sábado, 23 de janeiro de 2016

Bloodborne - Pensando sobre o jogo



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Bloodborne, jogo desenvolvido pela From Software em parceria com o Studio Japan da Sony e lançado em março deste ano, exclusivamente para o PS4. Ele é um jogo muito interessante, que representa um passo muito curioso e rico para a From Software, mas não é livre de problemas, como, aliás, costuma ser com os trabalhos do diretor Hidetaka Miyazaki, um desenvolvedor que passou rapidamente de mais um no mercado até ganhar status de gênio.

Antes de efetivamente falar de Bloodborne, eu preciso avisar que este vídeo se valerá frequentemente de comparações com Dark Souls, o último jogo dessa equipe da From Software e com o qual Bloodborne dialoga bastante em termos estruturais. Por isso, eu recomendo fortemente que você já tenha jogado Dark Souls antes de continuar, ou então, pelo menos, que veja o meu vídeo sobre o jogo, para poder saber de onde eu estou partindo com as questões que eu vou levantar.

Dito isso, podemos começar. Bloodborne é um jogo de RPG de ação em terceira pessoa que se passa numa espécie de Era Vitoriana, ou seja, com um estilo da Londres do final do século XIX. Entretanto, a cidade em que o jogo se passa, chamada Yharnam, não pode ficar na Inglaterra, já que o manual do jogo diz que ela fica bem longe ao leste. Portanto, o estilo vitoriano é mais um conceito do que propriamente uma referência geográfica para seguir.

O jogador controla um personagem customizável que chega a Yharnam perguntando sobre sangue pálido, algo que o jogo nunca explica exatamente o que é, mas eu falo desse estilo narrativo mais para frente. O fato é que, por conta dessa busca por informações sobre sangue pálido, o protagonista recebe uma transfusão de sangue de Yharnam, sofre uma espécie de delírio e acorda como um caçador, uma pessoa destinada a matar criaturas que vagam por Yharnam e que busca os mistérios do sangue que foram desenvolvidos na cidade.

Esse é o conceito inicial do jogo, mas, por hora, eu não vou me preocupar muito com isso. Vamos falar de gameplay primeiro. Ser um caçador significa atacar de forma rápida e mortal e, por isso, o foco de Bloodborne está muito mais na ofensiva do que em qualquer jogo anterior da From Software. Por isso, o seu personagem praticamente não tem meios de defesa, com apenas um escudo sendo oferecido e pouco incentivado.

Armaduras ou roupas mais resistentes também inexistem, e o jogador basicamente pode se proteger apenas com roupas. Considerando que, no jogo, todos os inimigos batem muito forte e cada ataque pode tirar um quarto ou um terço do HP do jogador se ele estiver andando por onde deveria andar, isso significa que, caso o caçador não tome a dianteira e destrua os inimigos antes de eles sequer atacarem, ele provavelmente está condenado à morte.

Essa mudança é algo fundamental na identidade de Bloodborne e provavelmente é o que mais afasta o jogo de Dark Souls. Dark Souls era um jogo que dava espaço para a construção de diversos tipos de personagens, que poderiam focar mais ou menos livremente em diversas estratégias para vencer os desafios. O jogador poderia focar em ataques rápido, em defesa e ataques cuidadosos, em magias, em ataques a longa distância com arco e flecha, etc.

Em Bloodborne, esses estilos foram praticamente unificados num novo jeito de combater, em que absolutamente tudo precisa ser pensado em termos de ofensiva. Para ressaltar isso, o jogo só tem como armas principais objetos que possam causar dano por contato, como espadas, martelos, machados, chicotes, etc. E as armas que permitem ataques à distância, na verdade, tem a função principal de servirem como chance de desarmar os inimigos: no momento em que um inimigo vai atacar, o jogador pode acertar um tiro nele e esse tiro, embora não tire muita vida, deixa o adversário atordoado, o que permite um golpe extremamente forte.

Em grande medida, eu acredito que essa redução de opções seja um esforço de concisão da parte da From Software. Sendo bem sincero, eu sempre acreditei que grande parte dos estilos que Dark Souls permitia eram muito pouco adequados ao resto do jogo, no sentido de que o jogo não sabia se comportar bem com eles, especialmente os ataques a distância.

Quando eu joguei Dark Souls, eu decidi logo no começo a ser um arqueiro e construí toda a minha experiência em cima disso. Porém, em vários momentos o jogo ficou seriamente decepcionante para mim, porque os inimigos não sabiam se comportar contra um adversário que ataca a distância, e ficavam parados, esperando serem mortos enquanto eu não entrava no raio de ação deles.

