Olá!
Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje é dia de mais um vídeo de
teoria, agora falando de uma questão que se tornou bastante debatida na
cobertura de jogos nos últimos tempos, mas que, na verdade, é já um problema
bastante antigo, e que é o historicismo em relação à nossa indústria, ou seja,
o esforço para fornecer uma visão histórica sobre o mundo dos jogos.
Como
eu falei, essa é uma questão muito relevante, por motivos que eu vou explicar
daqui a pouco, e também é algo que é sistematicamente ignorado ou pouco
conveniente para uma série de interesses da nossa indústria. Por isso, este
vídeo vai falar um pouco da importância dessa questão, e também dos problemas
que ela enfrenta.
Mas,
antes de eu entrar na discussão em si, cabe mencionar o que foi que causou o
aparecimento desse debate numa intensidade tão grande como se tem visto,
especialmente na cobertura de jogos em língua inglesa. Há alguns dias, a Konami
resolveu remover totalmente P.T. da
Playstation Network. Para quem não conhece, P.T.
foi lançado no ano passado de graça para o PS4, e significa playable teaser, e era uma espécie de
jogo bem curto que, ao ser totalmente desvendado, revelava a existência de um
novo jogo de terror da franquia Silent
Hill, chamado Silent Hills.
Meses
depois do lançamento, a Konami resolveu cancelar o projeto original de Silent Hills e, concluindo esse
processo, resolveu retirar P.T. da
PSN, o que não é exatamente um processo novo, já que acontece de jogos serem
retirados da rede. Eles, entretanto, ficam à disposição de quem já os comprou
ou baixou, e podem ser baixados infinitas vezes por essas pessoas.
Entretanto,
a Konami fez algo surpreendente e impediu que P.T. pudesse ser baixado novamente, ou seja, hoje em dia só pessoas
que tinham o jogo no HD do PS4 podem jogá-lo. Como o jogo não foi comprado por
ninguém, já que ele era gratuito, nenhum direito de consumidor parece ter sido
quebrado e, portanto, a volta de P.T.
só seria possível caso a Konami assim quisesse, o que não parece que vai
acontecer.
Isso
causou um enorme rebuliço na comunidade gamer,
porque o fato é que, desde a geração passada, nós temos visto um impulso cada
vez maior para adotar o mercado digital de jogos como norma. O PC já é um
mercado quase todo digital com Steam, GOG e Origin, e eu admito que eu não
tenho nenhuma cópia física dos meus jogos de PS4 e Vita, que são os aparelhos
mais novos que eu tenho aqui em casa.
Porém,
esse crescimento do mercado digital nunca veio sem algum tipo de desconfiança
da parte dos jogadores, que enxergavam nesse processo um aumento do poder que
as distribuidoras e as lojas digitais teriam em relação às suas propriedades
intelectuais. Muitas dessas desconfianças foram consideradas infundadas até que
a Konami usou de todos os seus direitos para remover P.T. do ar e efetivamente tirá-lo de circulação.
O
fato em questão é, portanto, que muita gente realmente tinha gostado de P.T. enquanto produto cultural e obra de
arte, e gostaria de poder jogá-lo novamente; outras pessoas não puderam jogar
porque não tinham um PS4, mas se empolgaram com a recepção calorosa do resto da
comunidade e queriam uma chance de jogar P.T.
Mas, agora isso tudo ficou no passado, tirando poucas exceções.
Com
isso, surgiram várias questões: como será possível manter a lembrança de P.T.? Como outras gerações, ou até nós
mesmos daqui a alguns anos vamos poder reviver a experiência que o jogos nos
proporcionou? Num futuro próximo, nós estaremos sujeitos a perder jogos que até
então nós considerávamos como parte do nosso cotidiano, como um MMO? Como
impedir que todas essas obras desapareçam na obscuridade e se tornem apenas
memórias distantes?
Essas
questões não são despropositadas, e revelam uma preocupação real e justificada:
nós, enquanto parte da comunidade de jogadores, precisamos cuidar dos nossos
jogos, e dos diversos momentos da história dessa forma arte que são os video games.
E,
com isso, realmente começa este vídeo. Por que essa preocupação de manter todos
os jogos acessíveis é algo válido e importante?
