um jogo fortemente autoral e com uma mensagem muito forte. Concordando ou não com ele, é impossível para mim não respeitá-lo por isso e admirar que possa existir um jogo na indústria que claramente demonstra opiniões e as recria em termos de mecânicas. Vivemos num bom momento para jogar video game.

Batman: Arkham Knight - Adendo sobre o DLC GCPD Lockdown



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou fazer apenas um breve adendo sobre Batman: Arkham Knight, agora focando no mais novo DLC de história, chamado GCPD Lockdown. Ele se passa um pouco depois do final verdadeiro do jogo, e aquilo em que eu vou focar neste vídeo é justamente a relação dele com o final, então, é claro, este vídeo terá spoilers imensos sobre o final. Fique à vontade para fechar o vídeo se você quiser evitá-los. De qualquer forma, eu agradeço por você ter clicado no vídeo.

GCPD Lockdown é mais um dos DLCs curtos de história que a Rocksteady tem lançado para Arkham Knight. Isso quer dizer que, em vez de estar próximo do modelo narrativo do último DLC de história, que foi o voltado para a Batgirl, esse é focado apenas em contar uma curta história, sem muita profundidade. Ainda assim, esse curto episódio ainda foi capaz de atentar contra a história principal.

Mas, logo a gente chega isso. A proposta do DLC é contar a história da tentativa de fuga do Pinguim de dentro da delegacia de polícia de Gotham. Para isso, ele conta com a ajuda de uma série de capangas que invadem o prédio. Entretanto, o Asa Noturna descobre o plano deles e vai lá impedi-los.

Na prática, esse episódio é formado por apenas dois trechos de combates com vários inimigos, um segmento de predador e uma parte final de combate aberto novamente. Ou seja, é algo bem insipiente. Entretanto, eu acho que vale destacar o bom trabalho de construção do Asa Noturna, que é bem caracterizado como um garoto com grande senso de humor, e que fica tirando sarro de todos os inimigos, principalmente do Pinguim. É uma grande divergência do padrão silencioso do Batman, e que o DLC conseguiu realizar bem.

Em termos de gameplay, porém, ele não se diferencia muito do Batman, e só tem um tipo especial de golpe, que é bater com os bastões no chão para dar uma breve atordoada nos inimigos, mas não é nada de especial. Além disso, claro, ele é menos resistente.

Com tudo isso, então, o DLC acaba sendo criativo na elaboração do personagem, mas bastante tradicional quando o assunto é a jogabilidade mesmo. Outros DLCs, como o da Arlequina e da Batgirl, conseguiram entregar mais do que isso. Contudo, esse nem é o maior incômodo.

Para mim, o principal problema desse DLC é que ele aponta um buraco imenso no final do jogo principal, e que, na verdade, já tinha sido apontado por algumas pessoas que discutiram o final de Arkham Knight. Como quem fez 100% do jogo sabe, para conseguir o final verdadeiro do jogo, o jogador precisa prender todos os vilões que perambulam por Gotham, o que significa finalizar todas as side quests do jogo.

Só então o Bruce Wayne se sentiria livre para sumir do mapa. Entretanto, quem conhece qualquer mídia relacionada ao Batman sabe que os vilões são particularmente habilidosos quando o assunto é escapar. Aliás, nenhum vilão teria o espaço que tem no cânone do Batman se algum deles ficasse na cadeia depois de preso. Todos vivem escapando.

Sendo assim, algumas pessoas se perguntaram: se o Batman sabe que toda hora os criminosos vão escapar, como ele pode abandonar seu papel? Ele sabe que a luta dele é infinita, já que ele nunca mata, e nenhum dos vilões é controlável de outra forma. Só existem duas respostas para isso: ou ele não liga mais, ou ele confia nos seus parceiros. Seja lá qual for a resposta, ela contradiz imediatamente a necessidade de prender absolutamente todos para conseguir o final, porque fazer isso não resolver nada e, portanto, não traz o sentimento de encerramento que o final busca.

A prova disso é o DLC do Asa Noturna, que se passa depois do fim do jogo, e mostra como o Pinguim teria escapado tranquilamente, caso o Asa Noturna, que sequer protege Gotham, não tivesse aparecido lá. O ciclo de tentativas de fuga e prisões não se rompe mesmo depois do fim da história.

Alguém poderia dizer que o Batman confiava nos seus parceiros e, por isso, ele se sentiu confiante para sumir. Entretanto, isso entra em conflito com a falta de confiança que o Batman deposita neles durante toda a história do jogo principal, além de que, caso essa confiança realmente existisse, ela seria equivocada, já que o DLC da Arlequina mostra como ela pôde vencer o Asa Noturna e um monte de policiais facilmente, e ainda ajudar a Hera Venenosa a fugir.


