sábado, 23 de janeiro de 2016

Teoria: Jogos e Kickstarter



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou fazer mais um vídeo de teoria, agora falando de um assunto que tem ganhado muita relevância na nossa comunidade, que é a relação entre financiamento de jogos e Kickstarter. Antes de começar, eu quero avisar que eu não sou nenhum especialista em financiamento de jogos; eu provavelmente só tenho as mesmas informações que qualquer um pode obter seguindo a nossa indústria a uma média distância.

Mas, também é preciso admitir que é difícil encontrar alguém que efetivamente saiba como funcionam as estratégias para financiar o desenvolvimento de um jogo, já que as grandes empresas dificilmente divulgam informações desse tipo, e a maioria dos desenvolvedores acaba sendo proibida de falar por obrigações contratuais.

Por conta dessas coisas, o meu ponto de vista vai ser o de alguém que vê o processo de fora, mas que tem um interesse grande na área. E, especialmente por isso, eu agradeço caso alguém corrija alguma informação errada que eu falar, ou mesmo caso alguém possa explicar melhor algum aspecto mais ou menos obscuro desse processo, ou citar alguns exemplos mais interessantes do que os que eu vou mencionar.

Bom, tradicionalmente, o desenvolvimento de jogos é feito graças a financiamentos de empresas grandes, que, em troca, têm o direito de distribui-los e ganhar a maior parte dos seus lucros. Essa empresa é normalmente chamada, no Brasil, de distribuidora, ou, em inglês, de publisher. Com o advento dos jogos indie, nós temos visto jogos que são criados pelo desenvolvedor como projetos paralelos a um trabalho remunerado, ou mesmo com o dinheiro que ele juntou durante um bom tempo trabalhando em outras empreitadas.

Nos últimos anos, uma terceira e interessante forma de financiamento surgiu como possibilidade, que é o chamado crowdfunding. Isso nada mais é do que um projeto ser financiado graças ao dinheiro de uma enorme quantidade de pessoas, que contribuem com quantidades relativamente modestas, mas que, juntas, equivalem a uma quantia substancial.

Existem diversos meios de realizar crowdfunding, mas o que ganhou maior destaque nos últimos tempos é o site Kickstarter, que organiza o processo de crowdfunding. O artista em questão pode criar o seu projeto lá, e o site organiza as doações e permite uma interface para que a pessoa que está pleiteando o dinheiro entre em contato com seus contribuintes, fornecendo updates do projeto, podendo responder de uma vez a um conjunto de comentários, etc.

Na verdade, eu acho que a grande vantagem do Kickstarter como site é o fato de que ele reúne muitos projetos e se tornou um local frequentado pela maioria das pessoas dispostas a contribuir; então, ter o seu projeto lá possibilita que pessoas já acostumadas a contribuir vejam a sua ideia enquanto procuram por outra. Ou seja, a grande vantagem do Kickstarter é a projeção dele dentro da comunidade.

Pelo que eu pude sentir, essa expressão que o Kickstarter alcançou começou em 2012, quando alguns projetos capitaneados por desenvolvedores de grande fama começaram a aparecer na site. Eu, por exemplo, ouvi falar do Kickstarter pela primeira vez por causa do projeto de Broken Age, do célebre desenvolvedor Tim Schafer.

De 2012 em diante, o site tem ganhado cada vez mais relevância, e tem visto diversas questões serem levantadas em relação à sua função real e a como ele deve ser visto pela comunidade. Neste vídeo, eu queria analisar um pouco alguns aspectos sobre essa nova forma de financiamento, seja em relação a ela mesma, seja em relação à forma como as pessoas têm tratado esse processo. E, por isso mesmo, eu quero também ouvir a opinião de vocês, então sintam-se mais do que convidados a dar a opinião de vocês nos comentários.

A primeira coisa que me chama atenção na forma como o Kickstarter opera é como há uma certa desinformação no tocante à dinâmica de financiamento. No fundo, me parece que algumas pessoas veem a ideia de contribuir para um projeto como se fosse uma espécie de pré-venda, ou seja, como se o jogo fosse, de fato, sair, e aí a contribuição seria só um adiantamento.

A questão é que um Kickstarter é um processo muito mais arriscado do que isso. Para começar, caso a meta financeira estabelecida pelo desenvolvedor não seja atingida, o projeto simplesmente fracassa e nenhum dinheiro será debitado de quem se propôs a financiá-lo. É diferente de um jogo que é anunciado por uma distribuidora, porque, quando ele aparece na mídia, ele já está numa etapa mais avançada de desenvolvimento. Um projeto no Kickstarter é isso mesmo, um projeto; no geral, ele está num estágio extremamente inicial, e não prosseguirá se não tiver dinheiro.

