Olá!
Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Remember Me, jogo da Dontnod, lançado em
2013 para PC, PS3 e Xbox 360. Ele é um jogo com uma premissa interessante e
mecânicas relativamente novas, mas, durante a experiência, ele parece um tanto
confinado a decisões que não casam bem com o todo.
Provavelmente,
o elemento mais bem realizado de Remember
Me é a história, que é cheia de significados sociais agindo por baixo do
discurso principal. O jogo conta a história de Nilin, uma caçadora de memórias.
No momento em que o jogo se passa, em 2084, a Terra foi assolada por diversos
desastres climáticos e a civilização está sendo lentamente reconstruída. A
cidade de NeoParis é o centro dessa civilização, e seu centro financeiro está
na empresa Memorize, que veicula uma ferramenta de manipulação de memórias,
permitindo que uma pessoa possa acessar memórias de outras pessoas, ou
simplesmente apagar algo que lhe cause alguma tristeza ou incômodo.
O
poder da Memorize se torna tão grande que praticamente tudo naquela civilização
passa pela mediação da manipulação de memórias: presos têm sua memória roubada
até o fim da pena, as memórias se tornam a maior commodity daquele mundo, e a manipulação incorreta delas pode criar
efeitos devastadores sobre a mente do usuário. Inclusive, esses efeitos podem
se espalhar para o físico da pessoa, e a tornam quase uma mistura de viciado e
zumbi, com deformações estranhas. Provavelmente, esse aspecto é o mais viajado
do jogo, não faz muito sentido dentro da lógica interna do jogo, e quase que
serve só para a finalidade de criar um certo tipo de inimigo para a Nilin
enfrentar.
Com
todos esses efeitos colaterais aparecendo, um grupo de resistência é formado e
chamado de Errorista. Seu objetivo é reverter essa posição central que a
manipulação de memórias ocupa na sociedade. A principal agente desse grupo é
Nilin, que, além de conseguir roubar as memórias de alguém, também é capaz de
alterá-las, o que, fundamentalmente, pode mudar radicalmente a concepção de uma
pessoa sobre si ou sobre o mundo.
Essa
trama tem uma semelhança forte com a de Deus
EX: Human Revolution, com a diferença de que Remember Me foca um lado mais mental da manipulação do ser humano,
que é a memória, enquanto Deus EX
está voltado mais para o lado físico, com os upgrades de partes do corpo. Entretanto, as implicações éticas de
toda essa discussão são bastante semelhantes.
Apesar
disso, Remember Me consegue dar uma
cara própria à questão, porque, no jogo, a ideia de memória está fortemente
vinculada ao conceito de alienação, embora isso praticamente nunca seja dito. Contudo,
se nós olharmos com um pouco mais de calma, nós podemos encontrar vários elementos
que estabelecem essa ligação.
A
primeira coisa, é claro, é a ideia de que conhecimento é poder e, portanto,
aquele que é capaz de moldar a memória como bem entender, de alguma forma,
domina a realidade e a identidade das pessoas. Esse é um conceito já bem
batido, mas carrega o seu peso de verdade. Aliás, o ano do jogo me lembrou o
livro 1984, que também tem uma
discussão sobre o domínio da História e da memória.
A
segunda coisa é como pobres e ricos tratam a manipulação de memória no jogo.
Enquanto os ricos encaram isso como uma espécie de terapia, para afastar
eventuais problemas e poder viver a vida com luxo e tranquilidade, os pobres
tratam como um vício, uma doença. Isso sem contar aqueles que têm todas as suas
memórias apagadas e são lançados na periferia, enquanto quem pode pagar recebe
tratamentos específicos para se curar de problemas com manipulação de memórias.
Assim,
o jogo cria uma situação em que uma parte das pessoas não tem memória alguma e
vive na miséria e no sofrimento, enquanto a outra parte vive uma fartura de
memórias, mas a usa apenas para viver no seu mundo, deixando de lado a
realidade. Há, inclusive, uma metáfora espacial para isso no jogo: enquanto os
bairros ricos de NeoParis são esplendorosos e protegidos de qualquer problema,
quem vive na periferia está sujeito a qualquer desastre e está condenado a um
ambiente feio e precário. Os gráficos do jogo fazem um belo trabalho ao criar
uma cidade grandiosa e bela no centro de NeoParis, enquanto a periferia é cheia
de sujeira e devastação.
Por
conta disso, o discurso social do jogo é bastante claro, e denuncia fortemente
a segregação econômica, que gera uma alienação forçada aos pobres e uma
alienação voluntária aos ricos, cada uma tendo efeitos diferentes: para os
pobres, é um sofrimento; para os ricos, é um luxo. Tudo isso está mascarado na
discussão sobre memórias.