A
resposta vai depender muito do seu ponto de vista na hora de discutir o que é
exatamente um jogo. Se, por exemplo, você considera jogos como essencialmente
um produto ou um serviço, que servem para te entreter até você cansar ou até se
tornarem obsoletos, então a resposta que você daria para essa questão é que não
há motivos para jogos serem preservados além do lado pitoresco de ver como eram
as coisas antigamente, como acontece quando a gente vai em algum museu ou casa
antiga e vê um daqueles telefones de 50 anos atrás.
Entretanto,
apesar da visão de consumidor ser algo crescentemente ressaltado nos debates da
nossa indústria, com muita gente falando de relação preço versus benefício, oferta e demanda, e marketing versus produto final, os jogos não são produtos
ou, pelo menos, não inteiramente.
Para
começar, é literalmente impossível dizer que um jogo se tornou obsoleto, porque
todo jogo tem em si um conjunto único de regras e elementos e, quando se muda
uma delas, como gráficos ou jogabilidade, o todo também foi mudado, e nós temos
um novo jogo em nossas mãos. Por isso, um jogo é obra isolada e, caso essa obra
esteja sustentada por uma estrutura sólida, ela nunca perde a relevância.
Será
que algum dia nós poderemos dizer que Super
Mario 64 se tornou obsoleto? Ou então Ocarina
of Time? Existe um prazer inerente em jogar esses games, faz parte da estrutura que eles conseguiram criar dentro de
si, e nada poderia tirar isso deles, nem mesmo dezenas de anos. O cartuxo pode
ficar velho, cheio de pó e mofo, mas o jogo não.
Por
isso, a ideia de que um jogo pode se tornar obsoleto é tola, porque, como todo
jogo é único, é mais ou menos impossível recriar a experiência dele, e por isso
não faz sentido dizer que um jogo efetivamente superou outro, pelo menos não no
sentido de invalidar a experiência desse outro. A existência de um jogo que
realiza certos elementos melhor do que outro não invalida a presença desse
outro que é mais falho.
E
a própria história mostra como isso é verdade, pois jogos que muitas vezes
foram considerados obsoletos renasceram depois de um tempo, viraram tendências
novamente e estão vendo seu público crescer cada dia mais. Na época da mudança
do 2D para o 3D, muita gente não queria saber de jogos 2D e os colocavam no
passado, como algo que não tinha muito mais proveito. O interesse de todos
estava no 3D.
E
hoje, depois de vários anos, nós temos apreciado jogos 2D novamente, e
entendido que cada um tem o seu determinado valor. Aliás, para mim, alguns dos
melhores jogos 2D têm sido lançados nos dias de hoje.
Algo
parecido tem se passado também com os point
and clicks, que foram fortemente revividos depois do sucesso de The Walking Dead e da campanha bem
sucedida de Broken Age no
Kickstarter. A Telltale se tornou quase uma máquina de lançar jogos, outros
títulos parecidos vieram de outras empresas e alguns clássicos finalmente vão
ser resgatados da obscuridade.
Por
isso, mesmo em momentos em que nós tendemos a considerar algo ultrapassado, é
imprudente retirar a disponibilidade dessa coisa, porque nós podemos viver uma
fase apenas, e esses clássicos podem ser fundamentais para futuros jogos que
nós ainda nem podemos conceber. Imagine se, com o lançamento dos novos
aparelhos de realidade virtual, muita gente começar a achar que jogos para jogar
na TV são obsoletos. Quantos clássicos nós perderíamos?
Mas,
a questão do historicismo é muito mais complexa: como cada jogo é uma entidade
única, ele também é fruto de um período único, que revela preocupações e
ambições específicas, e esses sentimentos são muito legais de reviver e ensinam
muitas coisas sobre a história da nossa indústria e, graças a isso, nos ajudam
a entender melhor como ela funciona e por quais desafios ela já passou.
Quem
tem acompanhado a minha série sobre Castlevania
– que eu devo continuar em breve, aliás – viu como uma mesma série pode adotar
princípios completamente diferentes, a depender de que desafio da época os
desenvolvedores precisavam superar: poderia ser o desejo de expandir um jogo
numa memória pequena, ou transportar a experiência para um portátil, ou
torná-lo algo mais brincalhão, ou ainda fazer a passagem do 2D para o 3D.
Apesar de ter uma história curta, a nossa indústria passa por frequentes
desafios e, quando um é cumprido, passa-se logo para outro. E é bem interessante
ver como cada desafio foi abordado ao longo do tempo.
Mas,
não é só para entender o passado que esse movimento é útil: é sempre importante
a gente conhecer um pouco da nossa história para entender os movimentos que a
nossa indústria faz hoje e até as referências que os desenvolvedores
contemporâneos têm em termos de design,
já que eles, na imensa maioria das vezes, são jogadores de longa data, que
cresceram com jogos de que nós, às vezes, conhecemos pouco.
