segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Teoria: Dificuldades de discutir jogos como arte



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou fazer um vídeo de teoria que acumula uma série de reflexões que eu venho desenvolvendo há muito tempo, e que talvez não seja diretamente sobre jogos em sua estrutura, e sim sobre a comunidade que discute e reflete sobre jogos. Enfim, depois de muito pensar sobre isso, e até discutir comigo mesmo sobre se valia a pena ou não fazer um vídeo sobre isso um dia, uma discussão recente que está rondando a internet nesta semana acabou me levando a tratar desse assunto.

Na semana passada, o site Polygon publicou um trecho do primeiro capítulo do livro WTF is wrong with video games, do jornalista e crítico de jogos Phil Owen, e que basicamente afirmava que jogos têm arte, mas não são arte, porque a lógica dos video games atrapalha a coerência dos jogos e minimiza o controle que o artista pode ter sobre a experiência. Assim, em termos visuais e de história, um jogo pode ser arte, mas a jogabilidade sempre desestabilizaria a estrutura, o que arruinaria o jogo como arte.

Enfim, esse texto gerou muita controvérsia, com resposta diversas e pessoas argumentando que o crítico não entendia os jogos, que colocava regras excessivamente redutoras, que não importava discutir se jogos são arte ou não, etc. Se você tiver algum interesse em conhecer o texto, dê uma olhada na descrição deste vídeo e o link para ele vai estar lá. O único problema é que ele está em inglês.

De qualquer forma, este vídeo não é sobre esse texto, mas sobre um fenômeno muito maior que ele representa, e que eu vejo se repetindo na comunidade desde que eu passei a acompanhá-la em detalhe. E eu resolvi chamar esse fenômeno de “dificuldades em discutir jogos como arte”, que é o título deste vídeo, como você já percebeu.

Antes de começar a lidar com esse tema, eu queria avisar que eu vou fazer uma análise rápida da cobertura de jogos, tentando não mencionar indivíduos, e sim tendências que eu considero importantes. Eu confio nas pessoas que regularmente frequentam este canal, mas, se você eventualmente caiu aqui e não sabe o que esperar, saiba que eu não estou tentando ofender o seu gosto ou a sua pessoa; tudo isso é só uma reflexão, e que eu vou levar do início ao fim de forma civilizada.

Um último aviso: eu já falei sobre o assunto sobre jogos serem obras de arte aqui mesmo neste canal, e você pode ver a minha opinião em detalhe no vídeo que eu vou indicar na descrição. Neste vídeo, eu não vou entrar nesse mérito, mas eu queria já deixar minha posição clara para ter todos os pressupostos já explícitos.

A primeira coisa que a gente precisa tirar do caminho nessa discussão é o mérito de discutir se jogos são arte ou não. Muita gente coloca essa discussão de lado, afirmando que isso só advém de um desejo de validar os jogos para um público externo, e que o conceito de arte é amplo demais para ganharmos qualquer coisa com esse debate.

Eu não compartilho dessa visão. Na verdade, eu acho que essa discussão tem uma finalidade dentro da comunidade, porque, na verdade, uma parcela imensa da população que joga não leva os jogos a sério, não os trata com a dignidade que eles merecem. Eu não vou entrar no mérito de por que isso acontece, mas eu acredito que é um fato.

Um exemplo que eu nunca deixo de lembrar é o do Podcast do Uol Jogos, chamado Playground, em que eles frequentemente se referem a games como joguinhos, e isso vem de pessoas que efetivamente trabalham com jogos. Eu não consigo imaginar uma pessoa que trabalha com cinema chamar qualquer obra de “filminho”, ou algum fã de romances chamar um deles de livrinho.

Eu não acho que nós precisemos provar nada a ninguém de fora da comunidade, mas provavelmente muito do preconceito que nós sofremos ao longo da história permeou a visão de muita gente e leva a essa visão de que jogos são uma coisa menor, menos digna, e eu acho que um primeiro passo para mudar isso seria uma discussão sobre como jogos são arte. Não para ganhar um status externo, mas para que os próprios fãs passem a respeitar mais aquilo que eles consomem.

