sábado, 23 de janeiro de 2016

Apotheon - Pensando sobre o jogo



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Apotheon, jogo da Alientrap lançado neste ano para PS4 e PC. Ele é um jogo muito interessante, com uma mecânica bastante profunda e cheia de detalhes, e cria uma experiência épica cheia de significado.

A primeira coisa que chama a atenção no jogo é a sua estética, que representa os personagens em preto e o cenário em cores bem pouco convencionais, como laranja ou verde. Essa estética, na verdade, mimetiza as artes plásticas da Grécia Antiga, que eram feitas em vasos. Se você não lembra de ter visto isso na vida real, talvez lembre do filme Hércules, da Disney, que cria alguns vasos com essa mesma estética. No jogo, ela cria uma identidade única e bela, e que, além disso, já estabelece o clima de lenda grega em que se passa o jogo.

Apotheon se passa na Grécia mitológica, num suposto momento em que os deuses viram as costas para os humanos e negam todos os seus benefícios, que são absolutamente vitais para a civilização e a própria existência da raça humana. O jogador controla Nikandreos, um guerreiro que acorda no momento em que sua cidade está sendo atacada por bandidos que tentam pilhar o que resta daquela civilização. Com isso, ele se põe a lutar para defender sua cidade.

Ao conseguir triunfar sobre os inimigos, Nikandreos atrai a atenção de Hera, a rainha dos deuses, que diz ser contra a partida dos deuses, explica ao herói que o único jeito de a humanidade poder sobreviver é aniquilando Zeus e os outros deuses do Olimpo e então recruta Nikandreos para esse trabalho. Graças aos poderes de Hera, o protagonista ascende ao Monte Olimpo e tem como missão obter tesouros dos deuses para aumentar seu poder e restaurar o mundo dos mortais.

Se você lembrou de God of War enquanto eu fazia esse resumo da premissa do jogo, não foi por acaso, já que a ideia de matar deuses da mitologia grega foi popularizada pelo jogo da Sony. Na verdade, se você tiver boa memória, vai reparar que os dois jogos começam com quase a mesma frase: em Apotheon, é “os deuses abandonaram vocês” e, no primeiro God of War, é “os deuses do Olimpo me abandonaram”. É uma semelhança impressionante, e que, na verdade, já revela muito sobre a diferença entre os dois jogos.

Em God of War, essa frase revela que o Kratos se sente pessoalmente abandonado e “pessoalmente” é o termo correto, porque tudo se passa num nível muito pessoal na história de God of War. O que provoca o pacto de Kratos com Ares é a ameaça de morte do espartano; o que muda a história da vida dele é o assassinato da sua família; é especificamente dele que os deuses precisam para matar Ares, o que calha perfeitamente com a vingança pessoal do Kratos. E isso se repete pela série toda: tudo tem alguma relação com a vida dele.

Talvez os desenvolvedores de Apotheon estivessem interessados em dialogar com a perspectiva de God of War ao retomar essa fala, mas eles a transformaram de forma a mudar completamente o ponto de vista que pauta o jogo. A frase “os deuses abandonaram vocês” implica grupo e não sujeito, e é justamente a ideia de grupo que está na base de Apotheon: o Nikandreos não luta por si, mas para salvar a raça humana, e isso fica explícito até o final do jogo. Além disso, quando ele encontra Hera, fica bem claro que ela não estava esperando por ele especificamente, mas por um guerreiro qualquer que fosse capaz de vencer aqueles inimigos.

Esses elementos só deixam claro que o Nikandreos não tem uma identidade forte, e que, na verdade, não interessa contar a história da pessoa dele, mas dos feitos que ele, representando a humanidade, foi capaz de executar contra os deuses. Como os melhores heróis épicos da cultura grega, ele representa uma cultura, no caso, a dos homens, que se rebelam por sua própria sobrevivência. O próprio nome Nikandreos significa “homem vencedor”.

Aliás, Apotheon, como um todo, parece ter vindo de um estudo bastante amplo da cultura grega, embora tenha também, é claro, uma perspectiva moderna. Afinal, histórias de humanos matando deuses não fazem parte da mitologia grega. Entretanto, tudo que circunda essa premissa parece muito condizente com a cultura que nós conhecemos.