Além disso, não há garantia nenhuma de que, uma vez que o projeto foi aprovado, ele vai, de fato, ser lançado, já que nós estamos falando de trabalho criativo, e seus desdobramentos são praticamente imprevisíveis. Por isso, ir ao site com a mentalidade de um futuro comprador ou como um investidor dificilmente terminará em algo positivo. Para mim, o ideal é ver cada projeto lá como uma aspiração, uma ideia que você pode querer ver se tornando realidade, e para a qual você contribui sem ter a certeza de ganhar nada em troca, apenas pelo desejo de vê-la se tornando realidade.

Apesar dessa mentalidade desprendida que eu descrevi agora, o próprio Kickstarter tenta assegurar, de alguma forma, que os desenvolvedores cumpram seus projetos e entreguem as recompensas adicionais das pessoas que contribuem com grandes quantias, ou então devolvam o dinheiro. Entretanto, eu sempre achei essas declarações um tanto tolas, porque como uma pessoa devolve um dinheiro que ela usou num projeto fracassado, sendo que ela precisou do Kickstarter para conseguir essa mesma quantia? Se ela tivesse esse dinheiro, ela não usaria o site.

Nesse sentido, dando uma relida nos termos básicos do Kickstarter, parece que eles reviram alguns desses termos para algo mais viável. Antes, eles simplesmente propunham que o desenvolvedor devolvesse todo o dinheiro e até incentivavam os contribuintes a procurar a justiça se necessário. Hoje, os termos são mais próximos da realidade, e o site cobra mais uma demonstração de esforço e transparência que convença que a falha do projeto não veio de má fé do desenvolvedor.

Por tudo isso, como eu disse, é melhor não contribuir com nenhum projeto com a certeza de que ele se tornará realidade; tudo ali é uma aposta. É claro que existem apostas mais seguras do que outras, mas todas são apostas mesmo assim. Esse sentimento de pré-venda provavelmente vem do fato de desenvolvedores de renome estarem participando do Kickstarter e se apropriando de marcas famosas, mesmo que com o título de sucessor espiritual. O fato é que tem muita gente que acha que está fazendo pré-venda do novo Mega Man, do novo Castlevania, etc., e não é assim que funciona.

Deixando de lado essas particularidades do financiamento em si, é preciso destacar exatamente o que o Kickstarter e o crowdfunding em geral possibilitam. Eu acredito que o ganho mais óbvio dessa estratégia de financiamento seja possibilitar que desenvolvedores consigam perseguir projetos que não são interessantes do ponto de vista de uma distribuidora de destaque, e que são mais ambiciosos do que aquilo que uma equipe pequena consegue juntar ao longo do tempo.

O fato é que a estratégia indie tradicional de gastar muito pouco ou, então, todas as suas economias é muito arriscada e pouco saudável para o desenvolvedor. Afinal, quem quer gastar todo o seu dinheiro num projeto incerto ou viver sem um centavo para gastar em outra coisa além de trabalho? De certo modo, essas coisas atrasam a expansão da comunidade indie, com muitos fugindo dessa rotina insalubre. Ser artista não significa ter que passar fome.

Um exemplo bem emblemático disso para mim foi uma declaração do Jonathan Blow, criador de Braid, um dos jogos indie mais bem recebidos e influentes. Ele disse que, para fazer o jogo novo dele, The Witness, ele precisou gastar tudo que tinha ganhado com Braid. Ou seja, se o jogo novo fracassar, ele sai sem nada. É muito arriscado.

O Kickstarter fornece uma segurança ao desenvolvedor; ele não vai precisar hipotecar a casa para fazer um jogo, ele não vai precisar contratar alguém apenas baseado num sonho. Isso cria um ambiente mais saudável para o lado pequeno e médio da nossa indústria, e permite que as pessoas que se dedicam a jogos tenham um maior prazer em praticar esse ofício, o que possibilita que mais pessoas decidam seguir esse caminho.

Mas não é só isso: eu acho que o maior apelo do Kickstarter para o público é a possibilidade de ter jogos que atendam às mais diversas demandas, principalmente àquelas que são consideradas de menor expressão. O fato é que as empresas grandes costumam direcionar seu dinheiro para projetos considerados de alto retorno financeiro e, por isso, fazer jogos para um nicho é pouco produtivo, mesmo que o gasto financeiro seja menor. Afinal, aqueles funcionários sendo pagos para fazer um jogo de nicho poderiam fazer um jogo de apelo global e ter um retorno financeiro bem maior.

O Kickstarter permite que projetos considerados de público menor se tornem realidade graças ao financiamento desse próprio público. E o segredo para isso está no fato de que esse público menor pode ter interesse em gastar mais para ver o projeto se tornando realidade. Um jogo desenvolvido de forma normal vai ser vendido a algo entre 40 e 60 dólares, e o único jeito de receber mais um de comprador é com alguma edição especial.

