segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Undertale - Pensando sobre o jogo



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Undertale, jogo desenvolvido por Toby Fox graças a uma campanha de Kickstarter bem-sucedida e lançado para PC em 2015. Ele é um jogo que tomou a comunidade de assalto, e fez muita gente se apaixonar, e isso é porque ele é um caso muito único do momento que nós vivemos na indústria.

No mundo de Undertale, há humanos e monstros, mas, por conta de uma guerra, os humanos baniram os monstros para o subterrâneo e os prenderam com uma barreira. A história do jogo acompanha um humano que cai acidentalmente num buraco e acaba no subterrâneo, onde ele encontra vários monstros e têm a oportunidade de decidir como se relacionar com eles.

O grande elemento da jogabilidade de Undertale que as pessoas costumam mencionar é justamente essa escolha de como lidar com os monstros: você pode atacar e matá-los ou simplesmente lidar com eles, conversando ou tentando convencê-los a não machucar o seu personagem. Mas, antes de prosseguir, é preciso falar sobre como o jogo trabalha para que, efetivamente, essas opções sejam significativas.

Em termos de sistemas, Undertale funciona como um RPG de turnos de 16-bits, mas, como vocês devem saber, jogos desse gênero sempre funcionam sob a premissa de que é precisa matar muitos monstros, porque isso é a condição para ganhar experiência e, como o sistema de batalhas é em turno, a não ser que o seu personagem esteja num nível gigantesco, é impossível vencer sem tomar nenhum golpe do adversário.

Ou seja, o gênero em que Undertale se baseia tem no combate algo absolutamente fundamental, porque ninguém poderia matar o último chefe de um Final Fantasy sem vencer alguns inimigos antes e ganhar experiência; se alguém tentasse fazer isso, seria imediatamente derrotado. Como, então, fazer um jogo em que se pudesse não matar ninguém e ainda assim, em pleno nível 1, chegar até o último chefe?

A solução do jogo foi transformar o combate em uma mistura de RPG com shoot’em up. Na prática, o jogo ainda funciona à base de turno, em que cada personagem tem a sua vez e escolhe uma ação, seja atacar, fugir, usar item, ou tentar falar algo. Entretanto, no momento em que o turno passa a ser do monstro, o protagonista é representado por um coração que se movimenta num pequeno quadrado e precisa evitar os objetos e projéteis que são lançados ali. Se ele conseguir evitar tudo, ele se livra de 100% do dano.

Graças a isso, se o jogador quiser, não é preciso derrotar ninguém em batalha, porque a experiência é opcional. Se ele for habilidoso nas opções de conversação e no desvio de projéteis, ele poderá ir do começo ao fim do jogo com nível 1. A única concessão que o jogo faz é dar dinheiro ao jogador quando ele convence um inimigo a se render, para que seja possível comprar itens para melhorar a resistência e recuperar a vida do protagonista, já que algumas batalhas no fim do jogo demandam muita habilidade e resistência. Com isso, Undertale remove a barreira técnica para a execução do seu conceito, mas resta ainda uma barreira muito importante, e muito subestimada por certos jogadores, que eu chamo de barreira ideológica.

Jogos eletrônicos existem há quase quarenta anos e, desde então, sempre foram baseados, em sua maioria, na ideia de confronto, de embate, o que frequentemente escalou para a ideia de violência. Por isso, a imensa maioria dos jogos hoje é baseada em algum tipo de combate, e isso molda a nossa percepção de forma bastante forte, o que faz com que a ideia de um jogo sem uma condição de vitória seja considerado um não jogo ou algo assim.

Nesse contexto, Undertale tem a difícil missão de mostrar como não é preciso haver combate para que um jogo seja divertido e recompensador e, no geral, ele é bem-sucedido, pelo menos na medida em que é possível convencer alguém investido no consumo de uma mídia baseada fortemente num mesmo aspecto. Seria o mesmo que convencer um expectador tradicional de novelas a acompanhar uma trama sem romance e sem mocinho e vilão. Ou seja, há limites na audiência para quem está disposto à mudança.

Considerando tudo isso, eu acho que Undertale se vale das melhores ferramentas possíveis para cumprir a sua missão, embora eu ainda melhoraria uma coisa ou outra, se pudesse. O grande trunfo de Undertale é se basear fortemente na série Mother, de que eu falei um pouco aqui no canal, e que é baseada num universo que, embora ainda tenha um combate relativamente arraigado, consegue desviar significativamente a atenção do jogador para os seus personagens.

O segredo da série Mother é fazer com que os personagens sejam estranhos e divertidos, como se todo mundo lá fosse um pouco louco, um pouco fora da medida, e isso cria um senso de humor muito próprio à série, e que Undertale claramente busca replicar. Os primeiros adversários que eu encontrei e suas ações divertidas me lembraram imediatamente de quando encontrei o primeiro hippie inimigo no primeiro Mother. É divertido, e traz um pouco o jogador para perto do inimigo, faz com que ele não o trate puramente como um adversário, mas como alguém com alguma personalidade.

Undertale busca isso com todos os personagens e, no geral, é bem-sucedido. Todos que habitam aquele mundo têm seus trejeitos, seus dramas e seus pontos-chave em termos de personalidade. Especialmente os personagens principais da história têm bastante tempo para construção de seus personagens, o que faz com que você se apegue a eles e relute muito em matá-los.

