sábado, 23 de janeiro de 2016

Teoria: A importância e as dificuldades do historicismo em jogos



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje é dia de mais um vídeo de teoria, agora falando de uma questão que se tornou bastante debatida na cobertura de jogos nos últimos tempos, mas que, na verdade, é já um problema bastante antigo, e que é o historicismo em relação à nossa indústria, ou seja, o esforço para fornecer uma visão histórica sobre o mundo dos jogos.

Como eu falei, essa é uma questão muito relevante, por motivos que eu vou explicar daqui a pouco, e também é algo que é sistematicamente ignorado ou pouco conveniente para uma série de interesses da nossa indústria. Por isso, este vídeo vai falar um pouco da importância dessa questão, e também dos problemas que ela enfrenta.

Mas, antes de eu entrar na discussão em si, cabe mencionar o que foi que causou o aparecimento desse debate numa intensidade tão grande como se tem visto, especialmente na cobertura de jogos em língua inglesa. Há alguns dias, a Konami resolveu remover totalmente P.T. da Playstation Network. Para quem não conhece, P.T. foi lançado no ano passado de graça para o PS4, e significa playable teaser, e era uma espécie de jogo bem curto que, ao ser totalmente desvendado, revelava a existência de um novo jogo de terror da franquia Silent Hill, chamado Silent Hills.

Meses depois do lançamento, a Konami resolveu cancelar o projeto original de Silent Hills e, concluindo esse processo, resolveu retirar P.T. da PSN, o que não é exatamente um processo novo, já que acontece de jogos serem retirados da rede. Eles, entretanto, ficam à disposição de quem já os comprou ou baixou, e podem ser baixados infinitas vezes por essas pessoas.

Entretanto, a Konami fez algo surpreendente e impediu que P.T. pudesse ser baixado novamente, ou seja, hoje em dia só pessoas que tinham o jogo no HD do PS4 podem jogá-lo. Como o jogo não foi comprado por ninguém, já que ele era gratuito, nenhum direito de consumidor parece ter sido quebrado e, portanto, a volta de P.T. só seria possível caso a Konami assim quisesse, o que não parece que vai acontecer.

Isso causou um enorme rebuliço na comunidade gamer, porque o fato é que, desde a geração passada, nós temos visto um impulso cada vez maior para adotar o mercado digital de jogos como norma. O PC já é um mercado quase todo digital com Steam, GOG e Origin, e eu admito que eu não tenho nenhuma cópia física dos meus jogos de PS4 e Vita, que são os aparelhos mais novos que eu tenho aqui em casa.

Porém, esse crescimento do mercado digital nunca veio sem algum tipo de desconfiança da parte dos jogadores, que enxergavam nesse processo um aumento do poder que as distribuidoras e as lojas digitais teriam em relação às suas propriedades intelectuais. Muitas dessas desconfianças foram consideradas infundadas até que a Konami usou de todos os seus direitos para remover P.T. do ar e efetivamente tirá-lo de circulação.

O fato em questão é, portanto, que muita gente realmente tinha gostado de P.T. enquanto produto cultural e obra de arte, e gostaria de poder jogá-lo novamente; outras pessoas não puderam jogar porque não tinham um PS4, mas se empolgaram com a recepção calorosa do resto da comunidade e queriam uma chance de jogar P.T. Mas, agora isso tudo ficou no passado, tirando poucas exceções.

Com isso, surgiram várias questões: como será possível manter a lembrança de P.T.? Como outras gerações, ou até nós mesmos daqui a alguns anos vamos poder reviver a experiência que o jogos nos proporcionou? Num futuro próximo, nós estaremos sujeitos a perder jogos que até então nós considerávamos como parte do nosso cotidiano, como um MMO? Como impedir que todas essas obras desapareçam na obscuridade e se tornem apenas memórias distantes?

Essas questões não são despropositadas, e revelam uma preocupação real e justificada: nós, enquanto parte da comunidade de jogadores, precisamos cuidar dos nossos jogos, e dos diversos momentos da história dessa forma arte que são os video games.

E, com isso, realmente começa este vídeo. Por que essa preocupação de manter todos os jogos acessíveis é algo válido e importante?

