Olá!
Bem-vindo ao canal TheAsaGames! Eu sou o Asa e hoje é dia de mais um vídeo de
teoria, algo que eu não faço há um bom tempo já. O assunto é algo que eu queria
discutir já faz algum tempo, mas que eu acabei criando forças para fazer só
agora, depois de uma recente crise que se abriu na cobertura de jogos
internacional. O tema é a divisão entre o público tradicional de games e a
crítica, também concebida aqui como a cobertura tradicional de jogos,
especialmente sites famosos, como Gamespot, Kotaku, Polygon, etc.
Para
quem não está devidamente informado do que tem acontecido nesta última semana,
um resumo bem rápido e grosseiro: tem havido uma onda de violência e ameaças em
relação a certas figuras da indústria de games nos Estados Unidos. O primeiro
caso se deve a acusações de que existem relacionamentos íntimos entre
desenvolvedores indies e alguns jornalistas de games, o que supostamente
influenciaria a recepção de certos jogos e colocaria certas publicações em
descrédito.
O
segundo caso é protagonizado pela hoje ultrafamosa Anita Sarkeesian, uma crítica
que faz vídeos mostrando alguns lugares comuns supostamente misóginos dentro da
indústria. Desde o começo das suas publicações, ela tem encontrado uma séria
resistência da comunidade; em alguns casos, essa resistência se resume a
crítica; em outros, alguns jogadores se manifestam com ameaças, xingamentos e
violência. Nesta última semana, entretanto, o último vídeo da Anita gerou
ameaças suficientes para que ela sentisse a necessidade de ir até a polícia,
tal era a agressividade com que ela foi tratada.
Eu,
honestamente, não pretendo entrar no mérito da qualidade do trabalho de nenhuma
das pessoas envolvidas nessa onda de problemas enfrentada pela indústria,
porque o assunto daqui é outro e, quando você pensa por um instante, não é
difícil reconhecer que esse comportamento agressivo não é pontual, mas mostra
uma cisão entre a crítica de games e o seu público que já vem de um longo tempo
e cujos passos mais sutis e iniciais vale a pena analisar.
Antes
de efetivamente começar a traçar um pouco um diagnóstico da situação, eu queria
deixar claro que a visão que eu exponho é puramente minha, e é fruto da leitura
que eu faço da indústria como um todo. Se você tem outra visão, eu vou ficar
feliz de discutir educadamente qualquer coisa relacionada a isso. Mas, eu quero
deixar claro: nada do que eu vou dizer tem valor científico, é apenas algo
normalmente chamado de análise de conjuntura.
Outra
informação importante é que esse assunto está ligado bastante à indústria
americana de jogos e à cobertura de jogos em língua inglesa, o que pode deixar
perdido alguém que só consome informações por páginas brasileiras. Se você não
tem interesse em falar sobre a situação de lá, tudo bem, pode fechar este vídeo
sem problemas. Agora, eu deixo o aviso: é lá que é feita a maioria dos jogos
analisados esse canal e os problemas de lá cedo ou tarde chegarão aqui.
Bom,
eu acho que a divisão entre crítica e público aconteceu porque, num certo
momento da nossa história recente, que eu não consigo determinar, a crítica
começou a adotar critérios de análise e valor que o público simplesmente não
reconhecia como válidos.
É bem difícil
determinar a razão disso. Pode ser fruto da expansão do universo dos jogos em
termos de audiência, compreendendo explicitamente pessoas de todas as idades e
gêneros, quando até uns dez anos atrás a indústria era considerada apenas um
clube de adolescentes. Conforme envelheceram e se mantiveram jogando, os
jogadores mudaram suas mentalidades e ofereceram certa diversidade à indústria.
Também as mulheres têm sabido reivindicar seu espaço na mídia, sem medo de
esconder a sua identidade de jogadoras.
E, ao mesmo tempo em
que o público da indústria cresce, pessoas nunca antes interessadas por jogos
podem passar a olhar para eles, o que permite que sangue novo seja injetado à
comunidade, permitindo novos pontos de vista.
A mudança nos valores
também pode ter acontecido porque houve uma mudança dentro da própria produção:
o universo dos indies, que era algo mais ou menos impensável há alguns anos
atrás, trouxe títulos novos e contestadores. A liberdade de criação está em seu
ápice agora e uma olhada pelo meu canal já dá bem um exemplo da quantidade de
títulos variados que são oferecidos hoje. Essa mudança nos padrões do que pode
ser um jogo ou o que esperar de um game
certamente pode ter gerado reflexões nas pessoas responsáveis por analisar
jogos.
Por fim, pode ter
havido alguma outra mudança na formação ou nos discursos que circulam pela
sociedade lá nos países desenvolvidos, e que nós não conhecemos, e que pode ter
influenciado uma mudança. Enfim, são muitas as possibilidades, e eu só aventei
algumas aqui, as que eu acho mais prováveis.
O fato mais importante
é que a nossa indústria está num processo de transformação radical: o público
está mudando, a cobertura de jogos está mudando, e o próprio paradigma de jogos
está se transformando. É um terreno movediço, em que é necessário ter muita
cautela e compreensão para o que haverá de diferente.