É claro que, nesse processo, as grandes forças motoras são as pessoas responsáveis pela cobertura de jogos, porque a exposição dessas pessoas é que dita um pouco os termos com que os debates se dão. Uma das grandes teorias sobre a comunicação humana diz que nós nos expressamos levando em consideração a forma como outros se expressaram antes de nós; a forma como nós vemos as pessoas discutirem um assunto molda o nosso raciocínio na hora de pensar sobre esse assunto, e é por isso que a gente constrói formatos de discussão.

Quando eu fui começar este canal, eu estudei um pouco como o Zangado fazia os vídeos dele, e pode ter certeza de que ele começou estudando outras pessoas, pegou emprestado os critérios de análise que ele usa, etc. É um processo tradicional da comunicação humana, e vale para tudo, na verdade, inclusive para o desenvolvimento de jogos, e não só para o comentário sobre eles.

Sendo assim, o papel de quem discute jogos como arte hoje em dia é essencial para introduzir uma discussão riquíssima e que tem um papel social importantíssimo na comunidade. Entretanto, muitas das pessoas que se dedicam a isso se mostram completamente despreparadas, cometem uma infinidade de erros conceituais e, ao final, fazem a questão toda parecer sem mérito algum.

Tomando o texto que apareceu no Polygon como exemplo, o autor se perde completamente na ideia de que a arte tem que ser absolutamente planejada, e que fazer com que tudo importe significa eliminar uma série de práticas que são voltadas para despertar certos sentimentos no jogador. Para ele, aquilo que está relacionado estritamente à jogabilidade não tem uma lógica adequada, e não casa corretamente com a história que se está tentando contar.

O que ele falha totalmente em perceber é que, embora uma barreira de inimigos ou de infectados, em The last of us, tenha uma função de envolver o jogador mecanicamente, e aja, em termos estritamente narrativos, como um obstáculo para o prosseguimento da história, essa barreira também funciona como uma forma de introduzir o mundo ao jogador, de fazê-lo sentir a adrenalina e o terror de ser perseguido e de estar em número menor do que os inimigos, e com meios escassos para lidar com eles.

O centro da mecânica é o sentimento que ela imprime, exatamente como a história; é isso que faz delas algo unificado. Quando o jogador precisa levar uma escada até a Ellie ou ajudá-la a atravessar a água, ele está passando por um momento banal da história, mas, em termos de mecânica, o jogo está incutindo o sentimento de vínculo entre o jogador e ela. E isso porque o jogo não permite que você a deixe para trás.

Durante o texto, o autor diz que um filme – e, por extensão, uma obra de arte – quer comunicar algo a quem a consome. Entretanto, isso é incorreto, ou correto apenas com uma importantíssima ressalva. Uma obra de arte não quer simplesmente comunicar; aliás, se a gente pensasse assim, a arte praticamente não existiria, porque, na maioria dos casos, escrever um tratado sociológico ou filosófico seria muito mais claro e, por consequência, efetivo na tarefa de comunicar.

Uma obra de arte consegue despertar um efeito que vai além da mensagem em si; ele é mais relacionado a um sentimento que é despertado em quem consome. Por isso, toda obra de arte fornece uma experiência estética, o que é algo que pode conter uma mensagem, mas não se limita a ela. Não à toa, algumas artes sequer têm uma estrutura narrativa ou verbal, mas ainda conseguem despertar efeito, sem necessariamente se limitarem a uma mensagem.

Num jogo como The last of us, a história e a jogabilidade estão trabalhando juntas, embora, em alguns momentos, elas pareçam estar no caminho uma da outra. Tudo trabalha para criar uma certa atmosfera, uma certo sentimento, uma certa experiência.