Para
além dessa alegoria mais ampla, Remember
Me ainda trata da questão da memória no âmbito do indivíduo, falando sobre
como cada experiência pode influenciar nossa vida, e ditar como vemos o mundo e
a nós mesmos. A própria protagonista acorda sem memória no começo do jogo e,
para além de lutar pela causa errorista, ela busca também saber quem é e no que
acredita.
Enfim,
em termos de trama, Remember Me faz
um trabalho bem interessante e complexo no tratamento de questões éticas,
sociais e filosóficas, deixando bem claro que discutir essas questões era um
foco importante do jogo. Curiosamente, apesar desse foco, eu não consigo
abandonar o sentimento de que as mecânicas do jogo não parecem refletir o
desejo de trazer essa discussão para a jogabilidade também.
A
jogabilidade de Remember Me pode ser
divindade em quatro partes e, embora todas tenham um certo capricho em sua
concepção, nenhuma delas parece excepcionalmente bem realizada, e apenas uma
faz realmente sentido com a proposta do jogo em termos de história. Vou começar
com as que não se adequam bem.
A
primeira é o parkour, que é a base da
movimentação da Nilin pela cidade, e lembra bastante Assassin’s Creed. Entretanto, diferentemente do jogo da Ubisoft, Remember Me é extremamente linear, com
apenas um ou outro beco onde está condido algum documento coletável ou algum upgrade. Construções extremamente
semelhantes têm regimes de interação completamente diferentes, o que deixa as
proibições do jogo muito claras. Você só pode progredir por um caminho
extremamente específico.
Inclusive,
para que o jogador não se frustre muito com o fato de que não faz muito sentido
o que ele pode escalar para chegar a algum ponto, o jogo tem marcadores em
amarelo para o próximo objeto que você precisa alcançar para chegar ao seu
destino. E não é que Remember Me
precisaria ter um mundo absolutamente aberto, mas ele desmente as próprias
regras constantemente para manter a linearidade. De qualquer forma, seria
necessário ou deixar o mapa um pouco mais aberto para exploração livre, ou
então repensar a forma como o jogador deve se movimentar ou, então, o próprio level design desses espaços. Como está,
não faz muito sentido.
O
segundo elemento da jogabilidade de Remember
Me é o combate, que funciona baseado em combos, e incentiva a variedade de
movimentos, num sistema que me lembra bastante os últimos jogos do Batman. Esse
sistema é bem complexo e inovador, na medida em que liga todos os status do jogo aos combos. Conforme o
jogo avança, a Nilin ganha opções de combos e de ataques específicos para usar.
O interessante desses ataques é que, toda vez que algum deles é usado de forma
bem-sucedida, algum efeito imediato acontece.
Assim,
alguns golpes recuperam vida, outros reduzem o período de recuperação de alguma
habilidade especial, outros, ainda, causam dano ou multiplicam os efeitos dos
outros golpes. E o mais interessante é que o jogador pode configurar os combos
levando em consideração quais efeitos quer obter. E o jogo obriga a usar esse
tipo de customização, já que alguns inimigos têm fraquezas muito específicas,
como só poderem ser acertados se certa habilidade especial for usada, ou
consumir HP da Nilin quando é golpeado, etc.
Por
conta disso, existe uma considerável variedade de inimigos, e que geralmente
aparecem em grande quantidade, o que se torna um pouco incômodo, já que, para
permitir o uso de vários combos, todos os inimigos são muito resistentes e a
câmera é posicionada a uma distância meio pequena da Nilin, então é normal
perder os inimigos de vista. Para evitar um pouco isso, o jogo emite um sinal
de ataque quando um inimigo vai golpear, ao estilo do que acontece nos jogos do
Batman, mas o intervalo entre o aviso e o ataque é bem menor, o que é um
problema, ainda mais porque você, muitas vezes, não está vendo o ataque em si.
O mais engraçado em
termos de combate, para mim, foi que, apesar de alguns robôs no jogo e a
própria Nilin dispararem projéteis, nenhuma pessoa tem arma de fogo, e eu não
consigo deixar de achar isso estranho. A história do jogo é cheia de alusões a
segregação e violência, e não há ninguém com um dispositivo que ameace a vida.
Os
inimigos armados se limitam a alguns trechos meio stealth durante a exploração. Esse stealth, que é a terceira parte da jogabilidade, é localizado em
pouquíssimos trechos e consiste em evitar que a Nilin entre no raio de detecção
de alguns robôs. Se ela invadir o espaço deles, eles atiram e a matam
instantaneamente. Esse tipo de stealth
que causa morte imediata é realmente um problema, especialmente quando o jogo
não é desenvolvido com stealth em
mente. Acaba virando uma experiência frustrante, e isso acontece em Remember Me.