Graças a isso tudo, o DLC do Asa Noturna acaba deixando aparentes vários buracos do final do jogo principal, e mostra como alguns DLCs muitas vezes não são pensados para acrescentar algo à história, mas são feitos apenas para inchar o jogo de conteúdo que sequer respeita o material original. Esse DLC é um grande passo para trás se a gente compará-lo aos bons momentos do DLC da Batgirl, mesmo que a caracterização do Asa Noturna tenha sido boa.

Teoria: Dificuldades de discutir jogos como arte



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou fazer um vídeo de teoria que acumula uma série de reflexões que eu venho desenvolvendo há muito tempo, e que talvez não seja diretamente sobre jogos em sua estrutura, e sim sobre a comunidade que discute e reflete sobre jogos. Enfim, depois de muito pensar sobre isso, e até discutir comigo mesmo sobre se valia a pena ou não fazer um vídeo sobre isso um dia, uma discussão recente que está rondando a internet nesta semana acabou me levando a tratar desse assunto.

Na semana passada, o site Polygon publicou um trecho do primeiro capítulo do livro WTF is wrong with video games, do jornalista e crítico de jogos Phil Owen, e que basicamente afirmava que jogos têm arte, mas não são arte, porque a lógica dos video games atrapalha a coerência dos jogos e minimiza o controle que o artista pode ter sobre a experiência. Assim, em termos visuais e de história, um jogo pode ser arte, mas a jogabilidade sempre desestabilizaria a estrutura, o que arruinaria o jogo como arte.

Enfim, esse texto gerou muita controvérsia, com resposta diversas e pessoas argumentando que o crítico não entendia os jogos, que colocava regras excessivamente redutoras, que não importava discutir se jogos são arte ou não, etc. Se você tiver algum interesse em conhecer o texto, dê uma olhada na descrição deste vídeo e o link para ele vai estar lá. O único problema é que ele está em inglês.

De qualquer forma, este vídeo não é sobre esse texto, mas sobre um fenômeno muito maior que ele representa, e que eu vejo se repetindo na comunidade desde que eu passei a acompanhá-la em detalhe. E eu resolvi chamar esse fenômeno de “dificuldades em discutir jogos como arte”, que é o título deste vídeo, como você já percebeu.

Antes de começar a lidar com esse tema, eu queria avisar que eu vou fazer uma análise rápida da cobertura de jogos, tentando não mencionar indivíduos, e sim tendências que eu considero importantes. Eu confio nas pessoas que regularmente frequentam este canal, mas, se você eventualmente caiu aqui e não sabe o que esperar, saiba que eu não estou tentando ofender o seu gosto ou a sua pessoa; tudo isso é só uma reflexão, e que eu vou levar do início ao fim de forma civilizada.

Um último aviso: eu já falei sobre o assunto sobre jogos serem obras de arte aqui mesmo neste canal, e você pode ver a minha opinião em detalhe no vídeo que eu vou indicar na descrição. Neste vídeo, eu não vou entrar nesse mérito, mas eu queria já deixar minha posição clara para ter todos os pressupostos já explícitos.

A primeira coisa que a gente precisa tirar do caminho nessa discussão é o mérito de discutir se jogos são arte ou não. Muita gente coloca essa discussão de lado, afirmando que isso só advém de um desejo de validar os jogos para um público externo, e que o conceito de arte é amplo demais para ganharmos qualquer coisa com esse debate.

Eu não compartilho dessa visão. Na verdade, eu acho que essa discussão tem uma finalidade dentro da comunidade, porque, na verdade, uma parcela imensa da população que joga não leva os jogos a sério, não os trata com a dignidade que eles merecem. Eu não vou entrar no mérito de por que isso acontece, mas eu acredito que é um fato.

Um exemplo que eu nunca deixo de lembrar é o do Podcast do Uol Jogos, chamado Playground, em que eles frequentemente se referem a games como joguinhos, e isso vem de pessoas que efetivamente trabalham com jogos. Eu não consigo imaginar uma pessoa que trabalha com cinema chamar qualquer obra de “filminho”, ou algum fã de romances chamar um deles de livrinho.

Eu não acho que nós precisemos provar nada a ninguém de fora da comunidade, mas provavelmente muito do preconceito que nós sofremos ao longo da história permeou a visão de muita gente e leva a essa visão de que jogos são uma coisa menor, menos digna, e eu acho que um primeiro passo para mudar isso seria uma discussão sobre como jogos são arte. Não para ganhar um status externo, mas para que os próprios fãs passem a respeitar mais aquilo que eles consomem.

É claro que, nesse processo, as grandes forças motoras são as pessoas responsáveis pela cobertura de jogos, porque a exposição dessas pessoas é que dita um pouco os termos com que os debates se dão. Uma das grandes teorias sobre a comunicação humana diz que nós nos expressamos levando em consideração a forma como outros se expressaram antes de nós; a forma como nós vemos as pessoas discutirem um assunto molda o nosso raciocínio na hora de pensar sobre esse assunto, e é por isso que a gente constrói formatos de discussão.