No Kickstarter, não há limite de valor nas doações, o que permite imensos valores. No projeto de Bloodstained, um sucessor espiritual de Castlevania, 3 pessoas doaram 10 mil dólares. Se a gente pensar que os últimos Castlevanias em 2D eram para DS e custavam 40 dólares, cada uma dessas 3 pessoas pagou 250 vezes mais.

Uma das coisas mais óbvias em Economia é que, para vender um produto com poucos compradores, existem duas soluções: ou tentar aumentar o público, ou subir o preço. Aumentar o público pode levar a uma descaracterização do produto, então subir o preço é a saída mais razoável; entretanto, como a nossa indústria é muito acostumada com um preço fixo, a saída mais inteligente foi permitir que cada um invista como quiser no próprio financiamento do jogo. Com isso, vários jogos de nicho estão sendo feitos.

E eu não preciso nem usar o exemplo desses desenvolvedores mundialmente conhecidos para demonstrar isso: jogos sem grandes nomes envolvidos, como Octodad ou FTL, têm doações acima de mil dólares. Com isso, alguns projetos pequenos e interessantes estão sendo produzidos, e tudo graças ao financiamento da própria comunidade.

Isso é muito importante, porque, como eu já disse em outros vídeos, depender 100% da boa vontade das grandes distribuidoras é um erro estratégico, já que elas só farão o que puder trazer lucro certo, e o maior possível. Do contrário, é difícil ter certeza.

Crowdfunding dá a garantia de que o próprio público pode trabalhar para uma indústria mais saudável, que apresente mais diversidade em suas obras; permite experimentação e oferece um meio de vida saudável para quem quiser tentar coisas novas. E, ao mesmo tempo, nós sempre teremos as empresas grandes fazendo jogos que custam dezenas de milhões de dólares.

E essa é minha deixa para falar da mais nova discussão relacionada ao Kickstarter. De uns tempos para cá, a comunidade tem visto um crescente envolvimento de grandes empresas com o Kickstarter. O primeiro caso de que eu consigo me lembrar foi a aquisição da Oculus (a empresa responsável pelo Oculus Rift) pelo Facebook em março do ano passado. Depois, em abril deste ano, a Deep Silver anunciou que publicaria Mighty no. 9. Ou seja, projetos inicialmente financiados pelo Kickstarter passaram a receber dinheiro de grandes empresas.

Esse movimento trouxe uma certa desconfiança, pois muita gente temia que, em algum momento, pudesse haver alguma interferência da distribuidora sobre o conceito do jogo, e assim o projeto se desvirtuaria. Entretanto, eu acho que é preciso ter um pouco de paciência antes de alardear que algo vai perder a sua essência até ser possível notar esse tipo de coisa. Ou seja, nós precisamos ver os jogos completos para sentir qualquer diferença nesse sentido.

Como o crowdfunding é algo novo em relação a jogos, o único jogo que eu sei que passou por situação semelhante e já está publicado é o Project CARS, que, além do dinheiro de crowdfunding, acabou sendo publicado pela Namco Bandai e, até onde eu ouvi falar, ninguém reclamou de alguma perda de essência ou algo assim. Foi um projeto bem-sucedido e que já está pleiteando uma sequência, também por meio de crowdfunding.

No entanto, a discussão sobre Kickstarter realmente explodiu com dois projetos recentes, que foram Bloodstained: Ritual of the Night e Shenmue 3. Isso aconteceu porque o chefe do projeto de Bloodstained disse com todas as letras que estava usando o Kickstarter apenas para mostrar como havia um público desejando um certo gênero de jogo. O dinheiro arrecado iria para o desenvolvimento, sim, mas a maior parte viria de uma empresa grande.

A situação de Shenmue 3 é um pouco mais complicada: o Kickstarter do jogo foi anunciado na conferência da Sony na E3, e muitas pessoas assumiram que a Sony tinha um envolvimento direto no financiamento do desenvolvimento do jogo. Desde então, isso foi negado por inúmeros funcionários da Sony e pelo desenvolvedor-chefe de Shenmue 3, mas muita gente continua achando que a Sony está bancando o jogo, e o Kickstarter é só um jeito de verificar quanto interesse há, de fato, no jogo.

Várias pessoas viram isso como um envenenamento do crowdfunding, prevendo que empresas ficariam com todo o lucro dos jogos para si, e usariam mais dinheiro do público para fazer os jogos. Isso, para mim, é um catastrofismo de dimensões épicas, porque, sendo bem sincero, o crowdfunding não é tão grande para sustentar um projeto multimilionário, e sim apenas projetos pequenos e médios.

