sábado, 23 de janeiro de 2016

Fallout - Pensando sobre o jogo



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Fallout, jogo de PC lançado em 1997 pela Interplay Entertainment. Ele é um RPG muito agradável de jogar, e que aposta muito em criar um sentimento de experiência única para cada jogador.

A trama de Fallout acontece num futuro pós-apocalíptico mais ou menos tradicional: no século XXI, acontece uma disputa intensa por petróleo e urânio, que são, simultaneamente, o maior tesouro do mundo e o combustível para as armas. Ou seja, riqueza significa poder e vice-versa. Por conta do caráter limitado desses recursos, as nações declararam uma guerra nuclear e, em questão de horas, a civilização como a conhecemos foi quase totalmente destruída, com exceção das pessoas que conseguiram se abrigar em algumas construções subterrâneas, chamadas de vaults.

Décadas depois, o jogo começa. O protagonista pertence a uma das famílias que sobreviveram ao se abrigar em um vault, do qual ninguém jamais saiu. O vault, em si, é autossuficiente, capaz de produzir seus alimentos e reciclar água. Entretanto, num determinado momento, uma peça essencial para o processo de reaproveitamento de água se quebra, e é impossível consertá-la. Alguém precisa, então, ir à superfície e buscar uma reposição.

É nesse ponto que o protagonista entra. Ele é especialmente destacado pelo líder do vault para procurar essa peça num intervalo de 150 dias, que é a quantidade de tempo possibilitada pelo que resta de água ao vault. E essas duas informações são os elementos iniciais e fundamentais de Fallout: o jogador precisa achar a peça necessária e só tem 150 dias para isso.

Isso cria uma dinâmica muito interessante ao jogo e o distingue bastante dos outros RPGs que eu conheço, porque jogos desse tipo geralmente gostam de dar tempo ao jogador, para que ele possa explorar livremente e conhecer aquele mundo. Fallout, entretanto, deixa o jogador sempre inseguro, sem saber se deve topar alguma missão, pois ela pode ser secundária e, assim, atrasar o protagonista. Mas, essa mesma missão pode ser fundamental para o progresso; o jogador nunca sabe.

Essa sensação de desnorteamento é fundamental para a experiência inicial de Fallout, porque coloca o jogador bem próximo da condição do protagonista. Supostamente, o personagem quer salvar seus conhecidos com urgência, e ficaria agoniado em ser desviado dessa missão. Deixando o jogador com o mesmo senso de urgência, o jogo consegue despertar o sentimento exato para criar uma experiência altamente imersiva em termos de estabelecer uma harmonia entre o sentimento do jogador e de quem ele controla.

Isso é muito importante porque é uma lição interessante que Fallout deixa aos jogos de mundo aberto contemporâneos, que às vezes criam situações de urgência e desespero na sua história, mas imediatamente as suspendem para o caso do jogador querer fazer alguma side quest ou procurar algum colecionável.

Nesse tipo de jogo mais liberal, cria-se uma separação entre o sentimento do personagem e o desejo do jogador, o que prejudica a unidade da experiência, mas é algo tão comum hoje em dia que muitos nem reparam. Fallout, entretanto, busca essa ligação antes de tudo, porque, para Fallout, o mais importante é criar no jogador a sensação de que ele está vivendo aquela situação. Nesse sentido, Fallout investe muito na ideia de role playing, de incorporar um papel, que está na sigla RPG.

Mas não é só limitando que Fallout faz o jogador se integrar à trama. A receita genial de Fallout é justamente saber onde limitar e onde libertar o jogador, e a ideia de liberdade no jogo é tão grande que é até difícil lembrar dos pontos em que o jogo apresenta alguma limitação.

A primeira grande liberdade de Fallout é na criação de personagens. No começo do jogo, são oferecidos três padrões de personagem para o jogador escolher. Cada um deles tem uma força e uma ou mais fraquezas, e o mais importante é que escolher cada um deles ou criar um novo personagem do zero implica jogar de forma totalmente diferente.

O primeiro momento em que isso se dá é na divisão do jogo em atributos e habilidades. Existem apenas 7 atributos na criação de personagem, e eles têm relativamente pouco espaço de variação. Entretanto, as habilidades são muitas e é nelas que o jogador reina absoluto. Conforme o jogador cumpre missões ou sai vitorioso de combates, o protagonista aumenta seu nível, liberando pontos para investir nas suas habilidades e, assim, é possível criar um personagem exatamente como se quer.