Quando eu fui começar este canal, eu estudei um pouco como o Zangado fazia os vídeos dele, e pode ter certeza de que ele começou estudando outras pessoas, pegou emprestado os critérios de análise que ele usa, etc. É um processo tradicional da comunicação humana, e vale para tudo, na verdade, inclusive para o desenvolvimento de jogos, e não só para o comentário sobre eles.

Sendo assim, o papel de quem discute jogos como arte hoje em dia é essencial para introduzir uma discussão riquíssima e que tem um papel social importantíssimo na comunidade. Entretanto, muitas das pessoas que se dedicam a isso se mostram completamente despreparadas, cometem uma infinidade de erros conceituais e, ao final, fazem a questão toda parecer sem mérito algum.

Tomando o texto que apareceu no Polygon como exemplo, o autor se perde completamente na ideia de que a arte tem que ser absolutamente planejada, e que fazer com que tudo importe significa eliminar uma série de práticas que são voltadas para despertar certos sentimentos no jogador. Para ele, aquilo que está relacionado estritamente à jogabilidade não tem uma lógica adequada, e não casa corretamente com a história que se está tentando contar.

O que ele falha totalmente em perceber é que, embora uma barreira de inimigos ou de infectados, em The last of us, tenha uma função de envolver o jogador mecanicamente, e aja, em termos estritamente narrativos, como um obstáculo para o prosseguimento da história, essa barreira também funciona como uma forma de introduzir o mundo ao jogador, de fazê-lo sentir a adrenalina e o terror de ser perseguido e de estar em número menor do que os inimigos, e com meios escassos para lidar com eles.

O centro da mecânica é o sentimento que ela imprime, exatamente como a história; é isso que faz delas algo unificado. Quando o jogador precisa levar uma escada até a Ellie ou ajudá-la a atravessar a água, ele está passando por um momento banal da história, mas, em termos de mecânica, o jogo está incutindo o sentimento de vínculo entre o jogador e ela. E isso porque o jogo não permite que você a deixe para trás.

Durante o texto, o autor diz que um filme – e, por extensão, uma obra de arte – quer comunicar algo a quem a consome. Entretanto, isso é incorreto, ou correto apenas com uma importantíssima ressalva. Uma obra de arte não quer simplesmente comunicar; aliás, se a gente pensasse assim, a arte praticamente não existiria, porque, na maioria dos casos, escrever um tratado sociológico ou filosófico seria muito mais claro e, por consequência, efetivo na tarefa de comunicar.

Uma obra de arte consegue despertar um efeito que vai além da mensagem em si; ele é mais relacionado a um sentimento que é despertado em quem consome. Por isso, toda obra de arte fornece uma experiência estética, o que é algo que pode conter uma mensagem, mas não se limita a ela. Não à toa, algumas artes sequer têm uma estrutura narrativa ou verbal, mas ainda conseguem despertar efeito, sem necessariamente se limitarem a uma mensagem.

Num jogo como The last of us, a história e a jogabilidade estão trabalhando juntas, embora, em alguns momentos, elas pareçam estar no caminho uma da outra. Tudo trabalha para criar uma certa atmosfera, uma certo sentimento, uma certa experiência.

Ou seja, uma noção falha do que seria uma obra de arte coloca todo o texto do autor a perder. E eu só citei um dos problemas relacionados a essa definição dele, eu poderia ir bem mais longe, falando de como a verossimilhança parece tão afetada em jogos como nas antigas tragédias gregas, que se obrigavam a certas limitações e, assim, fugiam do conceito de naturalidade que a gente prega hoje, e mesmo assim mantêm seu status de obras de arte.

Eu também poderia falar de obras de arte que contam explicitamente com a liberdade do consumidor, como livros que permitem que o leitor siga uma ordem totalmente diferente de capítulos do que a estabelecida tradicionalmente, ou mesmo peças de teatro que chamam o espectador para participarem, o que efetivamente garante que nenhuma peça será igual a outra. Isso deixa claro que a ideia de obra de arte fortemente controlada sequer existe como absoluto hoje.

Enfim, tudo isso demonstra um fortíssimo desconhecimento das produções contemporâneas de arte, e que destrói qualquer possibilidade de o texto ser levado a sério como um comentário sobre arte, especialmente quando ele quer imprimir a ideia de que algo é ou não arte sem nem fazer ideia do que seja arte em primeiro lugar.

O mesmo vale para um argumento que eu ouvi na época em que fiz meu outro vídeo sobre o assunto: que jogos não poderiam ser obras de arte porque estavam inseridos no mercado e visavam ao lucro. Na verdade, inúmeros artistas reconhecidos produziram visando ao lucro, e isso nunca lhes tirou o status de artista.

Enfim, a tendência que me parece clara é que uma grande parcela de textos e vídeos discutindo jogos como formas de arte normalmente não está preparada para essa discussão, e geralmente acaba desembocando em problemas conceituais que acabam não dizendo quase nada de relevante sobre jogos ou sobre arte em geral.

