sábado, 23 de janeiro de 2016

Child of Light - Pensando sobre o jogo



Olá! Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje vou falar de Child of Light, jogo da Ubisoft Montreal lançado para PS3, PS4, PS Vita, Xbox 360, Xbox One, Wii U e PC em 2014. Ele é um jogo que sabe unir complexidade e simplicidade, e que sabe contar sua história por meio de uma alegoria muito bem montada.

A primeira coisa que chama a atenção no jogo é a sua estética visual lindíssima. Literalmente cada momento de Child of Light parece ter vindo de uma pintura, com um uso muito complexo das cores, que parecem muito vivas e mais contrastantes. Os planos de fundo são cheios de detalhes, e dão uma personalidade visual ao jogo que poucos outros títulos têm até hoje. É de uma beleza tal que, acredito eu, vai ser difícil encontrar equivalente tão cedo. Mesmo um jogo como Valiant Hearts, que usa a mesma engine gráfica e também é lindo, acaba ficando para trás em comparação com Child of Light.

A coisa mais próxima que eu consigo comparar ao visual do jogo seriam livros infantis que são pintados com aquarela, e têm matizes de cor parecidos. E eu acho que essa semelhança é fundamental para entender Child of Light, porque ela dá uma dica sobre o público e o tom que o jogo quer estabelecer: em grande medida, o jogo quer um tom infantil, ou melhor, de livro voltado para crianças, o que não necessariamente significa que a experiência é totalmente voltada para um público infantil, e sim que é dessa forma que Child of Light se apresenta.

Na verdade, o plano dos desenvolvedores do jogo foi criar uma experiência que pudesse ser aproveitada em dois níveis: infantil e maduro. A primeira pista que nós temos disso é justamente o visual, que é extremamente agradável para todas as idades, além de criar uma identificação fácil com obras a que as crianças têm acesso, e de ter uma técnica apurada que um adulto poderia apreciar sem nenhum impedimento da idade.

Uma segunda pista dessa estrutura que permite uma experiência em vários níveis está também na música, que é doce e simples aos ouvidos tanto de crianças quanto de adultos. Em termos de sonoridade, cabe destacar também que o texto do jogo é todo rimado, o que pode ser divertido para uma criança, e capaz de admirar um adulto com um texto bem elaborado. Há, porém, o problema de que as rimas às vezes elevam o vocabulário, fazendo com que ele fique meio difícil e afetado. No entanto, o jogo sabe se redimir em alguns momentos com um personagem que usa a rima na sua caracterização, pois, como ele é atrapalhado, fica errando a rima o tempo todo.

A terceira pista dessa estrutura que permite uma experiência em vários níveis aparece no próprio gameplay do jogo. A rigor, a jogabilidade de Child of Light é cheia de variedade e de escolhas, mas, ao mesmo tempo, essa riqueza só é aproveitada por quem quiser, porque o jogo é extremamente fácil.

Resumindo rapidamente, é possível dividir o gameplay de Child of Light em duas partes: exploração e combate. Na parte de exploração, o jogador controla a menina Aurora se aventurando pelo reino de Lemuria. Nessas sessões, o jogador geralmente precisa ir de um ponto A a um ponto B, eventualmente resolvendo algum puzzle para liberar a passagem. Não é difícil achar para onde ir, ou mesmo como resolver os quebra-cabeças.

Para facilitar ainda mais, depois de um tempo a Aurora ganha a habilidade de voar, o que facilita ainda mais a movimentação e, ao mesmo tempo, dá uma sensação de liberdade grande, que combina com a beleza e a tranquilidade que a experiência de Child of Light proporciona como um todo. É muito legal sair voando, olhando para o cenário ou mesmo apreciando os movimentos da Aurora.

Entretanto, quem quiser pode deixar de avançar em termos lineares e pode explorar os cenários que, apesar de serem em 2D e sem muita complexidade, contêm um número inacreditável de itens escondidos. É impressionante como conseguiram esconder tanta coisa em mapas relativamente tão pequenos. Por conta disso, um trajeto que levaria menos de cinco minutos para ser atravessado pode levar uns vinte se o jogador se dedicar a encontrar diversas coisas.