Entretanto, o combate corpo a corpo sempre foi um forte dos jogos modernos da From Software, e sempre tiveram um fator estratégico, que recompensava decisões inteligentes e precisas, e muita gente defendia que o combate com armas brancas era, por assim dizer, o jeito certo de jogar Dark Souls.

Bloodborne me parece uma admissão de que a própria From Software pensa o mesmo. É como se ela deixasse para trás tudo que não funciona direito nos jogos anteriores e abraçasse a mecânica que parece mais adequada ao seu estilo de design: o combate corpo a corpo.

Mas, isso não é um problema ou uma admissão de derrota. Uma vez que o estúdio chegou a essa decisão de focar nesse tipo de combate, houve toda uma reflexão para encontrar uma forma de submeter todas as mecânicas do jogo a esse estilo e torná-lo algo extremamente bem executado e empolgante. Isso se tornou uma oportunidade para o estúdio refinar a sua fórmula consagrada, e gerou vários desdobramentos em termos de gameplay. A primeira dessas consequências é o que eu já citei: a retirada de meios eficazes de defesa, para incentivar que o jogador sempre queira atacar primeiro e não dê chance para os inimigos sequer notarem a presença dele.

Outra mudança decorrente disso vem do sistema de recuperação de vida. Bloodborne conta com itens que recuperam a vida do protagonista, mas eles não podem ser armazenados em número exorbitante, o que demanda que o jogador use outro tipo de recurso para recuperar sua saúde. Quando o protagonista leva um golpe, ele tem a chance, por alguns segundos, de recuperar o HP perdido se conseguir atacar o inimigo de volta. A cada golpe, ele recupera um pouco de HP. É como se o sangue do inimigo curasse o protagonista, o que fica bem claro quando a roupa dele fica cheia de sangue.

Essa mecânica, obviamente, foi criada para incentivar o jogador a se arriscar, em vez de rolar desesperadamente para trás, tentando se esconder. Se o jogador sempre fizer isso, vai ficar sem itens de recuperação rapidamente. É preciso tentar recuperar o HP perdido e isso significa agredir o adversário o mais rápido possível.

Uma outra mecânica que Bloodborne tem para incentivar ainda mais isso é o desvio para frente. Em Dark Souls, é normal desviar para os lados ou para trás para escapar de um inimigo enquanto a mira está focada nele. Isso permite que o protagonista desvie do ataque, graças a alguns segundos de invencibilidade, mas também frequentemente afasta o personagem do inimigo.

Em Bloodborne, é possível desviar em direção ao inimigo quando ele ataca, o que, considerando que o inimigo se joga para frente para atacar, acaba deixando o protagonista atrás do adversário, o que possibilita ficar numa posição extremamente vantajosa para atacar. Essa é uma mecânica sutil, mas que torna as lutas extremamente mais intensas e arriscadas; afinal, o instinto de qualquer jogador, ao ver um ataque vindo, seria se afastar. Bloodborne quer sempre que o jogador se aproxime do inimigo.

Essa mecânica é muito interessante e joga fortemente com o lado psicológico dos jogadores. Um exemplo em que isso fica muito claro é em batalhas contra certos chefes. Eu tive a oportunidade de vencer um certo chefe em modo cooperativo mais de quarenta vezes e eu sempre via os jogadores que eu ajudava quase com medo do inimigo, mantendo muita distância, com muita cautela, como se ele fosse intimidante demais.

Eles até estavam certos nisso, porque, para eu ter sido chamado para ajudar, provavelmente aquele chefe já deveria ter matado o jogador mais de uma vez, talvez várias. Entretanto, para vencer, era preciso atacar com tudo, não ter medo, desviar no último momento. Como eu já estava acostumado a vencer aquele chefe, eu ia para cima sem problemas, mas os outros jogadores ficavam fortemente intimidados e, por isso, era eu quem acabava causando a maior parte de dano na batalha.

O fato é que o jogo coloca esse dilema psicológico: o jogador tem medo de agir, porque alguns ataques inimigos já podem significar morte, mas, se ele não agir, aí a morte é certa. É a mistura perfeita de terror com fantasia de poder: o personagem é frágil frente ao mundo em que ele transita, mas a única chance de ele sobreviver é enfrentando esse medo.

Para tornar esse medo uma coisa mais palpável, Bloodborne se vale das estratégias já testadas em jogos anteriores do estúdio, que são o fato de que os checkpoints são escassos e morrer significa ter que voltar um bom pedaço do caminho, e o fato de que a sua moeda de troca no jogo para melhorar armas, subir de nível e comprar itens pode ser perdida caso você morra sem recuperá-la no lugar em que morreu pela última vez.