É o problema contrário do texto do crítico de cinema Roger Ebbert, que escreve um texto inteiro sobre como três jogos não são obras de arte baseado apenas num vídeo deles, mas sem jogar um minuto sequer. Ele pode ter a teoria estética, mas não tem o contato verdadeiro com a obra.

Discutir obras de arte é uma prática com bibliografia de quase 2500 anos, o que significa que há muito a ser dito, e também muitas armadilhas para cair. Por isso, a primeira dificuldade para estabelecer essa crítica de arte voltada para jogos é justamente a quantidade de impropriedades ditas pelas pessoas que tentam estabelecer esse debate. É claro que há pessoas que sabem o suficiente para evitar incorrer nesses erros, e eu espero que elas ganhem cada vez mais voz, mas não há garantia nenhuma disso.

O fato é que esse ponto de vista de arte é essencialmente um nicho na nossa comunidade, e isso em grande parte porque ele é um tanto incompatível com o discurso predominante da cobertura de jogos como nós a conhecemos hoje, que é o que eu chamo de “guia de compras”.

Um guia de compras tradicional nada mais é do que um meio de comunicação que dá sugestões sobre o que é bom comprar ou não. Ou seja, ele vê um jogo, antes de tudo, como um produto, que é preciso avaliar em oposição a outros produtos, buscando benefícios, problemas de desempenho, inovações, etc.

Eu posso estar errado ao afirmar isso, mas eu acredito que a prevalência dessa forma de cobertura de jogos vem do período após a grande crise da indústria, na época do Atari. Um grande problema da indústria da época é que jogos de qualidade duvidosa estavam sendo lançados e jogadores insatisfeitos acabaram deixando de comprar, o que levou a um problema financeiro grave.

A solução para isso foi o nascimento de veículos que analisavam os jogos e indicavam os melhores, além de uma empresa como a Nintendo criar um selo de qualidade para garantir aos compradores que o jogo de fato funcionava. Some a isso também o fato de que foi nessa época em especial que o marketing das empresas de jogos decidiu que games deveriam ser voltados para crianças e você tem uma população com menos dinheiro, que precisa analisar antes de fazer qualquer compra.

Graças a essa história, a cobertura de jogos cresceu em volta de análises que levavam extremamente em conta alguns critérios que são completamente alheios a um ponto de vista artístico sobre jogos – o que, aliás, faz bastante sentido, já que a ideia de que jogos podem ser arte é posterior a esse período.

Essa origem criou esse ponto de vista tão específico com que as nossas análises são escritas ou gravadas. Se um dia esse modelo fosse transplantado para outras formas de arte, o choque seria imenso, porque ninguém prefere ler um livro só porque ele é mais grosso do que outro, ou comprar um CD em vez de outro só porque um tem mais canções. Não é nem um pouco comum ler um comentário sobre um filme, falando para um leitor esperar uma promoção para comprar o DVD, ou coisa parecida. Entretanto, é o que se faz com jogos.

Em última instância, isso criou uma dinâmica engraçada, em que jogos são muito mais vistos como produtos do que como obras de arte ou mesmo entretenimento. Um dos vídeos de que eu mais gosto aqui no Youtube mostra uma propaganda de jogo e uma de carro e é assustador como elas são parecidas. Quando acontece de um jogo ser discutido dentro de uma franquia, eu sinto um estranhamento ao ver um jogo ser analisado, com uma lista de novas features, como uma nova versão de um iPhone, por exemplo.

O resultado disso é que a imensa maioria das discussões sobre jogos são limitadas aos seguintes temas: análise de performance, DLC, microtransações, pré-venda, duração do jogo, existência ou não de modo single player ou multiplayer, relação preço x conteúdo, etc.

Fala-se muito mais sobre se os gráficos de um jogo são competitivos em relação a jogos parecidos do que se a escolha estética foi adequada; uma história ser curta ou não é muito mais assunto do que se ela é de fato boa. Graças a essa mentalidade, são raros os espaços para discutir jogos em profundidade, até porque isso demanda muito mais tempo e reflexão do que um youtuber ou um redator qualquer tem para escrever antes do lançamento do jogo.

Não é à toa que alguns dos melhores e mais inteligentes textos e vídeos que a cobertura de jogos têm a oferecer são voltados para jogos antigos: é porque houve tempo para se familiarizar com o jogo, pensar sobre ele, ver como ele se sustenta. Hoje em dia ninguém fala sobre a relação custo x benefício de Chrono Trigger, ou sobre se Castlevania: Symphony of the Night é datado por ser 2D. As pessoas hoje podem simplesmente falar sobre esses jogos, e é isso que torna a conversa mais rica, porque nós podemos falar da arte.

É claro que eu não estou querendo dizer que falar dos jogos como produto é algo errado. Na verdade, jogos são arte e são produtos, e devem ser tratados das duas formas. Aliás, é justamente isso que nós, como jogadores, esperamos: que jogos sejam tratados com cuidado e esmero pelos desenvolvedores, e não como um produto qualquer, voltado para tirar o máximo de lucro. Nós esperamos um balanceamento entre as duas coisas, e é muito engraçado que a própria mídia que cobre os jogos não faça o mesmo.