Para
além de tudo isso, é claro, está também o respeito que é justo dedicar a todos
esses jogos que criaram a comunidade a que nós pertencemos hoje, e que foram
fundamentais para a nossa cultura, e para o que nós percebemos hoje como cena
contemporânea. É um respeito muito mais genuíno do que ficar defendendo a ferro
e fogo o jogo da sua infância. Mais do que transformar uma obra em algo à prova
de críticas, a forma suprema de respeito com o trabalho de alguém é fazer com
que ele tenha o direito de existir e de ser lembrado.
Afinal,
vários foram os artistas na literatura, na pintura e no cinema que produziram
obras porque queriam criar algo de impacto, que ficasse na memória, que tivesse
muito significado. Eu acredito que os jogos merecem esse mesmo respeito que nós
dedicamos às outras formas de arte, até para que eles obtenham o respeito que
merecem. Para isso, nós precisamos respeitá-los primeiro.
No
entanto, isso não é assim tão simples. Na verdade, embora essas questões tenham
um peso e eu acredito que poucas pessoas poderiam discordar delas totalmente,
há uma série de fatores que fazem esse impulso encontrar sérias dificuldades,
mesmo entre nós, que deveríamos ser fortemente a favor da preservação dos
jogos.
A
primeira dificuldade é uma que eu conheço muito bem há muito tempo, pelo menos
desde que eu comecei a trabalhar e achei que seria fácil comprar os jogos em
que eu tivesse interesse. O problema é que, embora eu tivesse um certo
dinheiro, eu não encontrava diversos dos jogos que eu queria obter, e isso
porque, quando se trata de jogos antigos, o comprador precisa ou de sorte, ou
de um fortuna.
Enquanto
eu estou falando agora, estão aparecendo alguns jogos por que eu pessoalmente
me interesso, mas não consigo achar em lugar nenhum, nem no mercado de segunda
mão, geralmente no Mercado Livre. Quando eu encontro alguns desses títulos lá,
os preços são tão ultrajantes que eu simplesmente me recuso a pagar, porque é
inadmissível ter que pagar um preço duas, três, dez vez maior do que o jogo
custava quando estava novo.
Se
eu não posso ou não quero pagar por um jogo original, ou simplesmente não
encontro uma cópia verdadeira, a única opção que nós temos hoje é, claro, a
internet e seu fantástico mundo de emuladores, roms, isos, etc.
Entretanto, eu sinto uma certa falta de jogar no controle certo e até com as
configurações visuais certas. Jogos de Nintendo 64, por exemplo, me parecem
sempre estranhos sem o tradicional controle, e não são poucos os tópicos na
internet com gente falando que as imagens que os emuladores produzem nem sempre
correspondem ao que existia mesmo na época em que você jogava no console.
Com
isso, cria-se um problema sério de acessibilidade do jogo, em que o número de
cópias é minúsculo, o preço das cópias à venda é extremamente inflado e se
torna muito difícil para alguém conseguir o jogo. Agora imagine como tudo isso
poderia ser contornado caso houvesse um equivalente de uma biblioteca, voltado
para jogos, um lugar enorme, com diversas cabines com consoles, em que o
jogador poderia fazer uma inscrição, escolher um jogo disponível, e
simplesmente jogar e viver a experiência do jeito correto.
É
claro que, para isso, seria necessário muito investimento e, numa época em que
a ex-ministra da Cultura diz com todas as letras que não acha que video games sejam uma forma de arte, a
gente se encontra numa situação realmente difícil. Por conta disso, nós ficamos
nas mãos das distribuidoras, que têm feito um trabalho até razoável de
disponibilizar de novo jogos antigos e raros.
Estão
aparecendo enquanto eu falo alguns jogos pelos quais eu me interesso e que
seriam muito difíceis de achar caso não tivessem sido relançados nos anos mais
recentes, coisa de um ou dois anos. Em alguns casos, eu consegui obter o jogo
pouco antes de ele ser disponibilizado novamente, o que resultou num imenso
desperdício de dinheiro, que não seria necessário caso esse esforço fosse
levado mais a sério.