A diferença entre focar em atributos e focar em habilidades é que, se o foco está nos atributos, o jogador só escolhe se o personagem vai ser mais forte, mais rápido, mais sortudo, mais resistente, mais inteligente, etc. Isso pode resultar em experiências diferentes, mas é tudo muito simples: se o jogador investe em força, o personagem vai focar em combate; se investe em inteligência, o personagem usará mais magia ou diálogos, etc.

Com o foco nas habilidades, é possível criar um personagem multifacetado ou, pelo contrário, incapaz de dominar toda uma área de conhecimento. Por exemplo: se seu personagem em Fallout tiver alta inteligência, pode significar que ele é bom em operar tecnologias, mas pode ser que ele prefira focar em opções de diálogo, ou mesmo as duas coisas. Se o personagem estiver focado em força, pode ser que ele seja especialista em armas, mas talvez só em armas pesadas, e não em armas leves ou armas de laser.

Ao longo do jogo, conforme o protagonista vai evoluindo, é possível torná-lo alguém ainda mais complexo. Meu personagem, quando eu terminei de jogar, tinha foco em armas pequenas, diálogos e um pouco de stealth. Entretanto, ele era péssimo em armas pesadas, arrombamento e cura. Isso, claro, sem contar as outras habilidades em que ele era mediano.

Resumindo, ao focar mais num conjunto vasto de habilidades do que em atributos primários, Fallout cria múltiplas opções que, como eu disse, deixam o jogador extremamente livre dentro da pesada restrição de tempo que é imposta. Assim, enquanto o jogo cria uma história que sabe despertar o sentimento certo no jogador, ele também dá a liberdade para fazer o jogador ficar perfeitamente imerso, como se ele estivesse controlando um personagem próprio e único.

Entretanto, isso adiantaria muito pouco se a estrutura do jogo não possibilitasse que o jogador pudesse moldar a sua experiência da sua forma. Um jogo como Deus EX: Human Revolution, por exemplo, falha nesse conceito, porque, apesar de ser bem aberto a opções de diálogo e stealth, exige que o protagonista esteja afiado no combate para vencer os chefes; do contrário, o jogador vai sofrer muito.

Fallout não comete esse erro, e o seu acerto é uma coisa absurda, que me parece quase irreal quando eu paro para pensar. Para deixar muito claro, vou falar duas afirmações: a primeira é que, até onde eu sei, o protagonista pode matar todos os personagens do jogo; e a segunda é que é possível zerar o jogo sem disparar um único tiro.

E, para além desses extremos, o jogo permite todo um espectro que depende apenas do jogador, seja pelos atributos e habilidades que escolheu, seja pela sua paciência de procurar elementos que detalhem as opções. O fato é que a maioria das missões de Fallout, inclusive as da missão principal, pode ser abordada de formas radicalmente distintas, a depender das capacidades do personagem e da forma como o jogador planeja conduzir a experiência.

Um exemplo simples: o protagonista pode chegar numa cidade e ouvir o pedido de um líder que precisa de ajuda com um bandido. Ele pode recusar e seguir o jogo tranquilamente; pode aceitar sem pedir nada em troca; pode aceitar, mas tentando extorquir o líder para obter o máximo de recompensa possível; e pode ir falar com o bandido, que talvez ofereça uma recompensa se o protagonista matar o líder.

Esse caso que eu citei parece mais limitado ao diálogo, mas as coisas podem ser bem mais complexas do que isso. O protagonista pode ser colocado numa missão em que precisa alcançar um determinado objetivo, e a forma primordial para obter êxito é o combate, mas, se o jogador tiver as habilidades necessárias, ele pode conseguir o mesmo resultado por meio do diálogo, usando conhecimento em tecnologia ou até roubando e passando despercebido.

Isso faz de cada missão de Fallout um tesouro de descoberta impressionante: toda vez que eu acessava uma nova missão, ficava extremamente curioso para saber que diversas formas de resolução ela permitia, e o jogo praticamente nunca desapontou. Se eu tivesse que apontar algum momento em que isso não se realiza perfeitamente, seria só na última missão, que tem uma das opções de resolução meio mal-resolvida, mas é uma exceção, e não a regra.

Por coisas como essas, Fallout é o verdadeiro paraíso das pessoas interessadas em jogar múltiplas vezes e testar as diversas possibilidades do jogo. Chutando por baixo, eu acho que serio necessário jogar três ou quatro vezes para explorar todos os caminhos. E tudo é tão diferente que até choca; antes de fazer este vídeo, eu estava assistindo a trechos de um gameplay com um personagem sem nenhuma inteligência e parece completamente outro jogo: enquanto o meu personagem, ao conversar, tinha sempre umas três ou quatro opções de resposta, o protagonista sem inteligência fica só falando “dã” e coisas parecidas.