Eu não me importo muito com a questão da moeda de troca, chamada de ecos de sangue em Bloodborne, porque o jogo é sempre voltado para a técnica do jogador, e não tanto para subir de nível. Os elementos realmente importantes, que são as evoluções de armas, costumam ser bem baratos. Além disso, os itens realmente importantes não se perdem ao morrer, apenas os consumíveis.

Entretanto, a mecânica de voltar para o checkpoint no começo da fase é uma questão polêmica antiga no design dos jogos da From Software, mas eu tenho a impressão de que ela vem se tornando menos e menos um empecilho e está começando a servir o seu verdadeiro propósito de forma mais pura, que é criar o sentimento de tensão no jogador para que ele lute por sua vida com mais intensidade, além de incentivar a exploração.

Eu me lembro, no meu vídeo sobre Dark Souls, de ter oferecido duas opções à From Software para consertar o problema de os checkpoints serem distantes, o que fazia com que o jogador ou ficasse muito frustrado ou simplesmente saísse correndo pela fase, evitando os inimigos. Para mim, ou o jogo colocava checkpoints diretamente para os chefes, ou tornava os inimigos comuns mais difíceis, de forma que o jogador não sentisse que, com exceção dos chefes, tudo estava trivializado.

A opção que a From Software escolheu foi colocar as lanternas, que são os checkpoints de Bloodborne, mais perto dos chefes, mas não de um jeito óbvio e direto. O jeito escolhido foi melhorar ainda mais o level design e oferecer a possibilidade de destrancar atalhos que levam ao chefe em questão de segundos.

Assim, existe sempre um caminho longo que leva ao chefe da fase, e que o jogador trilhará sempre que entrar naquele local pela primeira vez, mas, se ele for corajoso o bastante para explorar todas as rotas, ele pode encontrar passagens que encurtam o caminho até o chefe e evitam praticamente todos os inimigos.

Com isso, dois efeitos principais são alcançados: o primeiro é que se reforça essa mecânica de terror versus fantasia de poder que eu descrevi antes, porque o jogador vai ter sempre medo de avançar para um local desconhecido, com medo do que se esconde em cada beco, mas terá um incentivo imenso para fazê-lo; afinal, mudar de meia hora para meio minuto o caminho até o chefe é algo tentador demais.

O segundo efeito é que o espaço vira um local mais vivo e plausível, em que diversos caminhos são possíveis e ligam lugares diferentes, como uma cidade com certeza deveria ser. É sempre incrível andar por vinte minutos sem saber para onde se está indo e, ao abrir um portão, descobrir que se está logo no começo outra vez. É algo que só faz o jogador respeitar o level design do jogo, porque ele consegue, ao mesmo tempo, deixar o jogador completamente perdido e assustado, mas ainda ser amarrado de um jeito tão consistente em todas as áreas. É algo que torna a imersão muito maior.

E imersão é uma coisa que esse jogo tem aos montes, porque os cenários, além de absolutamente lindos, são sempre aterrorizadores e cheios de detalhes, demonstrando um cuidado muito grande e uma riqueza que faz pensar que o jogador está realmente visitando um local em que pessoas realmente viveram e que tinha sua própria cultura e suas crenças.

E esse cuidado não fica só no design, mas se estende também para a jogabilidade: cada fase tem características fortemente distintas, muitas vezes com armadilhas para surpreender estrangeiros desatentos, e inimigos que causam terror só de olhar, e ainda mais quando eles atacam. Cada inimigo pertence a um certo espaço, faz sentido dentro dele e ajuda a entender um pouco mais o local. A localização dos itens funciona exatamente igual: tudo faz sentido e contribui para a construção daquele mundo.

E, como a relação terror versus fantasia de poder está no centro do jogo, ela não poderia se ausentar do visual de Bloodborne. No caso, isso fica bem claro nos ambientes terríveis que o jogador visita e nos inimigos medonhos que ele enfrenta, e que contrastam tão fortemente com diversos elementos que fazem do protagonista uma figura igualmente imponente.

Assim, as roupas disponíveis no jogo têm um ótimo gosto e demonstram, ao mesmo tempo, uma sobriedade e uma imponência bem claras, o que é parte da visão que nosso tempo tem da indumentária do final do século XIX. O principal desse efeito de imponência vem, entretanto, das armas do protagonista, que dão sempre a impressão de instrumentos extremamente inventivos e efetivos na luta contra as bestas. E, como não poderia deixar de ser nesse jogo, essa imponência se reflete também no gameplay.