Por exemplo, a capacidade de um mortal ferir um imortal com a ajuda de outro imortal está presente na literatura grega. Além disso, alguns deuses no Olimpo deixam claro que os deuses não podem existir sem os humanos e, caso não tenham sacrifícios ou pessoas para quem conceder seus dons, esses deuses perdem também sua razão de existir e sua relevância. Essa relação de mútua necessidade está presente também na cultura grega e está na base da visão do mundo em Apotheon.

Por tudo isso, esse jogo é capaz de criar uma aventura que, embora absurda para os padrões clássicos, parece retomar tantas coisas que quase soa plausível a sua existência dentro desse cânone. E isso cria uma experiência muito instigante para quem gosta dessa civilização antiga e gostaria de um jogo que soubesse entender essa cultura. E tudo isso se encontra resumido no sentimento de aventura épica que o jogo desperta.

A grande inovação em termos de cultura grega que Apotheon procura criar é justamente nesse conceito de épico que está na experiência do jogo. Segundo a mitologia, o Nikandreos pertence à chamada Raça de Ferro dos homens, que é a que se passa depois da raça dos grandes heróis gregos que a maioria das pessoas conhece, como Ulisses, Aquiles, Édipo, Hércules e vários outros.

Na Raça de Ferro, não existem propriamente heróis, mas sim homens dispostos a trabalhar ou a agredir. Não existe grande proeza em batalhas ou grandes viagens heroicas; existe apenas a vida comum. E aí é que se coloca a pergunta: como fazer uma história épica de uma pessoa comum?

Apotheon responde a essa pergunta de várias formas. A primeira é saber misturar perfeitamente a ideia de poder e de impotência na figura do Nikandreos. Ao mesmo tempo em que ele é capaz de vencer batalhas extremamente desfavoráveis, ele também é vencido com se não passasse de uma criatura insignificante.

A forma de ele superar essas situações é manter sua força de vontade e procurar a ajuda de outras divindades. Os deuses gregos são um grupo cheio de tensões e divergências, e não é raro um atrapalhar a vida do outro por diversão ou vingança. Nikandreos precisa saber usar essas divergências para conseguir aliados no momento certo.

Nikandreos não tem a força absoluta de um Hércules ou Aquiles, e também não tem a inteligência de um Ulisses e, por isso, ele frequentemente precisa de ajuda, ou então deve mudar suas estratégias. E essas situações ajudam a criar o Nikandreos como um herói falho, e que, ao mesmo tempo, representa os interesses de muitos, de um universo em que homens e divindades sabem conviver pacificamente.

Talvez isso não seja propriamente novo num jogo, mas é bem curioso dentro de uma obra que discute a cultura grega. É como um adendo interessante. Uma visão do que seria uma aventura épica na época menos épica da mitologia.

Se, por um lado, Apotheon relativiza bastante as habilidades do protagonista, criando uma história épica diferente, por outro, ela cria um mundo épico que dá uma ideia de imensidão e variedade. Quando Nikandreos ascende ao Olimpo, ele pode viajar de lá até os reinos de cada deus e cada um desses lugares funciona de uma forma diferente, segundo a divindade que o comanda.

Assim, o mundo de Atena exigirá raciocínio e habilidades de estratégia; o de Ares tem muito combate; o de Hades exige tomar cuidados com os mortos, e por aí vai. O jogador navega por um mundo 2D, com um estilo parecido com o chamado metroidvania, em que se tem um mapa imenso para explorar conforme se avança, mas Apotheon é um pouco mais linear do que a maioria dos jogos desse gênero. Por exemplo, não há necessidade de ficar retornando para os mesmos espaços, a não ser que seja para encontrar algum segredo opcional.

No geral, assim que o protagonista chega ao cenário novo, ele recebe indicações de objetivos a cumprir para poder acessar a área do deus. Esses objetivos variam em cada cenário e criam a sensação de variedade. Cada espaço de Apotheon tem objetivos específicos que condizem com o local. E o ápice desse processo é justamente o confronto com cada um dos deuses, que funciona de forma radicalmente distinta a cada vez. São momentos únicos, que eu não vou spoilar aqui, mas que levam em consideração a característica de cada inimigo para criar uma experiência memorável.

E, com isso, eu chego ao momento de falar do combate do jogo, que, para mim, cristaliza essa experiência do épico de uma raça falha que eu descrevi até então na história. Mecanicamente, Apotheon parece se inspirar muito em Dark Souls, o que se reflete bastante no esquema de controles, em que os botões de ombro e os gatilhos são usados para o combate.