Isso
me fere um pouco mais porque eu acredito que Remember Me se beneficiaria muito
na construção de experiência se adotasse uma jogabilidade mais voltada para o
stealth. Pode ser porque eu associo esse jogo a Deus EX, mas toda a premissa da
história, com a Nilin sendo uma inimiga conhecida e perseguida por todos, e
mesmo assim andando por aí livremente, os inimigos estranhamente não tendo
armas, tudo me faz pensar que Remember Me
construiria uma experiência mais coesa se adotasse uma jogabilidade menos
baseada em confronto físico.
O fato de que o ato de
roubar ou remixar lembranças pode ser feito a distância também deixa isso bem
claro. Eu consigo imaginar como o jogo poderia ser mais baseado nisso, e não
tanto nos combos. Mas, eu acredito que o estúdio estava bastante feliz com o
conceito dos combos customizáveis, e por isso priorizou essa mecânica. E não é
que ela seja ruim, mas a proposta da história cria uma certa dissonância quando
colocada junto a ela.
Por fim, a quarta
mecânica de Remember Me é a remixagem
de memórias, que era algo que muitas pessoas esperavam ver no jogo, mas que
acabou surpreendentemente sendo escasso. Esses trechos acontecem quando a Nilin
consegue acessar a memória de algum personagem e usa isso para alterar alguns
elementos de uma lembrança, o que acaba mudando a narrativa da memória, e faz o
personagem mudar seu comportamento.
Quando o jogo entra
nesses segmentos, o jogador assiste a uma lembrança e, depois, precisa procurar
pontos alteráveis na memória para mudar o seu desfecho. O mais interessante é
que nem todos esses elementos modificáveis levam ao mesmo desfecho; alguns
podem ter consequências diferentes da buscada pelo jogador. Isso dá uma impressão
de liberdade muito interessante.
Entretanto, o jogo
parece que faz tudo para não deixar o jogador aproveitar essa experiência. A
primeira coisa feita nesse sentido é deixar escrito, logo de cara, o que deve
ser feito, o que cria, na cabeça do jogador, o objetivo antes mesmo de ele
conhecer os elementos envolvidos e aprender as possibilidades. E, por conta
disso, se o jogador encontrar outro desfecho, aparece uma tela de erro e é
preciso fazer de novo, até acertar.
O mais engraçado é que
isso sequer faz sentido dentro do jogo. Eu lembro que, quando estava em uma das
remixagens de memória do jogo, eu acabei criando um desfecho diferente daquele
que o jogo queria, mas era o que me pareceu mais interessante. O jogo me mandou
voltar e deu uma justificativa para isso, que eu não vou falar, para evitar spoiler. O problema é que, em outra
remixagem do jogo, você precisa fazer exatamente aquilo que o jogo me proibiu
no começo. Ou seja, para que tudo se encaixe em termos de história, eles
limitam o jogador.
Isso não é um problema
por si, porque linearidade não é algo essencialmente ruim; o problema é que o
jogo propõe toda uma ideia de que a remixagem de memórias é um poder imenso, e
que essa tecnologia coloca os seres humanos nas mãos de quem estiver operando a
máquina, mas, se a gente considerar apenas a jogabilidade, esse poder de
remixar memórias é extremamente limitado, mesmo havendo possibilidades para
fazer diferente.
Como eu disse na minha
análise de Beyond: Two Souls, o
problema não é o jogo ser linear ou scriptado;
o problema é o script mudar as regras
do jogo e, em grande parte, diminuir explicitamente a dimensão da experiência.
Por causa disso, a Nilin, que deveria ser uma figura que luta pela libertação,
acaba funcionando, na mão do jogador, como uma personagem metódica.
Se o jogo aplicasse a
filosofia de customização dos combos às remixagens, o jogo poderia ser
completamente diferente, com rumos totalmente distintos na história e um
sentimento mais apropriado à experiência. Bater em vilões é algo que se faz em
milhares de jogos; mostrar que o poder de alterar a memória permite alterar a
própria identidade, o presente e o futuro de alguém é algo que só Remember Me poderia fazer naquele
momento, mas a mecânica é extremamente limitada, e escassa durante todo o jogo.
E era isso que eu
queria dizer sobre Remember Me. Ele é
um jogo com uma história bem interessante, mas com mecânicas que não sabem
muito bem o que querem e não se integram corretamente à história; as partes que
deveriam ser complexas, como a movimentação, o stealth e a remixagem de memórias, são simplificadas, e o combate
acaba recebendo um foco um tanto estranho para a proposta do jogo como um todo.
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