Contudo, tolerância ao
diferente é algo que nunca foi praticado pela indústria, e isso por vários
motivos, seja pelo preço acentuado dos jogos, seja pela extrema cautela dos
desenvolvedores, seja por que for. Aqui também várias razões se apresentam.
Eu quero, entretanto,
destacar apenas aquela que mais está ligada ao tema que estou discutindo agora.
O formato das análises produzidas tradicionalmente não favorece a tolerância.
Ela opta quase sempre pela padronização. E essa padronização aparece na forma
do veredito ou da nota que muitas delas incluem.
Numa análise, a nota é
colocada, especialmente, por questões de praticidade. Ela está lá para que um
jogador interessado, mas com pressa, possa depreender rapidamente o que pensar
sobre determinado jogo. Nota alta, o jogo é bom; nota baixa, o jogo é ruim.
Parece inofensivo, mas é um processo simplificador, que não ensina o jogador a
operar diferenças e nuances. Para além do fato de que o escritor está
convidando o leitor a pular todo o texto e simplesmente olhar a nota, o mais
importante é que ela transforma o jogo num número, segundo uma cadeia de
desempenho que nunca fica clara e que, a rigor, não diz nada sobre o jogo.
Uma nota não diz nada
sobre como o jogo funciona, sobre o que ele desperta ou sobre para qual público
ele é direcionado. Tantos elementos diferentes compõem um jogo, e há tantos
jogos diferentes hoje, que não é possível transmitir a carga de informação
necessária com uma nota.
Fornecer uma nota a um
jogo segundo uma cadeia de desempenho significa, basicamente, transformar algo
subjetivo, que é a sua experiência com o jogo, em algo com roupagem
objetivista, pois supostamente você está usando uma medição que transcende o
jogo individual. É como decretar uma sentença ao jogo, definir uma experiência
numa forma de mídia que interage com o jogador e, então, tem um componente
variável.
É por isto que críticas
a um jogo são recebidas com violência por quem não compartilha dos mesmos
critérios de quem escreveu a análise: porque a ilusão de objetividade fornecida
pela nota impede que existam olhares subjetivos em relação ao jogo. Quando uma
nota aparece, não há espaço para debate. Houve uma enorme discussão na análise
do site Polygon sobre Dragon’s Crown, não por causa do fato de
a autora ter criticado a estética do jogo, mas porque as pessoas achavam que
esse era o motivo da nota do jogo ser relativamente baixa. Nem a estética do
jogo, que é um elemento objetivo, nem a opinião da autora, que é um elemento
subjetivo, importavam. A única coisa que estava em jogo era a nota baixa, pois
ela dizia, no seu esquema objetivista, que o jogo não era bom como as pessoas
pensavam que era.
Não bastasse o
desserviço que a nota faz em termos de transmissão de informações, ela ainda
incentiva claramente o leitor a operar comparações entre um jogo e outro, pois,
já que ambos foram mensurados pela régua da nota, é possível compará-los. Foi
assim que uma das reclamações mais fortes com a análise que a Gamespot fez de GTA V foi ter dado um 9,0 para o jogo,
enquanto Gone Home ficou com nota
9,5.
Se você conhece esses
dois jogos, você sabe que eles não têm absolutamente nada em comum. A estrutura
de jogo, a história, o tamanho da equipe envolvida na produção, o efeito
pretendido no jogador, tudo é radicalmente distinto. Não houvesse notas, não
haveria essa comparação de análises, porque ninguém em sã consciência faria
essa comparação se não houvesse um termo comum identificável. E, nesse caso, o
termo comum encontrado foi o fato de ambos serem medidos por nota.
Acho que um comentário
bastante frequente neste ponto da discussão seria que o problema, na verdade,
está em quem lê errado, quem opera essas comparações indevidas. A nota, em si,
é só uma informação. Cada um faz da informação o que achar melhor.
Infelizmente, não é exatamente assim que acontece. A forma como as ideias são
expressas nos textos nos ensinam a pensar e elas convidam o leitor a
determinados raciocínios. Elas produzem e determinam uma recepção para textos
que serão lidos futuramente.
O resumo de todo esse
processo é que, desde seu primeiro momento tendo contato com publicações sobre games, o jogador é submetido a um
esquema de reflexão que incentiva a intolerância e recusa a multiplicidade de
opiniões e de paradigmas possíveis. E, se não pode haver multiplicidade, um
texto sobre um jogo só pode estar certo ou errado, não pode haver recorte da
realidade sob um ângulo. E, assim, os argumentos que não condizem com os
pressupostos do jogador são inválidos e, segundo alguns, desonestos e parciais.
Segundo a leitura que
eu faço, é daí que nasce todo o problema que gerou a divisão entre o público e
a crítica de games. Embora, por um lado, em algum momento, as pessoas
responsáveis pela cobertura de jogos tenham entrado em contato com diversos
paradigmas de jogos e de visões de mundo, seja por necessidade de trabalho,
seja pelos vários outros fatores que eu já listei, por outro lado, o público
nunca foi preparado para esse contato e não está acostumado a operar com essas
diferenças. Assim, ele não se sente representado pelos canais tradicionais de
análise de jogo e, em muitos casos, esse sentimento é de incompreensão e
traição.