Além disso, existe uma barra de stamina, que diminui sempre que se dá um golpe. Entretanto, enquanto em Dark Souls essa barra diminui ao fazer quase qualquer ação, em Apotheon ela só vale para o combate, mas ela demora muito mais para recarregar, e, conforme você chega ao final dela, a velocidade dos golpes fica menor.

A verdadeira influência de Dark Souls que eu vejo em Apotheon, porém, é o fato de que cada arma parece diferente e cada ataque exige planejamento e comprometimento, porque, caso ele falhe, pode gerar grandes consequências. Em Apotheon, isso se reflete nas mecânicas de distância de cada arma. Como cada uma delas tem um alcance diferente, é preciso saber atacar na hora certa ou o ataque simplesmente não vai tocar o inimigo.

Assim, um ataque de lança precisa ser executado a uma distância maior que um ataque de espada, que, por sua vez, se dá a uma distância maior do que um ataque de faca. Alie isso à movimentação veloz que jogos 2D normalmente têm, e os combates em Apotheon se tornam uma espécie de dança entre os lutadores, que precisam saber a hora exata de empenhar seu ataque, ou então serão abandonados pela sorte.

Esse sentimento se torna ainda mais forte com a dinâmica da durabilidade das armas. Toda arma em Apotheon pode quebrar e, na verdade, inevitavelmente quebrará. Se o jogador usá-la por muito tempo ou golpear contra escudos, ela quebrará. Isso faz com que o jogador precise se habituar a lutar de várias formas e com equipamentos de vários tipos. Até os escudos podem quebrar, e escudos distintos têm áreas de proteção diferentes. O combate em Apotheon é, então, bastante baseado em improviso.

Isso é o completo oposto do que existe nas histórias da Literatura Grega, em que cada herói tem um arco único, uma armadura especial, ou um escudo memorável. Cada arma dos grandes heróis gregos conta uma história e faz parte de quem o seu dono é. Como Apotheon é o épico de uma geração sem heróis, o Nikandreos não pode escolher que arma usar e os combates se tornam uma mistura de habilidade e improviso. Em vez de se devotar a uma arma só, é preciso ser eclético.

Por conta desses elementos todos, todo combate em Apotheon, mesmo os que parecem mais simples, podem se desenvolver em lutas complicadas, caso o inimigo ou o jogador façam uma ou outra ação inesperada. Mesmo sendo em 2D e contando com uma barra de vida e itens consumíveis para recuperar HP, o jogo tem uma mecânica de combate que soa muito realista e pouco heroica num sentido mais estrito.

Não parece muito heroico usar qualquer arma a seu alcance, de um escudo lendário a uma pedra no chão, ou comprar armaduras no ferreiro do Monte Olimpo, ou armas no mercado negro, ou arranjar itens especiais num baú escondido e que é preciso arrombar; entretanto, vencer um deus gigante ou com armas muito superiores é algo heroico e que dá uma sensação de épico que poucos jogos alcançam. Ajuda também que a música é excelente e cria uma sensação de grandiosidade a qualquer momento de luta.

Apotheon cria uma experiência interessantíssima: quem gosta de cultura grega vai ver nele uma interpretação moderna de mitos que ajudaram a criar a nossa civilização, e que cria, tanto na história quanto nas mecânicas, uma ideia de épico diferente, que alia grandiosidade e precariedade, força e fraqueza, superação e dependência. É um jogo dos mais interessantes e que, enquanto jogo que cria um universo consistente, é dos mais originais, mesmo que baseado numa cultura de quase três mil anos atrás.

Se eu tenho algo ruim a falar do jogo, é que ele tem problemas de otimização, que provocaram constantes crashes enquanto eu jogava no PS4 e aí eu precisava reiniciar o jogo. Isso nunca gerou perdas catastróficas, até porque você pode salvar praticamente em qualquer lugar, contanto que não esteja em combate, mas estar jogando e de repente ser expulso do jogo nunca é bom. Eu honestamente espero que um patch saia logo, porque a genialidade do jogo é grande demais para ficar limitada por esse tipo de coisa.

E era isso que eu queria dizer sobre Apotheon, provavelmente uma das mais interessantes coisas já pensadas com base na cultura grega nas últimas décadas.

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