A resposta vai depender muito do seu ponto de vista na hora de discutir o que é exatamente um jogo. Se, por exemplo, você considera jogos como essencialmente um produto ou um serviço, que servem para te entreter até você cansar ou até se tornarem obsoletos, então a resposta que você daria para essa questão é que não há motivos para jogos serem preservados além do lado pitoresco de ver como eram as coisas antigamente, como acontece quando a gente vai em algum museu ou casa antiga e vê um daqueles telefones de 50 anos atrás.

Entretanto, apesar da visão de consumidor ser algo crescentemente ressaltado nos debates da nossa indústria, com muita gente falando de relação preço versus benefício, oferta e demanda, e marketing versus produto final, os jogos não são produtos ou, pelo menos, não inteiramente.

Para começar, é literalmente impossível dizer que um jogo se tornou obsoleto, porque todo jogo tem em si um conjunto único de regras e elementos e, quando se muda uma delas, como gráficos ou jogabilidade, o todo também foi mudado, e nós temos um novo jogo em nossas mãos. Por isso, um jogo é obra isolada e, caso essa obra esteja sustentada por uma estrutura sólida, ela nunca perde a relevância.

Será que algum dia nós poderemos dizer que Super Mario 64 se tornou obsoleto? Ou então Ocarina of Time? Existe um prazer inerente em jogar esses games, faz parte da estrutura que eles conseguiram criar dentro de si, e nada poderia tirar isso deles, nem mesmo dezenas de anos. O cartuxo pode ficar velho, cheio de pó e mofo, mas o jogo não.

Por isso, a ideia de que um jogo pode se tornar obsoleto é tola, porque, como todo jogo é único, é mais ou menos impossível recriar a experiência dele, e por isso não faz sentido dizer que um jogo efetivamente superou outro, pelo menos não no sentido de invalidar a experiência desse outro. A existência de um jogo que realiza certos elementos melhor do que outro não invalida a presença desse outro que é mais falho.

E a própria história mostra como isso é verdade, pois jogos que muitas vezes foram considerados obsoletos renasceram depois de um tempo, viraram tendências novamente e estão vendo seu público crescer cada dia mais. Na época da mudança do 2D para o 3D, muita gente não queria saber de jogos 2D e os colocavam no passado, como algo que não tinha muito mais proveito. O interesse de todos estava no 3D.

E hoje, depois de vários anos, nós temos apreciado jogos 2D novamente, e entendido que cada um tem o seu determinado valor. Aliás, para mim, alguns dos melhores jogos 2D têm sido lançados nos dias de hoje.

Algo parecido tem se passado também com os point and clicks, que foram fortemente revividos depois do sucesso de The Walking Dead e da campanha bem sucedida de Broken Age no Kickstarter. A Telltale se tornou quase uma máquina de lançar jogos, outros títulos parecidos vieram de outras empresas e alguns clássicos finalmente vão ser resgatados da obscuridade.

Por isso, mesmo em momentos em que nós tendemos a considerar algo ultrapassado, é imprudente retirar a disponibilidade dessa coisa, porque nós podemos viver uma fase apenas, e esses clássicos podem ser fundamentais para futuros jogos que nós ainda nem podemos conceber. Imagine se, com o lançamento dos novos aparelhos de realidade virtual, muita gente começar a achar que jogos para jogar na TV são obsoletos. Quantos clássicos nós perderíamos?

Mas, a questão do historicismo é muito mais complexa: como cada jogo é uma entidade única, ele também é fruto de um período único, que revela preocupações e ambições específicas, e esses sentimentos são muito legais de reviver e ensinam muitas coisas sobre a história da nossa indústria e, graças a isso, nos ajudam a entender melhor como ela funciona e por quais desafios ela já passou.

Quem tem acompanhado a minha série sobre Castlevania – que eu devo continuar em breve, aliás – viu como uma mesma série pode adotar princípios completamente diferentes, a depender de que desafio da época os desenvolvedores precisavam superar: poderia ser o desejo de expandir um jogo numa memória pequena, ou transportar a experiência para um portátil, ou torná-lo algo mais brincalhão, ou ainda fazer a passagem do 2D para o 3D. Apesar de ter uma história curta, a nossa indústria passa por frequentes desafios e, quando um é cumprido, passa-se logo para outro. E é bem interessante ver como cada desafio foi abordado ao longo do tempo.