Toda arma principal de Bloodborne é, na verdade, duas: elas têm uma versão básica, que geralmente significa ataque comum e um alcance razoável, e também uma versão transformada, que faz com que a arma ganhe algumas habilidades extras, embora o jogador tenha que abandonar o uso da arma de fogo. Assim, uma espada pode se transformar num martelo que causa muito mais dano; uma bengala se transforma num chicote capaz de atingir vários inimigos de uma vez e a uma distância bem maior; uma espada pode ficar com uma arma de fogo acoplada e disparar tiros, e por aí vai.

Isso faz com que toda arma de Bloodborne seja um artefato muito complexo e impressionante, que demanda um certo tempo para dominar inteiramente e que tem uma sustentação em si mesma; como essas armas têm uma lista de opções de ataques bem complexas, nenhuma delas se torna obsoleta com o tempo; todas são viáveis durante o jogo todo. Eu finalizei o jogo com as armas com que eu comecei e não senti nenhuma dificuldade maior por conta disso.

É claro que, para isso funcionar direito, o jogador tem que ficar atento aos possíveis upgrades das armas, que usam itens de reforço e, principalmente, as chamadas gemas de sangue, que são itens coletáveis que o jogador pode acoplar à sua arma, o que dá uma série de bônus, seja de ataques simples, seja de elementos, seja de escalamento de força com certo atributo do personagem.

E, falando em acoplar itens para ganhar habilidades especiais, o protagonista de Bloodborne pode ter runas gravadas em sua mente, que dão habilidades e resistências únicas a ele, o que torna esse jogo bastante estratégico, demandando bastante planejamento, especialmente contra os chefes do jogo.

Aliás, os chefes de Bloodborne são um capítulo à parte, porque eles realmente elevam o potencial de narrativa e de teor épico e aterrorizante ao nível máximo que o jogo permite. Eles são, por assim dizer, a realização do que Bloodborne é em termos de mecânica e daquilo que o jogo quer do jogador.

Todos os chefes são criaturas bastante agressivas e, caso não sejam, são cercados por outras criaturas agressivas, e exigem do jogador aquela coragem para enfrentar o inimigo de frente e desviar na última hora, ou de se enfiar no meio de um monte de criaturas ameaçadoras para golpear apenas uma delas, ou para enfrentar um chefe enquanto se desvia de outros, etc. Os inimigos atacam sem parar e são extremamente agressivos.

Agora, o que complementa e torna essas batalhas a coisa mais interessante que a From Software já fez em termos de chefes é o fator surpresa que cada batalha reserva. Conforme o jogador progride na batalha e causa dano ao chefe, ele pode mudar de padrão, o que geralmente significa que ele baterá ainda mais forte ou terá opções mais imprevisíveis de ataque. Assim, um inimigo que só usava magias pode partir para o ataque corpo a corpo, um guerreiro sozinho pode invocar criaturas para ajudar, um inimigo pode começar a provocar algum tipo de status negativo no jogador, etc.

São muitas opções e, nesses momentos de mudança de padrões, o jogador nunca sabe o que esperar, e a única reação é o medo, que aumenta com os gritos horripilantes que acompanham esses momentos de transformação. Porém, é justamente nesses momentos que se torna fundamental ser agressivo, e aí novamente retorna a dualidade entre terror e fantasia de poder.

Mas, em Bloodborne nem tudo é terror e violência, pois o jogo tem uma área segura que é exatamente o oposto disso tudo, chamada de sonho do caçador, de onde você pode se teletransportar para qualquer lanterna que já tenha encontrado. Lá, o jogador pode evoluir e reparar suas armas, gerir seus itens, e subir de nível com a ajuda de uma boneca que se torna viva após o jogador ganhar um ponto de discernimento, que é um atributo bastante misterioso no jogo, e, no geral, permite que o jogador veja coisas antes invisíveis e se defronte com inimigos com padrões de ataque mais complexos, além de permitir chamar outros jogadores para ajudar.

Esse sonho do caçador é um belíssimo local, cheio de flores e com um NPC que parece completamente dedicado ao jogador, que realmente se preocupa com o sofrimento e a busca do protagonista. Esse NPC é a boneca. Há também outro NPC lá, chamado Gehrman, que dá umas breves dicas de lugares para ir em Yharnam.