Talvez não haja realmente interesse numa crítica sob o ponto de vista da arte, e eu esteja apenas dando uma importância demasiada à forma como a nossa crítica é feita hoje. Mas, para mim, como eu disse, quando o público só conhece uma forma de discutir jogos, é só assim que ele discutirá. A partir de um momento muito específico, criou-se uma crítica de jogos com finalidades bem claras. Esse momento passou, mas ela permaneceu, e acabou determinando todos os jogadores e comentadores que vieram depois.

E, quando um jogador eventualmente alcança um tipo diferente de discurso, muito do que ele encontra são opiniões não embasadas, que acabam deturpando o que é uma discussão verdadeira sobre arte. Essas são duas dificuldades que trabalham juntas e sabotam as oportunidades de discussão de arte sobre jogos e é triste vê-las permanecer por tanto tempo. Eu acompanho jogos em detalhe há uns 3 anos e eu vejo essas tendências se repetindo constantemente.

Bioshock Infinite: Burial at Sea - Pensando sobre o jogo



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje é dia de encerrar um ciclo muito importante para mim. Para quem não conhece muito a história desse canal, eu sou um fã quase incondicional do primeiro Bioshock. Para mim, ele é um jogo excelente, e com uma profundidade na concepção do seu mundo e dos seus personagens que quase nenhum jogo até hoje conseguiu fazer. Por conta disso, ele é um dos meus jogos preferidos, e provavelmente é uma das melhores coisas que foram produzidas na geração passada.

Graças a esse carinho que eu tenho pelo jogo, eu analisei no canal todos os jogos da franquia, e eu fiquei feliz com a continuação modesta de Bioshock 2, que fez todo o possível para retomar o mundo de Rapture e ainda adicionar elementos que pareciam pertencer a ele.

Entretanto, quando Bioshock Infinite foi lançado, eu fiquei extremamente decepcionado, porque o jogo tem problemas sérios no seu enredo e na construção do seu mundo, de forma que a coisa mais legal da série para mim acabou indo por água abaixo. Muita gente discordou de mim na época, mas, conforme o tempo vem passando, eu tenho visto mais e mais análises que veem problemas no jogo, tanto os que eu já tinha apontado, como outros que passaram despercebidos por mim.

Hoje em dia, a desenvolvedora do primeiro Bioshock e de Infinite, a Irrational Games, nem existe mais, mas, antes de ser fechada, ela lançou dois DLCs de história que, de alguma forma, procuram amarrar a trama dos dois jogos que ela desenvolveu. Esses DLCs se chamam Burial at Sea, ou enterro no mar, e é deles que eu vou falar neste vídeo.

Antes de começar propriamente, eu quero avisar que haverá uma enxurrada de spoilers no vídeo, porque os DLCs já são meio antigos, o último saiu há um ano e meio, e, como eles são focados na história, é impossível tratar deles sem comentar a trama. O mesmo vale para as histórias de Bioshock e Bioshock Infinite: eu vou mencionar spoilers conforme for necessário. Então, se você não quiser saber nada sobre a história desses jogos, fique à vontade para fechar o vídeo. Dito isso, vamos lá.

Burial at Sea se passa em Rapture, a cidade que é palco dos dois primeiros Bioshock. Lá existe também um Booker DeWitt, o protagonista de Bioshock Infinite, e ele trabalha como detetive particular. Num certo dia, aparece ninguém menos do que Elizabeth, perfeitamente adequada ao visual dos anos 50 de Rapture, e não como a garota do começo do século XX de Columbia, que nós conhecemos em Infinite.

A Elizabeth contrata os serviços do Booker para encontrar uma menina chamada Sally, que teria desaparecido e sido dada como morta. Ela é muito importante para o Booker e, por isso, ele aceita a missão, apesar de ter certa desconfiança da Elizabeth e enxergar os perigos da jornada.

O primeiro episódio de Burial at Sea tem um clima fortemente inspirado pelo cinema noir, que predominou na metade do século XX e que deixou marcas até hoje, como você vê em diversas obras da nossa cultura. No geral, o DLC cumpre uma série de clichês do gênero, como focar numa investigação particular, ter um detetive durão, embora seja meio desprezado pela sociedade, contar com uma missão dada por uma mulher misteriosa e inteligente, etc.

É uma escolha estética bem interessante, que casa com o estilo de Rapture e ainda oferece uma coisa diferente, pois, se, por um lado, a cidade ainda está funcionando normalmente, por outro, o clima sombrio do cinema noir confere um certo pessimismo visual ao que está sendo retratado lá.

Para um fã do primeiro Bioshock, o maior charme desse DLC é visitar Rapture sob um outro prisma, agora no seu ápice, em vez da Rapture decadente em que a ação do primeiro jogo se passa. Eu particularmente não me interesso muito por isso, porque eu acho que tudo que precisava aparecer sobre os personagens clássicos de Bioshock já estava presente no jogo, mas eu entendo esse retorno e acho que não se perde nada com isso.