Mas, não é só para entender o passado que esse movimento é útil: é sempre importante a gente conhecer um pouco da nossa história para entender os movimentos que a nossa indústria faz hoje e até as referências que os desenvolvedores contemporâneos têm em termos de design, já que eles, na imensa maioria das vezes, são jogadores de longa data, que cresceram com jogos de que nós, às vezes, conhecemos pouco.

Para além de tudo isso, é claro, está também o respeito que é justo dedicar a todos esses jogos que criaram a comunidade a que nós pertencemos hoje, e que foram fundamentais para a nossa cultura, e para o que nós percebemos hoje como cena contemporânea. É um respeito muito mais genuíno do que ficar defendendo a ferro e fogo o jogo da sua infância. Mais do que transformar uma obra em algo à prova de críticas, a forma suprema de respeito com o trabalho de alguém é fazer com que ele tenha o direito de existir e de ser lembrado.

Afinal, vários foram os artistas na literatura, na pintura e no cinema que produziram obras porque queriam criar algo de impacto, que ficasse na memória, que tivesse muito significado. Eu acredito que os jogos merecem esse mesmo respeito que nós dedicamos às outras formas de arte, até para que eles obtenham o respeito que merecem. Para isso, nós precisamos respeitá-los primeiro.

No entanto, isso não é assim tão simples. Na verdade, embora essas questões tenham um peso e eu acredito que poucas pessoas poderiam discordar delas totalmente, há uma série de fatores que fazem esse impulso encontrar sérias dificuldades, mesmo entre nós, que deveríamos ser fortemente a favor da preservação dos jogos.

A primeira dificuldade é uma que eu conheço muito bem há muito tempo, pelo menos desde que eu comecei a trabalhar e achei que seria fácil comprar os jogos em que eu tivesse interesse. O problema é que, embora eu tivesse um certo dinheiro, eu não encontrava diversos dos jogos que eu queria obter, e isso porque, quando se trata de jogos antigos, o comprador precisa ou de sorte, ou de um fortuna.

Enquanto eu estou falando agora, estão aparecendo alguns jogos por que eu pessoalmente me interesso, mas não consigo achar em lugar nenhum, nem no mercado de segunda mão, geralmente no Mercado Livre. Quando eu encontro alguns desses títulos lá, os preços são tão ultrajantes que eu simplesmente me recuso a pagar, porque é inadmissível ter que pagar um preço duas, três, dez vez maior do que o jogo custava quando estava novo.

Se eu não posso ou não quero pagar por um jogo original, ou simplesmente não encontro uma cópia verdadeira, a única opção que nós temos hoje é, claro, a internet e seu fantástico mundo de emuladores, roms, isos, etc. Entretanto, eu sinto uma certa falta de jogar no controle certo e até com as configurações visuais certas. Jogos de Nintendo 64, por exemplo, me parecem sempre estranhos sem o tradicional controle, e não são poucos os tópicos na internet com gente falando que as imagens que os emuladores produzem nem sempre correspondem ao que existia mesmo na época em que você jogava no console.

Com isso, cria-se um problema sério de acessibilidade do jogo, em que o número de cópias é minúsculo, o preço das cópias à venda é extremamente inflado e se torna muito difícil para alguém conseguir o jogo. Agora imagine como tudo isso poderia ser contornado caso houvesse um equivalente de uma biblioteca, voltado para jogos, um lugar enorme, com diversas cabines com consoles, em que o jogador poderia fazer uma inscrição, escolher um jogo disponível, e simplesmente jogar e viver a experiência do jeito correto.

É claro que, para isso, seria necessário muito investimento e, numa época em que a ex-ministra da Cultura diz com todas as letras que não acha que video games sejam uma forma de arte, a gente se encontra numa situação realmente difícil. Por conta disso, nós ficamos nas mãos das distribuidoras, que têm feito um trabalho até razoável de disponibilizar de novo jogos antigos e raros.

Estão aparecendo enquanto eu falo alguns jogos pelos quais eu me interesso e que seriam muito difíceis de achar caso não tivessem sido relançados nos anos mais recentes, coisa de um ou dois anos. Em alguns casos, eu consegui obter o jogo pouco antes de ele ser disponibilizado novamente, o que resultou num imenso desperdício de dinheiro, que não seria necessário caso esse esforço fosse levado mais a sério.