Aliás, NPCs são uma coisa bem rara em Bloodborne. Praticamente todos eles estão escondidos atrás de janelas e são hostis ao fato de você ser estrangeiro e estar na rua numa noite de caçada. Alguns, entretanto, podem se provar úteis em termos de informação ou mesmo na sua busca principal. Há também NPCs que estão nas ruas, mas eles geralmente ficam em áreas pouco óbvias e precisam ser realmente procurados, como acontece com tudo em relação à história desse jogo.

Como em Dark Souls, Bloodborne escolhe como forma narrativa os meios mais indiretos possíveis, como colocação de itens pelo cenário, falas misteriosas de NPCs, detalhes visuais do cenário, presença de certos inimigos em certos locais, etc. Tudo isso é excelentemente bem executado e, como eu disse no meu vídeo sobre minimalismo, cria um sentimento de conquista ao obter alguma informação valiosa, que ainda vai precisar ser interpretada com tudo que o jogador já tinha coletado anteriormente. A história, em Bloodborne é quase que arrancada das mãos dos desenvolvedores e isso cria um efeito de engajamento que muitas histórias contatadas de forma direta não conseguem.

Contudo, isso não é isento de problemas, como eu já disse em outros vídeos sobre jogos da From Software: primeiro, grande parte das informações do jogo vem de descrições de itens, mas essas descrições não fazem sentido no mundo do jogo, já que o seu personagem não tem como saber todas as coisas ali escritas no menu; cria-se uma dissonância entre a coerência daquele mundo e o que o jogo está fazendo apenas para satisfazer a curiosidade do jogador. Num jogo tão coerente, isso é um defeito doloroso.

Segundo, esse método indireto de contar sua história faz Bloodborne perder grande parte da sua força dramática, já que ouvir falar da vida de um personagem é muito menos provocador aos sentidos do que efetivamente ver os acontecimentos da vida desse personagem se desenrolarem. Por isso, personagens de grande potencial dramático em Dark Souls e Demon’s Souls acabaram sendo relegados a pessoas importantes de quem praticamente só se ouviu falar.

Contudo, é preciso dizer que Bloodborne dá um passo na direção correta para solucionar essa questão, ou, pelo menos, para tentar conciliá-la com o estilo da From Software criar suas narrativas. É importante dizer isso porque a impressão que eu sempre tive foi que esses desenvolvedores sempre tiveram claras as consequências das suas decisões estéticas, mas acreditavam demais nelas para mudarem. São sacrifícios conscientes de artistas convictos de sua estética.

Com o tempo e o lançamento de vários jogos, entretanto, o estúdio tem tentado conciliar os estilos, ou absorver algo já praticado, mas que aparentemente discorda do estilo estabelecido pelos jogos da empresa. Assim aconteceu com o avanço da mecânica dos atalhos, e isso vale um pouco para a história, embora, nesse caso, as coisas caminhem a passos um pouco mais lentos.

A principal diferença que se vê, em termos de história, quando a gente compara Bloodborne e os jogos da série Souls é que, em Bloodborne há uma maior riqueza dramática na história principal. Em Dark Souls, por exemplo, tudo que era importante para o mundo já tinha acontecido há muito tempo, e restavam apenas ecos desses acontecimentos pelo mundo.

Em Bloodborne, há coisas realmente importantes acontecendo, e o protagonista é parte fundamental em vários aspectos: ele ajuda NPCs em suas missões, atrapalha os planos de outros, e realiza certos atos que parecem fundamentais naquele mundo. Por isso, eu sempre senti uma ligação dramática muito maior com a história de Bloodborne do que com qualquer outro jogo da série Souls.

Entretanto, curiosamente, Bloodborne é o jogo com os personagens menos interessantes já produzidos pela From Software. As missões deles parecem muito curtas e simples, e o que não é curto e simples está mergulhado num mistério tamanho que qualquer tentativa de entender acaba exigindo uma enorme dose de especulação.

Isso pode parecer algo ruim, porque empobrece o mundo do jogo, mas a questão é que, nesse sentido, Bloodborne é um jogo muito diferente de Dark Souls. Embora ambos sejam alegóricos, Dark Souls parece extremamente voltado para um significado mais amplo, buscando mais falar de grandes movimentos do mundo e do futuro do universo; já Bloodborne parece se debruçar mais sobre indivíduos com missões muito específicas, com pretensões únicas. Não é exatamente um mundo integrado; é mais uma coleção de indivíduos.

Isso, de alguma forma, se liga à estética do jogo, que passa do medieval de Dark Souls, que ressoa ainda algo da filosofia que liga destino individual e futuro do universo, e agora se torna o vitoriano de Bloodborne, evocando um dos locais e épocas em que o mundo e o sujeito modernos nasceram. É algo totalmente diferente, e tem suas implicações na história.