O que realmente chama a atenção nesse DLC é que a dinâmica entre Booker e Elizabeth é tão boa quanto era em Bioshock Infinite e que, no fundo, parece que essa dinâmica era tudo que a Irrational Games soube entregar corretamente no jogo e nessa DLC. Novamente, a história dos dois coloca Rapture como um pano de fundo simples em vez de explorar mais a cidade e, no geral, os personagens conhecidos que aparecem soam mais como fan service do que como uma oportunidade nova de explorá-los.

Em grande medida, Burial at Sea soa como uma revisita a Rapture sob a ótica de Bioshock Infinite – o que faz sentido, já que a história é um DLC de Infinite. Entretanto, o resultado disso é uma dissociação forte entre o que a equipe da Irrational era em 2007 e o que ela era em 2013. Em Bioshock, o protagonista não era o Jack, que o jogador controlava; o protagonista era a cidade de Rapture, sua dinâmica única, seus personagens fortes e suas mensagens críticas sobre ideologia.

É claro que o Jack tem uma função e uma importância na história, mas só como um capítulo final de um romance, as cenas finais de um filme épico, e o que torna esse filme épico é justamente toda a história e os personagens que apareceram nele, e não só as cenas finais. Bioshock é um dos jogos em que o contexto importa mais.

Em Burial at Sea, esse contexto praticamente inexiste. Como aconteceu com Columbia na segunda metade de Infinite, Rapture vira um simples cenário – e com isso o poder da mensagem se esvai e os grandes personagens mal são tocados, e o foco fica inteiro na dinâmica dos protagonistas, que, como eu disse, não é ruim, mas parece que o cenário fica intercambiável.

E esse aspecto intercambiável se mostra quando alguns elementos de Infinite aparecem no DLC, mesmo que nunca tenham aparecido em Rapture. O Booker tem um escudo e um gancho, e os plasmids são os mesmos de Columbia. Além disso, existe uma batalha contra um Big Daddy no final do primeiro episódio, e ela é bem mais fácil do que as tradicionais batalhas do primeiro Bioshock.

É claro que essas reclamações minhas podem ser desconsideradas se a gente lembrar da ideia de “constantes e variáveis”, que marcava Infinite. Ou seja, essas diferenças em relação ao primeiro Bioshock se explicariam porque a dimensão em que se passa o DLC não é a mesma da dimensão em que se passa o primeiro jogo. Mas, sendo assim, eu tenho grande dificuldade em entender qual é o valor de voltar para Rapture se não vão ser respeitadas as regras daquele mundo. No final, só fica maior aquele sentimento de que os cenários são intercambiáveis.

Sendo assim, Burial at Sea não respeita nem um pouco aquilo que fez de Bioshock uma experiência realmente memorável, sendo muito mais próximo do estilo que a segunda metade de Infinite adotou, tanto em termos de história quanto de jogabilidade. Por isso, eu vou olhar um pouco mais sob esse ponto de vista.

A dinâmica entre Elizabeth e Booker continua muito boa, funcionando tanto nos diálogos quanto na jogabilidade, com a possibilidade de ela jogar itens de recuperação e munição para o Booker, além de um trecho em que ela ajuda o Booker a se infiltrar em certas lojas. Existe uma diferença na relação dos dois quando a gente compara com a história do jogo principal, com a Elizabeth sendo um pouco menos amigável com o Booker no DLC.

E essa diferença é devidamente explicada no final do primeiro episódio. Na verdade, toda a história de buscar a menina Sally foi uma armadilha planejada pela Elizabeth para matar o Booker, ou, na verdade, Comstock, que, naquela realidade, tinha fugido de Columbia para esquecer o fato de que tinha matado a Elizabeth bebê.

E esse final é bem interessante, e será retomado no episódio 2, de que eu já falo: a questão é que isso muda muito a visão da Elizabeth como personagem. Durante toda a história principal de Bioshock Infinite, ela é retratada como uma moça inocente, que lentamente vai ganhando maturidade, e que, apesar de cometer assassinatos na trama, nunca perde aquela aura de justiça, de quem age com violência para deter um mal maior.

A Elizabeth de Burial at Sea é completamente distinta. Ela elabora um intricado plano apenas para se vingar do Comstock, que provavelmente já tinha sofrido muito, a ponto de fugir da sua cidade dos sonhos e se abrigar em outra dimensão apenas para esquecer. Mas, não é só isso: ela matou o homem que só queria salvar uma menina indefesa.

Essa é uma Elizabeth vingadora, que quer ver sangue, e que não se importa com as consequências. Ou pelo menos, é o que parecia. De qualquer forma, é um novo caminho para a personagem mais carismática do jogo, o que é algo muito arriscado e interessante para acontecer na série. Graças a isso, a melhor parte do jogo e do DLC, que são os dois protagonistas, acaba se tornando ainda melhor.