Dessa forma, o jogo divide perfeitamente a experiência em níveis de novo: um nível, digamos, mais casual, em que o jogador simplesmente avança do ponto A para o ponto B, e um nível mais engajado, em que é possível explorar o mapa e desvendar inúmeros segredos.

O único problema que essa riqueza de coisas escondidas apresenta é que o jogador acaba com uma quantidade de itens muito acima da necessária para continuar o jogo. Felizmente, Child of Light apresenta também algumas side quests que exigem vasculhar os cenários com um outro intento, e aí a exploração ganha mais significado para esse jogador que está no nível que eu chamei de engajado.

A segunda parte do gameplay é o combate, e ele funciona exatamente como o resto do jogo, permitindo um estilo casual e outro, engajado. Na prática, Child of Light funciona como um RPG em turnos em tempo real, em que o segredo do sucesso é saber explorar o timing dos ataques.

Quando uma batalha começa em Child of Light, os personagens são colocados numa arena e uma barra aparece embaixo da tela. Essa barra indica o tempo de espera e de conjuração dos ataques. Quando o símbolo de um dos personagens da party do jogador entra na parte de conjuração, o jogador pode escolher a ação desse personagem. Quando o símbolo chegar ao final da barra de conjuração, a ação é executada. Cada ação tem uma velocidade específica, bem como cada personagem também tem.

A parte mais estratégica disso tudo é que, se alguém é golpeado enquanto seu símbolo está na barra de conjuração, a ação escolhida é cancelada, e o personagem volta para a barra de espera. Com isso, um timing preciso permite que o jogador impeça os inimigos de atacarem e, assim, torne as batalhas mais confortáveis.

Falando dos inimigos em si, além de variados e com um design que mistura algumas criaturas tradicionais, como rochas, até seres um tanto assustadores, eles têm suas especificidades no combate também: além de velocidades e ataques distintos, eles têm fraquezas e forças variáveis. Alguns inimigos recebem muito mais dano com magia, enquanto alguns são resistentes a mágica e fracos contra golpes físicos.

Inclusive, alguns têm contramedidas para certos ataques: certos inimigos podem dar contra-ataques instantâneos casos sejam golpeados por certos tipos de ataque. Além disso, em momentos mais avançados do jogo, cancelar a ação de um inimigo pode fazê-lo ganhar algum bônus que torna a luta mais difícil para o jogador. Tudo isso faz do combate uma coisa bem complexa e cheia de níveis para explorar e testar estratégias.

E isso sem contar a imensa árvore de habilidades que cada personagem tem, com habilidades totalmente únicas. Aliás, Child of Light faz um excelente trabalho ao criar membros da party que sejam completamente distintos na forma como funcionam nas batalhas.

No combate, apenas dois personagens do jogador podem atuar por vez, embora haja um número muito maior para escolher. Por um lado, essa limitação existe para não tornar as possibilidades de combinação muito complexas, mas, ao mesmo tempo, incentiva o jogador a testar as mais diversas combinações com um feedback praticamente instantâneo sobre o que funciona ou não.

Por fim, o jogo ainda conta com pedras preciosas que aumentam os status dos personagens ou conferem características elementares aos seus ataques, como fogo, água, etc. Conforme o jogador avança, ele encontra diversas dessas pedras, que podem, inclusive, ser combinadas para possibilitar efeitos maiores ou diferentes. Então, existe uma ampla gama de customização e complexidade em todo o combate de Child of Light.

Entretanto, o jogador não precisa se debruçar sobre toda essa complexidade, não é estritamente necessário dominar todas essas variantes para avançar no jogo. Os inimigos em cada cenário são relativamente poucos, há possibilidade de recuperar pontos de vida e magia em inúmeros locais e o número de itens de recuperação, como eu falei, são muito acima do necessário.