Ou seja, uma noção falha do que seria uma obra de arte coloca todo o texto do autor a perder. E eu só citei um dos problemas relacionados a essa definição dele, eu poderia ir bem mais longe, falando de como a verossimilhança parece tão afetada em jogos como nas antigas tragédias gregas, que se obrigavam a certas limitações e, assim, fugiam do conceito de naturalidade que a gente prega hoje, e mesmo assim mantêm seu status de obras de arte.

Eu também poderia falar de obras de arte que contam explicitamente com a liberdade do consumidor, como livros que permitem que o leitor siga uma ordem totalmente diferente de capítulos do que a estabelecida tradicionalmente, ou mesmo peças de teatro que chamam o espectador para participarem, o que efetivamente garante que nenhuma peça será igual a outra. Isso deixa claro que a ideia de obra de arte fortemente controlada sequer existe como absoluto hoje.

Enfim, tudo isso demonstra um fortíssimo desconhecimento das produções contemporâneas de arte, e que destrói qualquer possibilidade de o texto ser levado a sério como um comentário sobre arte, especialmente quando ele quer imprimir a ideia de que algo é ou não arte sem nem fazer ideia do que seja arte em primeiro lugar.

O mesmo vale para um argumento que eu ouvi na época em que fiz meu outro vídeo sobre o assunto: que jogos não poderiam ser obras de arte porque estavam inseridos no mercado e visavam ao lucro. Na verdade, inúmeros artistas reconhecidos produziram visando ao lucro, e isso nunca lhes tirou o status de artista.

Enfim, a tendência que me parece clara é que uma grande parcela de textos e vídeos discutindo jogos como formas de arte normalmente não está preparada para essa discussão, e geralmente acaba desembocando em problemas conceituais que acabam não dizendo quase nada de relevante sobre jogos ou sobre arte em geral.

É o problema contrário do texto do crítico de cinema Roger Ebbert, que escreve um texto inteiro sobre como três jogos não são obras de arte baseado apenas num vídeo deles, mas sem jogar um minuto sequer. Ele pode ter a teoria estética, mas não tem o contato verdadeiro com a obra.

Discutir obras de arte é uma prática com bibliografia de quase 2500 anos, o que significa que há muito a ser dito, e também muitas armadilhas para cair. Por isso, a primeira dificuldade para estabelecer essa crítica de arte voltada para jogos é justamente a quantidade de impropriedades ditas pelas pessoas que tentam estabelecer esse debate. É claro que há pessoas que sabem o suficiente para evitar incorrer nesses erros, e eu espero que elas ganhem cada vez mais voz, mas não há garantia nenhuma disso.

O fato é que esse ponto de vista de arte é essencialmente um nicho na nossa comunidade, e isso em grande parte porque ele é um tanto incompatível com o discurso predominante da cobertura de jogos como nós a conhecemos hoje, que é o que eu chamo de “guia de compras”.

Um guia de compras tradicional nada mais é do que um meio de comunicação que dá sugestões sobre o que é bom comprar ou não. Ou seja, ele vê um jogo, antes de tudo, como um produto, que é preciso avaliar em oposição a outros produtos, buscando benefícios, problemas de desempenho, inovações, etc.

Eu posso estar errado ao afirmar isso, mas eu acredito que a prevalência dessa forma de cobertura de jogos vem do período após a grande crise da indústria, na época do Atari. Um grande problema da indústria da época é que jogos de qualidade duvidosa estavam sendo lançados e jogadores insatisfeitos acabaram deixando de comprar, o que levou a um problema financeiro grave.

A solução para isso foi o nascimento de veículos que analisavam os jogos e indicavam os melhores, além de uma empresa como a Nintendo criar um selo de qualidade para garantir aos compradores que o jogo de fato funcionava. Some a isso também o fato de que foi nessa época em especial que o marketing das empresas de jogos decidiu que games deveriam ser voltados para crianças e você tem uma população com menos dinheiro, que precisa analisar antes de fazer qualquer compra.