Mas, para deixar isso claro, eu vou precisar mergulhar profundamente num oceano de spoilers, o que é sempre necessário num jogo em que as informações são tão bem escondidas. Nem os finais do jogo vão passar ilesos. Por isso, se você não quiser saber demais sobre o jogo, eu recomendo que você pare por aqui. De qualquer forma, eu acho que já deixei bem claro como funciona o universo e as mecânicas de Bloodborne, e como tudo está ligado a essa dualidade de terror versus fantasia de poder, o que cria sentimentos conflitantes muito profundos e provocadores. Eu agradeço por você ter visto até aqui e a gente se vê numa próxima análise.

Vamos, agora, então, a um debate mais profundo sobre a história de Bloodborne, que, claro, é fruto das minhas especulações sobre o game. A primeira coisa a se notar sobre a história do jogo é que o protagonista tem uma missão muito específica, e provavelmente está ligada somente a ele: muitos jogadores apontam que sangue pálido é uma espécie de doença, mas eu não vi nenhuma confirmação disso nas informações que eu encontrei.

De qualquer modo, o que importa é que a busca do protagonista diz respeito a ele mesmo apenas, já que ninguém é mencionado nunca. Mesmo conforme o jogo progride e o foco parece mudar da busca do sangue pálido para a eliminação da fonte do pesadelo (o que, aliás, pode muito bem significar a mesma coisa), o interesse do personagem parece sempre a sua própria libertação, e nada durante o jogo oferece uma missão maior.

O Gehrman manda o personagem principal matar feras porque é isso que um caçador faz. Contraste isso com a missão que o Oscar passa no começo de Dark Souls: é o pedido de um moribundo que te libertou da prisão. Pense também na conversa com o Monumental em Demon’s Souls: ele está te pedindo para salvar o mundo. Em Bloodborne, nada disso aparece; a única coisa que te motiva é a busca relacionada ao sangue pálido, que, segundo o velho que você encontra no começo do jogo, pode ser encontrado ou combatido caso o protagonista descubra os segredos de Yharnam, ou seja, explorando aquele mundo.

O caráter vago desse sangue pálido se justifica pelo fato de que não saber exatamente qual é a relação do jogador com ele permite vários finais; talvez ele esteja tentando se salvar do sangue pálido, mas talvez ele esteja procurando os poderes escondidos nele. Como a primeira nota do jogo diz, buscar sangue pálido é necessário para transcender a caçada. O que é transcender, entretanto, é um mistério.

Uma das grandes questões de Bloodborne é se o mundo de Yharnam é algo que se passa apenas na imaginação ou nos sonhos do protagonista. Eu acredito que seja tudo realmente no plano do inconsciente, mas, dentro das regras do mundo do jogo, isso não quer dizer que tudo seja uma ilusão ou fruto do subconsciente do personagem. O inconsciente, em Bloodborne, é o caminho para verdade secretas, coisas que não é possível ver normalmente.

E são essas coisas que não se pode ver normalmente que todos estão buscando lá. O fato é que toda a sabedoria sobre sangue desenvolvida em Yharnam vem de criaturas estranhas e não humanas, chamadas Great Ones, ou Eminentes. Num passado remoto, os Great Ones tiveram contato com uma sociedade anterior ao tempo em que se passa o jogo. Por algum motivo, essa sociedade foi destruída e Yharnam foi construída sobre seus escombros.

Depois de um bom tempo, estudantes encontraram o conhecimento sobre o sangue enterrado nas catacumbas e começaram a estudá-lo. Após esse conhecimento primeiro, os pesquisadores se dividiram conforme suas crenças: alguns quiseram apenas pesquisar, e outros resolveram usar seu conhecimento para outros fins, muito mais perigosos.

O fato é que a sede de conhecimento e transcendência dessas pessoas é o que move todo o mundo de Bloodborne, porque praticamente tudo que acontece lá é motivado pelo esforço de entrar em contato com os Great Ones. A ideia é ser transformado em um Great One também, e obter todo o conhecimento indizível que só eles possuem.

Entretanto, isso não é exatamente fácil, porque os Great Ones são criaturas que raciocinam de formas muito diferentes. A maioria deles não age de uma forma claramente discernível, mas, segundo o jogo, independente da forma como eles escolhem proceder, todos os Great Ones estão em busca de substitutos para seus filhos perdidos.