Como eu não costumo analisar as coisas pelo ponto de vista de quem gosta de jogar várias vezes, o que mais me impressiona nessa estrutura de Fallout são duas coisas: a primeira é como ele consegue fazer valer perfeitamente a multiplicidade de habilidades e atributos na experiência toda; não há um momento em que a experiência do jogador não esteja condicionada às escolhas que ele assume. Até os personagens do mundo reagem ao protagonista de forma diferente, dependendo das suas ações.

A segunda coisa que me impressiona nessa multiplicidade de caminhos é como ela dá um sentimento de que aquele personagem principal pertence ao jogador, é um reflexo das escolhas de quem está jogando. Raros foram os jogos que me colocaram numa situação de imersão tão forte, porque há espaço para o jogador pensar e se colocar no personagem que ele quer criar. A qualquer momento, o jogador pode pensar “bem, o que esse personagem faria agora?” e efetivamente executar o que achar condizente.

A verdade é que todo o mundo de Fallout é criado com a ideia de oferecer opções. A principal é a que eu expliquei até agora: a multiplicidade de habilidades e de opções de resolver um problema no jogo. Mas, existem diversos outros elementos que são moldados com a mesma finalidade. Os NPCs do jogo funcionam de forma parecida: em quase toda situação do jogo em que há conflito de pessoas, cada parte envolvida oferece complexidade, seja de caráter, seja de recompensa.

No mundo pós-apocalíptico de Fallout, existe todo tipo de NPCs: os dedicados ao roubo, os que praticam o comércio comum, os que protegem alguns enquanto violentam outros, os que se dedicam à religião, os que se voltam para a pesquisa científica, os que buscam entender a história, etc. Todos esses personagens se inserem num mesmo mundo em que faltam recursos e a lei do mais forte é o que impera.

E, embora Fallout padeça um pouco do mal de deixar um pouco claro demais o que é o bem e o que é o mal dentro daquele mundo – coisa que tramas pós-apocalípticas presentes hoje já superaram –, a trama do jogo prefere se concentrar mais na perspectiva de que existem diversos tipos de caráter do que na ideia de que bem e mal são uma questão de ponto de vista. Nesse sentido, é um jogo de moral forte, mas que não policia moralmente o jogador.

Por fim, a ideia da multiplicidade de opções está presente também no próprio combate, que, como eu falei, é ele mesmo só uma opção no jogo. Na prática, a mecânica de combate se dá por turnos, com cada envolvido tendo uma certa quantidade de pontos de ação a serem gastos em cada turno. Os pontos não usados até o final do turno se convertem em pontos de defesa para o personagem.

Durante os combates, é possível se esconder atrás de objetos, usar ataques específicos com uma mesma arma, como atirar a esmo ou tentar um tiro preciso, além, é claro, de usar itens e tentar fugir. As armas mesmo são muitas, com opções de combate corpo a corpo, armas contemporâneas nossas e até armamento futurista. Todas essas opções de combate são válidas e podem causar dano considerável. Vale dizer também que, ao longo do jogo, o protagonista pode recrutar companheiros para segui-lo em sua jornada, e eles efetivamente ajudam em combate.

Contudo, o controle do jogador sobre esses NPCs é bem limitado; não dá para escolher qual arma ou armadura eles usarão ou mesmo as estratégias deles em combate. Eles são realmente personagens que estão lá para te ajudar, mas que não pertencem ao jogador, por assim dizer. Em teoria, isso é uma coisa boa, porque a ideia de imersão que o jogo permite não combina muito com parties de RPG tradicional. Entretanto, às vezes as burrices dos seus parceiros são meio irritantes.

Fallout é um jogo que controla o jogador desde o primeiro minuto depois da criação do personagem. Existe um limite de tempo a princípio e as side quests não são tantas que possibilitem ao jogador uma ideia de sand box. Entretanto, a quantidade de opções colocadas em cada momento do gameplay faz esse jogo ter uma complexidade que assusta, e que faz de cada momento uma experiência que cada jogador sente ser sua. É um jogo agradável para os olhos e ouvidos até hoje, quase 20 anos após o seu lançamento, e que, em termos de design, é mais atual do que nunca na sua lição de que liberdade não precisa estar desligada da concisão e da unidade da experiência.

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