Graças a essa história, a cobertura de jogos cresceu em volta de análises que levavam extremamente em conta alguns critérios que são completamente alheios a um ponto de vista artístico sobre jogos – o que, aliás, faz bastante sentido, já que a ideia de que jogos podem ser arte é posterior a esse período.

Essa origem criou esse ponto de vista tão específico com que as nossas análises são escritas ou gravadas. Se um dia esse modelo fosse transplantado para outras formas de arte, o choque seria imenso, porque ninguém prefere ler um livro só porque ele é mais grosso do que outro, ou comprar um CD em vez de outro só porque um tem mais canções. Não é nem um pouco comum ler um comentário sobre um filme, falando para um leitor esperar uma promoção para comprar o DVD, ou coisa parecida. Entretanto, é o que se faz com jogos.

Em última instância, isso criou uma dinâmica engraçada, em que jogos são muito mais vistos como produtos do que como obras de arte ou mesmo entretenimento. Um dos vídeos de que eu mais gosto aqui no Youtube mostra uma propaganda de jogo e uma de carro e é assustador como elas são parecidas. Quando acontece de um jogo ser discutido dentro de uma franquia, eu sinto um estranhamento ao ver um jogo ser analisado, com uma lista de novas features, como uma nova versão de um iPhone, por exemplo.

O resultado disso é que a imensa maioria das discussões sobre jogos são limitadas aos seguintes temas: análise de performance, DLC, microtransações, pré-venda, duração do jogo, existência ou não de modo single player ou multiplayer, relação preço x conteúdo, etc.

Fala-se muito mais sobre se os gráficos de um jogo são competitivos em relação a jogos parecidos do que se a escolha estética foi adequada; uma história ser curta ou não é muito mais assunto do que se ela é de fato boa. Graças a essa mentalidade, são raros os espaços para discutir jogos em profundidade, até porque isso demanda muito mais tempo e reflexão do que um youtuber ou um redator qualquer tem para escrever antes do lançamento do jogo.

Não é à toa que alguns dos melhores e mais inteligentes textos e vídeos que a cobertura de jogos têm a oferecer são voltados para jogos antigos: é porque houve tempo para se familiarizar com o jogo, pensar sobre ele, ver como ele se sustenta. Hoje em dia ninguém fala sobre a relação custo x benefício de Chrono Trigger, ou sobre se Castlevania: Symphony of the Night é datado por ser 2D. As pessoas hoje podem simplesmente falar sobre esses jogos, e é isso que torna a conversa mais rica, porque nós podemos falar da arte.

É claro que eu não estou querendo dizer que falar dos jogos como produto é algo errado. Na verdade, jogos são arte e são produtos, e devem ser tratados das duas formas. Aliás, é justamente isso que nós, como jogadores, esperamos: que jogos sejam tratados com cuidado e esmero pelos desenvolvedores, e não como um produto qualquer, voltado para tirar o máximo de lucro. Nós esperamos um balanceamento entre as duas coisas, e é muito engraçado que a própria mídia que cobre os jogos não faça o mesmo.

Talvez não haja realmente interesse numa crítica sob o ponto de vista da arte, e eu esteja apenas dando uma importância demasiada à forma como a nossa crítica é feita hoje. Mas, para mim, como eu disse, quando o público só conhece uma forma de discutir jogos, é só assim que ele discutirá. A partir de um momento muito específico, criou-se uma crítica de jogos com finalidades bem claras. Esse momento passou, mas ela permaneceu, e acabou determinando todos os jogadores e comentadores que vieram depois.

E, quando um jogador eventualmente alcança um tipo diferente de discurso, muito do que ele encontra são opiniões não embasadas, que acabam deturpando o que é uma discussão verdadeira sobre arte. Essas são duas dificuldades que trabalham juntas e sabotam as oportunidades de discussão de arte sobre jogos e é triste vê-las permanecer por tanto tempo. Eu acompanho jogos em detalhe há uns 3 anos e eu vejo essas tendências se repetindo constantemente.

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