No entanto, a relação que esses Great Ones mantêm com as figuras que eles escolhem tutelar nunca é exatamente saudável ou regrada por uma ética. Não parece haver um carinho. Os dois únicos Great Ones que demonstram apego a alguma criatura ou a roubaram de outra pessoa ou mantêm o objeto de apego preso, sem liberdade alguma. Portanto, eles não são apenas monstruosos na sua aparência, mas também no seu modo de proceder. Eles são tudo, menos deuses bondosos; se eles têm um traço comum, é serem bem egoístas.

E egoísmo parece a palavra-chave para entender todo o procedimento dos personagens de Bloodborne: para encontrar a satisfação e a transcendência que buscam, todos os indivíduos e subgrupos em que a Igreja da Cura se dividiu buscam o sacrifício de alguém para poder evoluir: o Coro sacrifica órfãos para entrar em contato com os Great Ones; a escola de Mensis transforma todos os cidadãos de Yharnam em feras só para poder entrar em contato com um Great One; mesmo a civilização antiga, de Pthumeru, provavelmente obrigou sua própria rainha a ceder seu filho para que um Great One se aproximasse.

Contudo, Bloodborne segue um pouco das mensagens do escritor H. P. Lovecraft, cujas obras serviram de modelo para o argumento e a estética do jogo, e faz com que, ao buscar essa transcendência sombria, os personagens não se tornem mais do que humanos, e sim menos. A única criatura humana que se tornou Great One no jogo foi Rom, que, na verdade, se tornou uma criatura apática que sequer parece pensar.

O criador da Igreja da Cura, Laurence, parece ter se tornado fera antes de morrer; pelo menos é o que se depreende do fato de o crânio dele não ter formato humano. E, por fim e mais importante, o final que as pessoas consideram como verdadeiro mostra o protagonista se transformando num Great One, o que deveria ser algo realmente poderoso e imponente, mas, na prática, significa que ele se transformou numa lesma gigante.

Aliás, eu não consegui ver esse final sem sentir um diálogo meio forte com o final de Shadow of the Colossus e, considerando que o diretor de Bloodborne considera Ico como um dos jogos mais importantes para a sua visão de game designer, eu acho que nós podemos perseguir essa pista. Aí vai um baita spoiler sobre o final de Shadow of the Colossus.

No final, o jogador vê a garota Mono ressuscitar e segurar Wander no seu colo, já que ele agora é um bebê. E, com isso, é como se o mundo recomeçasse, com uma criatura que tem o bem e o mal, o caos e a ordem dentro de si. Em Bloodborne, nós temos uma cena parecida, com a boneca segurando o protagonista, agora transformado em lesma gigante, ou em Great One.

A boneca, que sempre foi uma criatura feita completamente para agradar o jogador e fornecer um conforto naquele mundo tão sombrio, passa a cuidar do protagonista, mas ela não tem nada a oferecer à lesma além de um amor que ela é compelida a dar ao seu criador. Ela não oferece o contraponto à malignidade típica de um Great One e que pode estar na mente da lesma. Ou seja, tudo que o protagonista conseguiu nesse processo foi se transformar numa coisa que, na melhor das hipóteses, é simultaneamente menos e mais do que humana e fez a realidade daquele sonho se curvar aos seus pés, sem perspectiva de um conflito que o faça crescer e respeitar o outro.

Em outras palavras, tudo que o protagonista consegue nesse final é ver seu desejo egoísta e egocêntrico realizado e, nesse processo, ele se torna um monstro. Talvez o mais poderoso dos monstros daquele mundo, mas, ainda assim, um monstro, como aconteceu com todos os outros que tentaram o mesmo em Bloodborne.

Por conta disso tudo, eu tenho uma divergência séria com o resto da comunidade, e acredito que o final bom do jogo é o considerado pior, ou seja, aquele em que você acorda na Yharnam real sem lembrar de nada. Na verdade, eu acho que o outro é considerado melhor só porque é o mais difícil de alcançar e que envolve matar o maior número de chefes, ou seja, é algo que a história dos jogos nos ensinou a avaliar como verdadeiro. Afinal, se um jogo tem dois final, um fácil e um difícil, o difícil é que é o verdadeiro, certo?

Mas não é assim em Bloodborne. Na verdade, Demon’s Souls e Dark Souls também tinham dois finais e ambos só diziam respeito a que rumo o jogador queria dar ao mundo em que se passa a história. Em Demon’s Souls, a escolha era entre salvar o mundo ou se tornar o demônio supremo; em Dark Souls, era entre manter o fogo e a civilização vivos ou começar uma era de Trevas como o senhor supremo.