Os efeitos advindos daí
são inúmeros. Talvez o mais benéfico tenha sido a ascensão de canais
alternativos na cobertura de jogos, especialmente no Youtube. A internet possibilitou
que pessoas pudessem passar da sensação incômoda de não se sentir representados
para a posição de representantes das próprias opiniões, com seus vídeos de
análise de jogos. E essas pessoas puderam ter bastante espaço e popularidade,
já que mais do que nunca há pessoas com a necessidade de ouvir o que um suposto
legítimo gamer tem a opinar.
Para aqueles que não
quiseram migrar de mídia, ou que simplesmente não se satisfizeram com os novos
espaços, restou apenas o aumento da violência, com agressões e desmerecimento
das análises publicadas em sites ou então os boatos de que análise x ou y
seria comprada. Se você entrar num site
como o UOL Jogos agora mesmo e dar uma olhada nas análises, vai ver o tempo
todo comentários levantando suspeitas de que quem analisou foi pago pela
produtora do jogo, ou então é fanboy.
Com esse quadro
estabelecido, foi apenas questão de tempo até que os ataques fossem ficando
cada vez maiores, e que as agressões finalmente surgissem com toda a sua força,
e foi isso que a gente pôde presenciar nesta semana, com contas hackeadas,
ameaças de morte ou estupro, etc. É a intolerância sendo praticada.
Bom, feito o
diagnóstico, eu queria colocar em discussão algumas medidas que eu acho
centrais para que esse quadro seja mudado para melhor. São atitudes que
abrangem o curto e o longo prazo e eu acredito que podem transformar a nossa
comunidade em algo muito mais respeitável do que o que nós vivemos hoje.
Em primeiro lugar, é
preciso repensar a forma de escrever análises de jogos, a começar pelo fim das
recomendações e das notas. Se o leitor ou o ouvinte compreender o que você está
falando, ele saberá que conclusão tirar sobre o jogo e, assim, ele não terá que
confrontar um julgamento pretensamente objetivo que nada mais faz do que
desviar o foco do jogo e da própria análise. Se as pessoas que convivem nessa
comunidade querem aumentar as possibilidades dos jogos e querem que tudo em
relação a eles cresça, é preciso incentivar a tolerância e a multiplicidade, e
é assim que se faz isso, pela forma como as pessoas discutem e pensam o
assunto.
Em segundo lugar, é
preciso que a própria cobertura de jogos repense a si mesma e decida exatamente
que espaço quer preencher na indústria. Hoje, ela não sabe exatamente o que
fazer. Por causa do controle de informações, quase não existe jornalismo de
games, com esforço investigativo no sentido de entender melhor a realidade que
nos cerca. Por conta disso, a cobertura de jogos muitas vezes se parece mais
com centrais de marketing responsáveis por difundir informações oficiais sobre
os jogos, em vez de jornalismo de verdade.
Em contrapartida, há um
medo generalizado de se assumir parcial, de escrever textos que não se assumam
como informação objetiva, de deixar claro que o jogo é um objeto de discussão,
e nunca de diagnóstico. É preciso focar o diálogo, a discussão, e não o
objetivismo. Como eu disse em outro vídeo, no dia em que todos assumirem que
suas análises têm incutidos o ponto de vista e as convicções dos autores,
nenhum leitor acusará o autor de desonesto e finalmente perceberá que o
conhecimento sobre um objeto cultural é dependente da opinião de quem o analisa
e, por isso, o mais importante é o debate.
O próximo passo
necessário nesse processo é abrir a crítica ao debate e criar um espaço de
discussão e criação, para que as opiniões sejam bem recebidas. Não é possível
ter um espaço de discussão civilizada sem o devido estabelecimento desse
espaço, sem a sua realidade prática, ensinando ao público leitor como se
comportar e discutir corretamente.
Isso não é fácil de
fazer, mas é essencial, especialmente na internet. Inclusive, um dos motivos
para a divisão entre a crítica e o público ter ficado tão forte e ter chegado
ao ponto que chegou foi o fato de que, nos momentos em que as primeiras
agressões começaram, a lição que a maioria das pessoas tirou foi simplesmente
ignorar os comentários, em vez de lidar com eles e tentar criar um espaço
construtivo de discussão. Não é possível resolver intolerância com
intolerância.
É claro que muita gente
na internet é agressiva pelo simples prazer de ser, e é por isso que esse
esforço todo dará muito trabalho para ser executado. Por conta disso, deve
haver uma mudança em escala coletiva, o que não é pedir demais, já que todos
mais ou menos sofrem com esse problema. E, se nós quisermos uma comunidade de
jogadores sólida e saudável, é isso que nós precisamos fazer. Todos temos uma
responsabilidade em criar um espaço público que seja de todos, e não de
ninguém.
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