O grande problema de deixar esse tipo de esforço na mão das distribuidoras, porém, é que elas não são empresas filantrópicas e só lidam com o próprio legado na medida em que convém a elas. Para tentar explicar isso melhor, eu vou retomar bastante alguns argumentos que eu li em dois artigos de um outro brasileiro, chamado Felipe Pepe, e que é o organizador de um livro dedicado à história dos RPGs de computador, os chamados CRPGs, e que conta com a ajuda de diversos fãs e até desenvolvedores. Os links para os artigos estão na descrição do vídeo, e estão em inglês.

O argumento principal que eu quero retomar do meu quase xará Felipe é que, em muitos casos, simplesmente não convém manter a história viva, pelo menos não na perspectiva do marketing que as distribuidoras constroem. E isso porque, no período de vida de uma franquia ou de um certo gênero, acontecem casos de simplificação ao longo do tempo, ou seja, os jogos mais novos se tornam menos complexos, e sim apenas mais bonitos.

Entretanto, como a nossa indústria vive da empolgação com cada novo título e precisa vender sempre mais do que antes, é extremamente inconveniente ter na memória da comunidade que o jogo antigo permitia mais coisas do que o novo, porque aí o novo soa como pior, ou, no mínimo, mais limitado, e aí o incentivo para comprá-lo diminui.

Além disso, e este é outro argumento do Felipe, nós estamos vivendo num período em que remakes estão sendo lançados com certa profusão e, para justificar a compra desse remake, as distribuidoras precisam deixar ressaltado o quanto o jogo antigo é ultrapassado e realmente precisa dessa nova caracterização. Em alguns casos, isso é até verdade, mas o fato é que o remake não é exatamente a mesma experiência do original e isso também precisa ser destacado. E, como as distribuidoras não têm interesse nisso, cabe à cobertura de jogos fazê-lo.

Outro elemento que eu queria acrescentar a essa equação é o fato de que, além de competir por nosso dinheiro, todo jogo também compete pelo nosso tempo. Jogos duram dezenas de horas e se envolver em um deles com certeza significa não jogar outro. Um jogador sem preconceito pode escolher um jogo numa seleção imensa, que compreende décadas e provavelmente milhares de jogos.

Por isso, também é conveniente para as distribuidoras manter um número mínimo de jogos em fácil acesso, ou seja, os novos, já que os velhos são vendidos em segunda mão, ou sempre estão em promoção ou, ainda, são relançados a baixos preços. A maior fonte de ganho são os lançamentos e, por isso, é neles que a distribuidora vai focar.

E aí é que está a questão: comércio e preservação não se misturam. A preservação tem o apego de ver as coisas todas reunidas, de cuidar de tudo, de fazer o tempo parar para que nada morra. O comércio demanda circulação de dinheiro e de mercadorias, e busca focar sempre seus esforços naquilo que pode dar mais lucro. Ele é, por natureza, seletivo, e não tem interesse em manter as coisas como estão. Ele precisa de renovação.

E, com isso, nós nos encontramos num duro impasse para uma questão tão importante: é extremamente difícil manter esses jogos antigos vivos na nossa consciência, porque eles não são mais acessíveis e as únicas instituições que podem torná-los acessíveis não têm o menor interesse nisso. Na verdade, o maior interesse delas é escrever a própria história dos jogos, convertendo coisas em clássicos ou em obra obsoleta conforme convém no momento.

A história é escrita pelos vencedores, mas o trabalho do historiador é justamente contar o que não está evidente, ou seja, é contar a história dos perdedores e, no caso da nossa indústria, quase todo jogo se torna perdedor quando o próximo título da franquia é anunciado ou quando começa uma nova geração.

Por isso, é preciso que cada um de nós mantenha essa memória viva. Eu tento fazer isso com os meus vídeos; afinal, cada vídeo que eu posto aqui é uma forma de difundir jogos, de fazer com que quem nunca ouviu falar de um certo jogo acabe o conhecendo. É uma iniciativa pequena, é claro, mas é de iniciativas assim que se completam verdadeiros compêndios sobre obras; é assim que se constrói uma memória coletiva.

E, como eu disse, no momento em que nós demonstrarmos tamanho respeito pelos jogos que marcam nossa vida e nossa comunidade, aí nós poderemos cobrar que outras atitudes sejam tomadas para efetivamente institucionalizar esses esforços, e talvez criar um arquivo maior de jogos, reabrir servidores de jogos on-line e até resgatar títulos perdidos, como é o caso de P.T.

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