Mas, essa aparente de mudança da Elizabeth estará no centro do segundo episódio de Burial at Sea. Aliás, na verdade, esse episódio é uma tentativa de consertar uma infinidade de coisas que a equipe sentiu que precisavam ser consertadas, e isso com razão ou não. Por causa desse impulso de alterar e consertar, esse segundo DLC é sempre surpreendente, para o bem e para o mal.

A primeira coisa que o DLC altera (e que, para mim, é um crime) é o final do primeiro Bioshock. Logo no início, o jogo faz uma recapitulação da história do primeiro jogo e assume como canônico um dos dois finais do jogo. Isso destruiu todo o senso de escolha que permeava o primeiro Bioshock.

O senso de escolha de Bioshock já foi muito criticado, geralmente porque o jogo supostamente deixa óbvia qual é a escolha correta a tomar, mas o fato é que eu já vi gente assumindo como óbvias as duas escolhas opostas do jogo, como sendo algo que o jogo guia o jogador a fazer. Sendo assim, para mim, apesar de um tanto simplificado, o sistema de escolha funcionava e fornecia finais que faziam sentido com a ideologia adotada pelo jogador. Não só isso: um dos finais é muito emocionante, e parte dessa emoção vem do fato de que foi o jogador quem o construiu.

Burial at Sea abole o poder de escolha do jogador como se nunca tivesse existido, o que significa, em grande medida, alterar significativamente a estrutura de Bioshock, e não para melhor. Mas isso é só uma primeira mudança.

O episódio 2 começa com a Elizabeth acordando em Rapture ao lado do corpo do Booker, e vendo a Sally sendo sequestrada pelo grupo do Atlas, que é o grande vilão do primeiro Bioshock. Para conseguir salvar a menina, ela faz um acordo: ela se encarregaria de levar o exército de Atlas de volta a Rapture, e ele soltaria a garota. Ele aceita, já que não tem nada a perder no processo.

A mudança que se passou é que a Elizabeth não aguentou viver com a culpa de ter deixado a Sally indefesa, após matar o Booker que tentava salvá-la. E ela não salvou a Sally porque morreu antes de conseguir escapar de um Big Daddy. Essa é a parte mais obscura da história, mas me parece que outra versão da Elizabeth, de outra realidade, recebeu as memórias dela e decidiu salvá-la. Mas, como uma Elizabeth já tinha morrido naquela dimensão, o preço a pagar para voltar seria perder todos os poderes especiais dela. Mesmo assim, ela aceita.

Isso marca um retorno interessante à essência antiga da personagem, o que é tão rico quanto ter se desviado dela. Como ela é uma garota que viveu isolada do mundo por tanto tempo, a Elizabeth tem certa dificuldade em entender as nuances do convívio humano. A lição que ela aprendeu ali foi que a vingança sempre gera outras vítimas, que estão envolvidas apenas indiretamente, mas que são afetadas. E, por isso, ela precisa se redimir.

Entretanto, ela não é uma grande combatente, como o Booker, então todas as mecânicas do DLC serão alteradas para dar destaque ao stealth. Isso não é completamente estranho à franquia, já que o primeiro Bioshock permitia certos approachs voltados a stealth, com invisibilidade, plasmids que voltavam um inimigo contra o outro, etc. Em Burial at Sea 2, o jogo se concentra nesse aspecto, e os resultados são bem positivos, pelo menos até certo ponto.

Quando se fala em stealth em primeira pessoa com poderes, é difícil não pensar, hoje em dia, em Dishonored, que saiu um ano e meio antes de Burial at Sea e executa stealth de uma forma muito melhor. Mas, independente disso, o DLC ainda funciona bem, os inimigos são poucos e permitem que o jogador planeje bem suas ações, e as ferramentas são variadas o suficiente para que a experiência seja satisfatória. Você pode usar plasmids como armadilhas, usar canos de ventilação para se movimentar, usar dardos tranquilizantes para abater inimigos ou dardos barulhentos para distraí-los, etc.

Na verdade, esse stealth foi bom o bastante para eu achar que Infinite poderia ser inteiramente voltado a stealth e ser um jogo muito bom, com jogabilidade superior ao que se encontra no jogo principal. Seria algo como um The last of us em primeira pessoa.

Durante esse DLC, a Elizabeth precisa interagir com uma série de personagens clássicos de Bioshock, e também reencontra algumas figuras conhecidas de Infinite e, graças a essa interação, há uma tentativa de ligar os dois jogos de uma forma mais clara. Graças a uma fenda usada pela Elizabeth, os cientistas de Rapture e Columbia se comunicam e por isso a questão de como plasmids aparecem em Infinite estaria explicada.

Mas, a principal mudança no universo de Columbia acontece em relação a um assunto que eu critiquei bastante no meu vídeo sobre Infinite e está relacionada à líder dos revoltosos, a Daisy. No jogo principal, ela lidera o grupo de negros de Columbia numa batalha pelo fim da opressão que a cidade impunha a eles, entretanto, sem nenhuma explicação, ela resolve tentar matar uma criança branca para que nenhum branco restasse na cidade. Para salvar a criança, a Elizabeth a mata.