Além disso, Child of Light tem os personagens que mais passam de nível num jogo que eu já vi em toda a minha vida. A cada uma ou duas batalhas, pelo menos um dos personagens da party passa de nível. Isso faz com que eles se fortaleçam bem rápido.

Por fim, o jogador ainda tem acesso a um personagem que facilita ainda mais a sua vida enquanto joga: Igniculus. Ele pode ficar voando durante as batalhas e, se o jogador quiser, ele pode ou curar os seus aliados ou diminuir a velocidade dos inimigos. É claro que essas habilidades não são eternas, mas elas são facilmente restauráveis. Com essa ajuda em tempo real, o jogador pode dispensar mais facilmente o conhecimento sobre as mecânicas do jogo. Em alguns casos, o jogador nem precisa se preocupar em controlar o Igniculus junto com os outros membros da party, já que ele pode ser controlado por um segundo jogador que queira participar.

E tudo isso cria a divisão do jogo em dois níveis: por um lado, o combate é muito complexo e, por outro, dominar essa complexidade não é estritamente necessário para avançar. Algumas pessoas podem interpretar isso como uma falha do jogo, mas, segundo a visão que eu tenho tentado explicitar até agora neste vídeo, Child of Light toma essas decisões conscientemente, e procurando um determinado efeito.

Esse efeito é poder criar um jogo que possa interessar um público maduro e um mais infantil. O infantil, no caso, não vai querer manipular tantas variáveis, que poderiam ser confusas; e o maduro vai ter muitas coisas para testar e explorar. Ele não vai ter o desafio de se sentir pressionado a dominar tudo, mas a relativa facilidade dá uma liberdade até maior para testar possibilidades sem medo de errar, o que permite aproveitar tudo que o jogo tem a oferecer em vez de se restringir apenas a uma ou outra estratégia que funciona, pois há um medo de errar e morrer.

Resta falar agora, da história do jogo, que está igualmente fundada nessa estrutura de dois planos de que eu tenho falado. Child of Light, como eu disse, conta a história da menina Aurora em uma aventura por um mundo mágico, com uma rainha má e criaturas fantásticas e cheias de carisma. Não é muito diferente de um desenho clássico da Disney e isso imediatamente atrairia a atenção do público infantil. Esse é o primeiro plano da trama.

Entretanto, a história de Child of Light é muito mais do que isso, porque cada um desses elementos se liga num sistema de significação alegórico, ou seja, a história contada, na verdade, esconde uma outra narrativa que é possível explorar caso o jogador tenha o interesse de conhecer.

Child of Light começa com um dos inícios mais chocantes da história dos jogos: do dia para a noite, uma menina morre, o que faz seu pai entrar numa espiral depressiva. Isso é dito tão rapidamente, e é seguido do fato de que a Aurora, em vez de efetivamente morrer, acorda no reino de Lemuria, mas eu acho impossível ignorar esse elemento, até porque ele guia a aventura da Aurora, que busca voltar para o mundo do pai e salvá-lo da depressão.

Poucas histórias infantis começariam com uma perspectiva tão chocante: a morte de uma criança e um pai depressivo. Isso soa mais como um certo jogo maduro de PS3 do que algo infantil. De qualquer forma, a história de Child of Light fornece uma motivação bem específica: é preciso salvar o pai de Aurora.

Essa centralidade da família é muito importante na trama de Child of Light, e não se limita apenas à Aurora, mas está presente em praticamente todos os outros membros da party. Uns querem provar seu valor aos mais velhos; outros procuram um irmão perdido; há também quem lute para superar a morte de um familiar e mesmo quem se aventure para conseguir formar uma família. Todos agem por causa dessa conexão com outro personagem.

E, com isso, novamente a gente retorna à questão da narrativa infantil, porque, em contos de fada, por exemplo, não é estranho que as histórias envolvam fortes ligações familiares, mesmo as antagonistas: o núcleo do Pinóquio é a sua relação com o Gepeto; a vilã da Branca de Neve e da Cinderela é a madrasta; a Chapeuzinho Vermelho vai visitar a avó; a Bela vai ao castelo da Fera por causa do pai, etc. Nesse aspecto, a trama de Child of Light está profundamente envolvida na literatura infantil.