Digamos que, um dia, a Ubisoft resolva usar o Kickstarter. Ela nunca vai colocar um Assassin’s Creed lá, porque obviamente a população que usa o Kickstarter não vai poder contribuir com o que efetivamente custa fazer um jogo desses. Mas, talvez ela seja capaz de financiar, sim, um jogo do porte de Child of Light, o que pode ser algo bem interessante, como eu vou falar daqui a pouco.

Acima de tudo, eu acho que algumas pessoas subestimam o poder de resposta da comunidade quando algo não a agrada. Se um dia passasse a haver distribuidoras arrecadando dinheiro para fazer um jogo multimilionário, a comunidade simplesmente não ia concordar. Uma coisa que muita gente esquece é que um fator importante de um Kickstarter é a história que ele conta sobre o quanto os desenvolvedores querem realizar aquele projeto, o quanto o dinheiro de crowdfunding é essencial, o quanto a participação do público importa, etc.

Uma empresa grande aparecer e pedir dinheiro não tem o mesmo impacto. Mesmo quando ela afirma que não tem dinheiro, muita gente não se convence: quando Street Fighter V foi anunciado como sendo financiado também pela Sony, funcionários da Capcom alegaram que a empresa não tinha como investir dinheiro no jogo naquele momento, e por isso ele seria postergado indefinidamente, se é que um dia sairia. Mesmo assim, muita gente não acreditou e ainda hoje não acredita nisso, e acha que a Sony simplesmente pagou um monte de dinheiro e a Capcom fingiu que precisava dele.

Numa comunidade como a nossa, que desconfia tanto das coisas, é difícil uma empresa criar uma narrativa que leve as pessoas a efetivamente doarem, e por isso eu não tenho medo nenhum de o processo de crowdfunding ser desvirtuado sistematicamente. Mesmo que alguém tente, simplesmente não encontrará o suporte necessário.

E, na verdade, eu saúdo a chegada de distribuidoras ao Kickstarter, e acho que a comunidade poderia usar isso para conseguir alguns avanços bem interessantes dentro da nossa indústria. Para começar, o Kickstarter pode dar a confiança necessária às empresas para perseguir projetos diferentes e de menor porte, que não garantam lucro gigante, mas sim a satisfação de um certo nicho. Talvez, assim, nós tivéssemos tantos Child of Light e Valiant Hearts como nós temos Assassin’s Creed e Far Cry.

Isso é especialmente válido para algumas empresas não tão grandes, como as de localização. Eu nunca esqueço a história das dificuldades da localização ocidental de um jogo chamado Oreshika, predecessor do jogo que a gente conhece como Oreshika: Tainted Bloodlines. Há uns anos atrás, uma pequena empresa de localização chamada Gaijinworks se interessou pela publicação do jogo, mas não podia começar o projeto porque a empresa dona da marca, a Sony, exigia uma garantia mínima para dar o aval para a localização.

Garantia mínima é um depósito em dinheiro feito pela empresa que localiza o jogo para a empresa dona do jogo, e que equivale a um número de vendas. Ou seja, a empresa de localização tem que dar bastante dinheiro para poder começar a trabalhar. Por conta dessa quantia, a Gaijinworks nunca pôde localizar Oreshika, que até hoje permanece exclusivo do Japão. Se a empresa tivesse recorrido ao Kickstarter para conseguir essa quantia, nós poderíamos jogar o jogo em inglês neste momento.

Além disso, ter uma distribuidora envolvida permite que o ciclo de desenvolvimento se torne mais sustentável, com um gasto maior de marketing para que o jogo venda bem. Um dos meus grandes medos em relação a projetos de Kickstarter é que todas as pessoas interessadas já ganhem o jogo como recompensa por terem doado, e depois o jogo fique sem público para vender. Uma boa campanha de marketing pode ajudar nisso.

Outra vantagem é que a gente poderia abandonar essa prática dos “sucessores espirituais” e receber jogos novos das franquias mais consagradas: em vez de um Mighty no. 9, a comunidade financiaria um novo Mega Man; em vez de Bloodstained, um novo Castlevania; em vez de Yooka-Laylee, um novo Banjo-Kazooie.

Vale dizer também que, contando com distribuidoras, há maior possibilidades de nomes consagrados da indústria trabalharem em jogos diferentes. Atualmente, nós temos que esperar uma pessoa se desligar da empresa para então criar um projeto novo. Caso a empresa esteja envolvida desde o início, essa pessoa não precisaria tomar o passo extremo de sair do seu local de trabalho.

Enfim, os ganhos são diversos, mas o maior é que o público poderia se envolver de forma mais direta e clara nos planos das empresas, diferente do que acontece no chamado voto com o bolso tradicional, em que você simplesmente escolhe não comprar um produto como forma de protesto. Com o crowdfunding, minorias na comunidade podem mostrar que existem e que estão dispostas a pagar por certos jogos, o que só desencadeará mais diversidade na nossa indústria.

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