O
grande problema de deixar esse tipo de esforço na mão das distribuidoras,
porém, é que elas não são empresas filantrópicas e só lidam com o próprio
legado na medida em que convém a elas. Para tentar explicar isso melhor, eu vou
retomar bastante alguns argumentos que eu li em dois artigos de um outro
brasileiro, chamado Felipe Pepe, e que é o organizador de um livro dedicado à
história dos RPGs de computador, os chamados CRPGs, e que conta com a ajuda de
diversos fãs e até desenvolvedores. Os links
para os artigos estão na descrição do vídeo, e estão em inglês.
O
argumento principal que eu quero retomar do meu quase xará Felipe é que, em muitos
casos, simplesmente não convém manter a história viva, pelo menos não na
perspectiva do marketing que as
distribuidoras constroem. E isso porque, no período de vida de uma franquia ou
de um certo gênero, acontecem casos de simplificação ao longo do tempo, ou
seja, os jogos mais novos se tornam menos complexos, e sim apenas mais bonitos.
Entretanto,
como a nossa indústria vive da empolgação com cada novo título e precisa vender
sempre mais do que antes, é extremamente inconveniente ter na memória da comunidade
que o jogo antigo permitia mais coisas do que o novo, porque aí o novo soa como
pior, ou, no mínimo, mais limitado, e aí o incentivo para comprá-lo diminui.
Além
disso, e este é outro argumento do Felipe, nós estamos vivendo num período em
que remakes estão sendo lançados com
certa profusão e, para justificar a compra desse remake, as distribuidoras precisam deixar ressaltado o quanto o
jogo antigo é ultrapassado e realmente precisa dessa nova caracterização. Em
alguns casos, isso é até verdade, mas o fato é que o remake não é exatamente a mesma experiência do original e isso
também precisa ser destacado. E, como as distribuidoras não têm interesse
nisso, cabe à cobertura de jogos fazê-lo.
Outro
elemento que eu queria acrescentar a essa equação é o fato de que, além de
competir por nosso dinheiro, todo jogo também compete pelo nosso tempo. Jogos
duram dezenas de horas e se envolver em um deles com certeza significa não
jogar outro. Um jogador sem preconceito pode escolher um jogo numa seleção imensa,
que compreende décadas e provavelmente milhares de jogos.
Por
isso, também é conveniente para as distribuidoras manter um número mínimo de
jogos em fácil acesso, ou seja, os novos, já que os velhos são vendidos em
segunda mão, ou sempre estão em promoção ou, ainda, são relançados a baixos
preços. A maior fonte de ganho são os lançamentos e, por isso, é neles que a
distribuidora vai focar.
E
aí é que está a questão: comércio e preservação não se misturam. A preservação
tem o apego de ver as coisas todas reunidas, de cuidar de tudo, de fazer o
tempo parar para que nada morra. O comércio demanda circulação de dinheiro e de
mercadorias, e busca focar sempre seus esforços naquilo que pode dar mais
lucro. Ele é, por natureza, seletivo, e não tem interesse em manter as coisas
como estão. Ele precisa de renovação.
E,
com isso, nós nos encontramos num duro impasse para uma questão tão importante:
é extremamente difícil manter esses jogos antigos vivos na nossa consciência,
porque eles não são mais acessíveis e as únicas instituições que podem
torná-los acessíveis não têm o menor interesse nisso. Na verdade, o maior
interesse delas é escrever a própria história dos jogos, convertendo coisas em
clássicos ou em obra obsoleta conforme convém no momento.
A
história é escrita pelos vencedores, mas o trabalho do historiador é justamente
contar o que não está evidente, ou seja, é contar a história dos perdedores e,
no caso da nossa indústria, quase todo jogo se torna perdedor quando o próximo
título da franquia é anunciado ou quando começa uma nova geração.
Por
isso, é preciso que cada um de nós mantenha essa memória viva. Eu tento fazer
isso com os meus vídeos; afinal, cada vídeo que eu posto aqui é uma forma de difundir
jogos, de fazer com que quem nunca ouviu falar de um certo jogo acabe o
conhecendo. É uma iniciativa pequena, é claro, mas é de iniciativas assim que
se completam verdadeiros compêndios sobre obras; é assim que se constrói uma
memória coletiva.
E, como eu disse, no
momento em que nós demonstrarmos tamanho respeito pelos jogos que marcam nossa
vida e nossa comunidade, aí nós poderemos cobrar que outras atitudes sejam
tomadas para efetivamente institucionalizar esses esforços, e talvez criar um
arquivo maior de jogos, reabrir servidores de jogos on-line e até resgatar títulos perdidos, como é o caso de P.T.
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