E, enquanto a forma é infantil, as próprias questões dos personagens são, ao mesmo tempo, maduras: a desaprovação das pessoas que amamos, o luto pela morte de alguém, a busca por alguém perdido são sentimentos que podem atingir adultos com frequência.

Mas não é só nessa questão de simpatia com os personagens que está o aspecto maduro de Child of Light, mas, para explicar em detalhes, eu vou precisar entrar em spoilers das últimas cenas do jogo e, por isso, eu recomendo que quem quiser experimentar o jogo sem nenhum conhecimento prévio pare por aqui. De qualquer forma, eu acho que já expliquei praticamente tudo do jogo e da sua estrutura bem construída, que alia dois planos, um infantil e um maduro, e como isso cria uma experiência especial. Se você quiser parar por aqui, eu agradeço por ter visto o vídeo e a gente se vê numa próxima análise.

Agora vamos aos spoilers. Perto do final de Child of Light, a vilã oferece a Aurora a chance de voltar para seu pai e salvar a vida dele, mas, para salvar seus amigos, a protagonista decide ficar e lutar, o que, em última instância, resulta na morte do pai dela. Isso é um choque muito grande, já que salvá-lo era a motivação principal do jogador e da Aurora.

Por conta desse momento, a história do jogo vira de cabeça para baixo e assume significado completamente novo: em vez de ser uma história infantil tradicional, que fala da ligação familiar que eu descrevi agora há pouco, o final mostra justamente essa libertação em relação à família, que só o ato de se tornar adulto permite.

Isso fica claro na recusa da Aurora em salvar o pai em detrimento dos amigos. A Aurora sabe que tem uma responsabilidade, algo que ela recusa quando ainda está na sua forma infantil lá pela metade do jogo. Dessa vez, ela sabe que precisa estar ao lado dos amigos que fez por conta própria e honrar essa amizade.

A libertação da família acontece com os outros membros da party também, que têm suas missões pessoais resolvidas antes da batalha final. A partir desse momento, eles deixam de ser pessoas buscando algo relacionado à sua família e passam a buscar algo para si e para o mundo em que vivem.

E isso fica perfeitamente claro no final do jogo, em que a Aurora, além de salvar o reino de Lemuria, também retorna ao mundo real e salva os súditos de seu pai, se tornando, de fato, uma princesa, um título que ela sempre recusou até então, mas essa recusa acaba se tornando não uma recusa das suas responsabilidades, e sim um posicionamento político, de quem não quer governar ninguém, mas sim colaborar.

Tudo isso cria a ideia de que a história do jogo não é exatamente sobre uma criança, mas sobre o crescimento dela, sobre a formação de um adulto e o fim da infância. O fato de que a Aurora ganha as feições de uma adulta ao longo da história deixa isso bem claro e o fato de que ela reencena a morte de Jesus, renascendo três dias depois, na Páscoa, indica justamente essa ideia de transformação.

Toda essa complexa questão está perfeitamente mascarada numa história com tom e elementos infantis, que pode passar como perfeitamente comum para uma criança acostumada com histórias infantis. Entretanto, para o adulto que sabe ver, está lá uma descrição do processo de crescer e viver no mundo mais amplo do que a família. Filmes como A viagem de Chihiro e O serviço de entregas da Kiki funcionam de forma semelhante, e criam também narrativas que podem ser aproveitadas por vários públicos.

E era isso que eu queria dizer sobre Child of Light. É um jogo muito belo, que sabe trabalhar em diversos níveis para criar uma experiência agradável e rica para diversos públicos. Na nossa indústria, muito se fala sobre atingir o máximo de público possível; Child of Light ensina a fazer isso, sem comprometer sua experiência ou autenticidade.

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