Em Bloodborne, o jogador tem duas escolhas também: fugir do sonho que o mantém preso àquele mundo ou sucumbir à sua ganância e incorrer no mesmo erro que quase todo NPC do jogo comete. O final em que o protagonista se transforma é a segunda opção. A primeira é libertadora, e está em consonância com a obra de Lovecraft, em que quem obtém informações sobre os cultos sombrios e as criaturas monstruosas não quer se aprofundar no assunto. Na verdade, esquecer é sempre o desejo maior nesses casos.
E é isso que o primeiro final oferece: libertação. O protagonista entrou em Yharnam por seja lá qual for o motivo e, nesse processo, viu muita coisa relacionada ao sangue pálido. Cabe a ele, então, escolher se ele continua essa busca ou se dá por satisfeito com tudo que passou. Se ele aceita seus limites, ele acorda intacto em Yharnam e vê um belo nascer do Sol; se ele não aceita, ele está destinado a ser um monstro.

E esse, para mim, é o ponto mais interessante de Bloodborne: a história parece bastante ligada às formas como os sujeitos lidam os seus limites enquanto indivíduos. Eles podem se dar por contentes desde sempre, e eles podem partir em busca de superação. Dentre esses que buscam algo, um grupo vai continuar sempre em frente e não parará diante de nada, destruindo quem estiver em seu caminho para construir um mundo que seja inteiramente seu; afinal, uma pessoa que não quer limites imagina que tudo no mundo pode ser seu ou ser feito conforme a sua vontade.

Contudo, existem, dentre os que buscam, aqueles que, num determinado momento, aceitam seus limites e querem apenas prosseguir dessa forma, buscando outro tipo de coisa no mundo, e não apenas cultivando seu próprio poder. Esse tipo de indivíduo é a figura moderna de sujeito, é a pessoa que sai ao mundo para conhecer seus próprios limites e cultivar sua personalidade, mas que depois se encaixa como pode. É o tipo de personagem que ganha popularidade nas obras de arte do final do século XIX, a mesma em que Bloodborne parece se passar.

E, finalmente, eu posso responder sobre Bloodborne a pergunta que eu fiz sobre os jogos da From Software no meu vídeo sobre minimalismo: por que a atmosfera desses jogos é tão opressiva e indiferente aos esforços do jogador? Em Bloodborne, ela é assim porque o jogador experimenta uma alegoria do que significa viver num mundo de todos contra todos, um mundo em que ninguém se incomoda com limites.

Isso é algo aterrorizador, e é por isso que muitos, no mundo real, têm medo de se relacionar com as pessoas, e até de sair de casa. O mundo é um lugar cruel, e o homem é o lobo do homem, como diria um artista romano. E, não à toa, a estética da imensa maioria dos monstros de Bloodborne está ligada à figura do lobo.

Entretanto, se você se encaixar a essas regras e lutar com suas forças, ignorando limites como os outros, você pode vencer. É essa a premissa do mundo moderno, e também a de Bloodborne. Contudo, se você for assim, será essencialmente um solitário, um egocêntrico, e perderá muito do que faz de uma pessoa um ser humano, exatamente como o protagonista, que talvez esteja no topo da cadeia alimentar, mas perdeu sua humanidade.

Agora, com a correta dose de busca por definir sua personalidade e seus limites, e sabendo se encaixar no mundo, talvez algo novo seja criado, talvez um novo Sol raie. Por isso, a história e as mecânicas de Bloodborne, que jogam com a ideia do terror e da fantasia de poder, da ameaça do não humano e do desejo de vencer a todo custo, acabam criando uma visão de mundo sólida, e uma ética extremamente atual para se discutir. E, por isso, em seus melhores momentos, Bloodborne alcança quase o poder de significação de um jogo como Shadow of the Colossus.

Contudo, a From Software ainda precisa aprender melhor a cultivar a personalidade dos NPCs, fazer com que a dramaticidade da história aumente um pouco mais e priorizar um pouco mais a concisão em certos casos, especialmente nos chamados Labirintos dos Cálices, que são missões opcionais que Bloodborne oferece na forma de labirintos randomizados e que, além de muito tediosos em termos de design, chegam até a conflitar com o mundo apresentado no resto do jogo.

Bloodborne é uma verdadeira obra-prima, dessas que marcam história em termos de articular trama e jogabilidade para criar algo grandioso e memorável. Entretanto, como condiz com o estilo da From Software, ele não é um jogo livre de falhas e problemas, mas é um esplêndido passo na direção de criar algo que beire à perfeição. A obra-prima de Hidetaka Miyazaki ainda está por vir, mas ele parece empenhado em criá-la.

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