Acho que isso fica claro nos dois primeiros chefes do jogo, que criam esse sentimento por caminhos diferentes. O primeiro é um dos personagens mais gentis que já existiram no mundo dos jogos, alguém cujo carinho e atenção tocam o jogador de verdade, a ponto de você não querer magoar esse monstro. Graças a isso, quando acontece de ele estar no seu caminho, você se restringe e não quer partir direto para o ataque. Com isso, o jogador acaba percebendo que é possível receber muita satisfação ao terminar um combate e saber que aquele personagem querido sobreviveu.

Já o segundo chefe não é baseado nesse tipo de emoção, mais sim no humor. Ele é muito engraçado na sua falta de jeito e, por causa disso, o jogador nunca o leva a sério, e acaba achando que é até cruel atacar um personagem que provavelmente não tem aptidão para absolutamente nada mesmo. Com isso, mais uma vez o jogo desperta no jogador o impulso de evitar o confronto.

Com isso e outros inimigos no início do jogo, o jogador já está treinado na opção de não lutar e, assim, ele pode praticar esse pacifismo sem tanto estranhamento, inclusive contra inimigos que parecem muito mais ameaçadores. E, para quem acha que não atacar torna o jogo trivial, é preciso deixar claro que convencer um inimigo demanda algumas rodadas, o que, se você não tiver ótimos reflexos, vai ser uma situação bastante tensa.

Aliás, essa tensão é fundamental para fazer o jogador sentir o desespero que o protagonista deve sentir em certos momentos. Ser atacado e não poder revidar é difícil, especialmente quando não se pode fugir simplesmente. E, quando um inimigo simplesmente se recusa a conversar ou não te deixa poupá-lo de alguma outra forma, a angústia em busca de soluções é real, e faz o jogador olhar para o botão de ataque quase como um alcóolatra que tenta se libertar olha para uma garrafa de bebida depois de um dia difícil.

Graças a tudo isso, o mundo de Undertale é extremamente simpático e marcante, o que faz o jogador querer preservá-lo ao máximo e, ao mesmo tempo, ele não perde tanto assim assumindo uma postura pacifista, porque o jogo tem a sua diversão e recompensa de outras formas.

Mas, é claro, existe a opção de combate. E o jogador pode passar toda a sua experiência só matando todos que encontra naquele mundo, o que vai variar bastante a experiência e o próprio final do jogo. O interessante é que essa opção não foi feita para ser agradável ao jogador. Para ganhar nível e conseguir o final específico voltado a combate, o jogador precisa lidar com encontros aleatórios que vão ficando cada vez mais raros, o que faz o jogador perder muito tempo, e também com os chefes, que acabam alternando entre personagens muito queridos sendo trucidados sem merecer e outros personagens com padrões de ataque tão insanos que se torna frustrante continuar.

A isso se soma também o fato de que o sistema de combate é muito raso. Só existe um tipo de ataque possível, as customizações de itens são raríssimas e, no geral, ficar se expondo a combate o tempo todo trivializa o sistema que, numa experiência pacifista, é usado com uma parcimônia capaz de fazer cada variação de combate parecer muito mais nova e divertida. Esse aspecto geralmente é criticado por jogadores que ficaram desagradados com Undertale.

Eu não digo que esses jogadores estejam errados, mas é que a intenção de Undertale é justamente esta: fazer o combate ser desagradável, enquanto o diálogo é enriquecedor. Existe um universo de diferença entre matar um personagem assim que você o vê ou deixá-lo vivo, se tornar amigo dele e ouvir as suas piadas durante todo o resto da experiência. O mundo do jogo se torna totalmente outro.

Fazer uma das opções de jogabilidade ser rasa, entediante e incapaz de dar satisfação ao jogador é uma aposta arriscadíssima, mas isto é justamente uma das coisas mais interessantes em Undertale em relação à nossa indústria: ele não tem medo de se colocar politicamente, de dizer que um jogo incentivar combate em oposição a uma construção de personagem é algo eticamente irresponsável, porque é uma filosofia de guerra mais do que de paz, é algo pouco civilizado.

É claro que, tendo um ponto de vista político tão explícito em suas mecânicas, Undertale convida o jogador a concordar com ele ou não; é impossível passar indiferente à mensagem. É como uma evolução de algo já presente num outro excelente jogo indie, Papers, Please, que fazia o jogador se sentir mal com a satisfação de bloquear a entrada de pessoas no seu país, o que poderia ter várias repercussões negativas para essas pessoas. Mas, Papers, Please colocava essa questão mais ao jogador, enquanto absolvia o personagem, que estava preso a um sistema cruel.

Undertale quer que o jogador entre em seu mundo, encarne em seu personagem e seja amigo dos monstros, que sinta como é bom conhecer as pessoas, lidar com elas, aprender a achar aquilo que faz delas algo especial. No fundo, com o tempo certo, as palavras certas e uma intenção genuína, todo mundo pode estabelecer um diálogo.

Nessa visão, o combate é ruim porque combater, por si só, é ruim. A mensagem do jogo é claramente que, se você quer matar criaturas mesmo sem precisar, há algo errado com você. Mas, a existência da opção e o risco de ela ser vista como mecanicamente limitada é algo brilhante, porque jogos que buscam a criação e o diálogo nem sempre colocam o assassinato diretamente em suas mecânicas. Imagine, por exemplo, um The Sims em que um personagem pudesse pegar um bastão de beisebol e espancar outro sim até a morte, como se faz num GTA. Por algum motivo, todos em The Sims são pacifistas, com um outro xingamento ou estapeamento aqui e ali.


Undertale não tem medo de ser um jogo fortemente autoral e com uma mensagem muito forte. Concordando ou não com ele, é impossível para mim não respeitá-lo por isso e admirar que possa existir um jogo na indústria que claramente demonstra opiniões e as recria em termos de mecânicas. Vivemos num bom momento para jogar video game.

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