Isso não era nem um pouco necessário na história do jogo e só servia para dar uma estranha e reacionária visão de que, num conflito armado, todos os lados são iguais, quando há muitas nuances a serem consideradas. O fato é que o jogo demonizava os revoltosos com as mesmas cores que demonizava os opressores. Isso era um problema sério da ideologia de Infinite.

Em Burial at Sea, entretanto, uma cena nova aparece, em que os irmãos Lutece, que têm conhecimento de várias realidade e tempos, afirmam à Daisy, que, se ela ameaçar a criança e for morta pela Elizabeth, a revolução terá sucesso. Por causa disso, ela aceita fingir que mataria a criança. Tudo não passa de uma encenação organizada pelos Lutece para que a Elizabeth amadurecesse.

É muito difícil entrar no mérito do que motivou essa mudança tão radical na trama. Pode ser uma autocrítica do roteirista, pode ser por causa das poucas críticas que levantaram esse problema, ou pode até ser porque estava tudo planejado desde o início. Eu tenho a minha opinião e eu não acho que uma virada dessa foi planejada na época do lançamento do jogo, mas isso é especulação e permanecerá como tal até o dia em que o Ken Levine vier a público e disser a verdade.

O que realmente importa é que, em grande medida, isso conserta o problema ideológico de Infinite, e o torna um jogo melhor por causa disso. Se Burial at Sea não atentasse tanto contra a estrutura do primeiro Bioshock, seria ótimo tê-lo como um epílogo a Infinite, pois há realmente uma preocupação em evoluir os personagens do jogo.

E, além de redimir um dos personagens mais importantes do jogo, essa cena com a Daisy também serve como prelúdio para o que acontecerá no final de Burial at Sea. Durante todo o episódio 2, a Elizabeth não consegue entender sua decisão de voltar e perder os poderes, já que ela provavelmente nunca sairia de Rapture sem eles. Ela não sabe o que ela pôde ver no futuro e que a fez tomar essa decisão.

Ao final do jogo, fica claro que ela viu que, apesar do Atlas ser um vigarista e traí-la, como a Elizabeth sabia que aconteceria, nada importava, porque toda a ação do episódio 2 encaminha a trama do primeiro Bioshock, que, em última instância, termina com o Atlas morto e, segundo a nova visão que o DLC propõe, com a menina Sally sendo resgatada e criada pelo Jack.

Graças a isso, o ciclo da Elizabeth também se completa, com ela morrendo em Rapture nas mãos do Atlas, mas tendo que lutar para sobreviver e superar as adversidades, não para sair viva de lá, mas para ver seu único erro consertado, que foi ter impedido o Booker de salvar a Sally.

Esse final parece o maior esforço possível da parte do Ken Levine para encerrar todo o ciclo de Bioshock, sem deixar margens de reaproveitamento para que outro estúdio retome e mude a sua visão daqueles universos. A história da Elizabeth foi retratada de uma ponta à outra, e Rapture foi mostrada do auge ao fim, especialmente se a gente considera também Bioshock 2.

O que importa, entretanto, é que esse final deixa bem claras as diferenças entre Bioshock e Infinite, que ficam ainda mais evidentes pelo fato de que Burial at Sea se passa em Rapture: o DLC não busca uma conclusão para Columbia ou para Rapture, e também não busca discutir múltiplas dimensões; ele buscar contar a história de uma personagem, a Elizabeth. Ele se debruça em contar como ela seguiu sua vida após a perda do Booker e como ela se resolveu enquanto indivíduo.

Graças a isso, resolve-se aquela crise de identidade que eu mencionei na minha análise de Infinite, porque o jogo não sabia se queria tratar da cidade ou da existência de múltiplas dimensões. Na verdade, o que une o jogo todo, e o DLC também, é a história da Elizabeth, e o resto é pano de fundo; tudo só ganha destaque na medida em que serve para a personagem dela se desenvolver.

E essa é a maior diferença entre Infinite e Bioshock: Bioshock é um jogo sobre ideias e práticas sociais, é um jogo sobre como se relacionar com o outro, sobre como enxergar o mundo e as suas prioridades pessoais; Infinite é sobre uma personagem que tem uma personalidade instigante e uma vida memorável.

Vendo esses dois jogos dessa forma, é incrivelmente curioso como eles fazem parte de uma mesma série e, pensando bem, talvez fosse melhor que eles não fizessem, porque, em grande medida, a retomada de elementos de Bioshock soma como um peso à história que Infinite quer contar, e aí aparecem as incongruências de que eu falei. E, para consertar e finalizar a história da Elizabeth, a Irrational distorce a estrutura de Bioshock.

Se tem uma lição que pode ser tirada vendo toda a trajetória da série Bioshock é que não é necessário que tudo seja uma franquia, e que essa pressão da nossa indústria gera produtos desconjuntados e problemáticos, como é Bioshock Infinite.